27 January 2009

50 - CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO



CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO

(11)

FÉRIAS EM MOÇAMBIQUE

(2008/2009)


ENCONTROS COM VELHOS AMIGOS



Hoje vivi um dia excepcional aqui em Maputo, visitando e convivendo com alguns velhos amigos!
Apesar do calor que já se fazia sentir saí de casa pelas dez horas já com o termómetro nos 35 graus!

Rumei para a baixa da cidade, pelo percurso habitual da avenida Lenine (antiga Elias Garcia), que da Coop à Capitania (cerca de 4 Km) levou mais de meia hora a percorrer por causa do trânsito sempre complicado nesta movimentada artéria.


O dia fora destinado a visitar e conviver com alguns amigos, dois dos quais ainda não tinha visto desde que cheguei. Comecei pelo prédio 33 andares, situado como se sabe em frente à Imprensa Nacional, onde contava encontrar um deles - o Medina -, mas bati com o nariz na porta já que o mesmo se mudara dali nos últimos dias para novo escritório na avenida Karl Marx (antiga Manuel de Arriaga). O telemóvel desde logo ajudou a resolver o problema e em poucos minutos este velho amigo (antigo professor em Inhambane e agora contabilista), veio ao meu encontro.

O lugar escolhido - o café no corredor central do prédio – não foi dos melhores porque sendo o Medina ali muito conhecido fomos interrompidos a cada passo pelas muitas pessoas que o quiseram saudar. Uma delas abancou mesmo à nossa mesa para participar na cavaqueira e assim a privacidade do nosso encontro acabou por ali.
Como se tratava de uma figura pública que todo o mundo aqui conhece, - o poeta Eduardo Wite – o encontro acabou em jeito de tertúlia com a paragem e intervenção de quem passava para saudar os meus companheiros!

Acabou por ser uma manhã muito divertida!

Como o programa do dia incluía um almoço fora de portas com outros dois velhos amigos – o Remane, outro manhambana de gema e actual director bancário e o José Parente, “rapaz” do meu tempo que foi funcionário da Geologia e Minas, radicado em Portugal e agora de visita a Moçambique e África do Sul onde tem familiares e muitos amigos -, fui ao encontro destes pelo meio dia e abalamos para a Matola.

Escolhido o restaurante, um complexo novo na avenida Abel Batista , com piscinas, esplanadas sob frondosas árvores e muita música, deparamos com um desusado movimento de grupos de clientes e desistimos de ali almoçar.

O rumo seguinte foi a carreira de tiro, no prolongamento da mesma avenida, onde o restaurante “O Manel” se encontrava encerrado!

As horas avançavam e a decisão foi regressarmos à capital. Pelo caminho decidimos ir ao restaurante do Clube Marítimo, entre a cidade e a Costa do Sol. Também ali não fomos bem sucedidos porque era dia de folga do pessoal!

A solução foi encontrada no velho e famoso restaurante da Costa do Sol, sempre abarrotado de pessoas na sua varanda fronteira à praia onde sempre corre uma brisa fresquinha!

Havia uma mesa vaga!

Finalmente, pelas quinze horas, estávamos a saborear um belo almoço (caril de camarão e peixe serra grelhado) e a beber a saborosa 2M bem gelada!

A cavaqueira prolongou-se até às cinco da tarde e para finalizar o programa fomos visitar - eu e o tio Parente – o nosso querido amigo Ricardo Rangel, que felizmente está de novo a atravessar um bom período na recuperação da operação a que recentemente foi sujeito!

O velho leopardo, que vem travando nos últimos anos uma luta sem tréguas contra a doença que o privou já de uma perna, fica sempre muito feliz quando tem amigos à sua volta e desta vez


surpreendeu-nos com a sua boa disposição, contando-nos inclusivamente aquela anedota inspirada no uso dos primeiros telemóveis, em que um infiel marido quando estava com a sua amante recebeu uma chamada da esposa a perguntar-lhe: onde é que estás? E ele responde inadvertidamente: como é que sabes que estou aqui?...


Um dia que terminou em beleza na companhia destes bons e velhos amigos – Ricardo Rangel e a sua querida Beatriz -, e também dos seus simpáticos




netos Ricardo e Khiusha, naquele décimo primeiro andar do prédio da avenida Július Nhyerere (antiga António Enes) de onde se vislumbra o fabuloso cenário da baía com as ilhas da Xefina, dos Portugueses e da Inhaca bem destacadas no horizonte!




FOTOS DOS ENCONTROS



Eduardo Wite, Medina e Celestino, no café do 33 andares



Tio Parente, Remane e Celestino, no restaurante da Costa do Sol



Ricardo Rangel e Celestino




Com o casal Rangel, seu neto Ricardo e Tio Parente




Com o casal Rangel, sua neta Khiusha e Tio Parente


Saudações amigas, aqui da beira do Índico!


Maputo, 27 de Janeiro de 2009

Celestino Gonçalves

22 January 2009

49 - CARTA Nº 16 DE 2005



CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO


(16)



ENCONTRO COM O MESTRE MALANGATANA


(Março de 2005)



O Mestre como era há uns bons anos atrás!

Moçambique teve sempre personalidades de renome mundial, nomeadamente no desporto onde se destacaram nomes como Eusébio e Coluna e mais recentemente Lurdes Mutola campeã mundial e olímpica de atletismo.

Após a independência, em 1975, destacaram-se no mundo das artes e das letras duas outras personagens que são hoje a coqueluche deste jovem país: Malangatana e Mia Couto. Eles são as figuras de topo de uma vasta plêiade de pessoas ligadas à cultura de Moçambique, justamente porque as suas obras se tornaram muito conhecidas e atingiram grande fama praticamente em todo o mundo.

Como pessoas célebres que são, ganharam o estatuto de figuras públicas muito estimadas por toda a gente. Ambos foram dotados, para além das suas capacidades artísticas e intelectuais, do dom da simplicidade que o povo tanto aprecia. Numa palavra, eles são o orgulho dos moçambicanos!

Curiosamente, eles têm excelente relacionamento entre si e, para minha felicidade, ambos fazem parte do número dos meus bons amigos moçambicanos, conforme tive já a oportunidade de aflorar no meu site pessoal e em trabalhos anteriores inseridos em várias comunidades com sites na Internet. Eles se cruzaram na minha vida em situações diferentes, mas tão marcantes que me dão o direito de lhes reclamar alguns momentos de cavaqueira nem que para isso tenha de invadir os portões de acesso às suas casas!

Só que, em relação a Malangatana, as coisas não têm sido fáceis pois que não o encontrava a jeito há mais de quinze anos. Os seus afazeres e constantes viagens pelo estrangeiro não me proporcionaram uma única aproximação durante todo este longo tempo, apesar de várias tentativas que sempre fiz durante as minhas regulares estadias em Moçambique!

Sendo originário do povo humilde, Malangatana prima por ser um homem simples e modesto. Contudo, não é muito fácil encontrá-lo disponível uma vez que a sua ocupação profissional lhe absorve todo o tempo, quer no atelier a pintar e gravar, quer a viajar por esse mundo fora envolvido nas suas exposições pessoais ou a participar em congressos e colóquios do seu ramo. É ainda membro da Assembleia Municipal de Maputo, um cargo político que lhe trouxe imensas responsabilidades nomeadamente na recepção de delegações estrangeiras ou individualidades que se deslocam a Moçambique e cujo estatuto implica atenções especiais da parte do Governo. Ele é um digno anfitrião e um autêntico ex-libris da cidade capital e do próprio país!



O DESEJADO ENCONTRO


Finalmente, o tão desejado encontro aconteceu no passado dia 21 na sua casa atelier do bairro do Aeroporto, em Maputo, tendo para tal recorrido à intervenção do Mia que contactou o Mestre acabado de regressar de mais uma viagem a Portugal.

Como minha filha Paula também tem certo à-vontade junto deste ilustre personagem, foi ela quem completou os acertos finais para o encontro e fez questão de me acompanhar munida da “Olympus” para registar e colher imagens do consagrado artista e do seu magnífico museu.

Antes de tomarmos o caminho para aquele bairro tive ainda a oportunidade de reler as partes mais significativas dos textos do seu Livro-Álbum “Malangatana”, editado em 1998 e que felizmente me fora oferecido no último Natal pelo mano mais velho do meu genro Armando Couto. Isto para reavivar a memória em relação ao fabuloso palmarés deste ilustre moçambicano e ficar mais preparado para o visitar no seu habitat.


O Livro "Malangatana"


A rica biografia deste homem e as considerações sobre a pessoa e sua obra, feitas por consagrados críticos das artes e das letras, quer nacionais quer estrangeiros, expressas naquela excelente obra, deixaram-me francamente confuso sobre o sucesso do encontro que estava prestes a ter com o famoso pintor, sendo que ele agora é um ídolo de reputação nacional e internacional. Interrogava-me se ele me iria reconhecer e se não me dispensava mais que algumas palavras de circunstância para além dos cumprimentos da praxe!

Lá fui a meditar nas minhas dúvidas, confiante apenas nas faculdades persuasivas para dar a volta a eventuais dificuldades e evitar que o desejado encontro com o velho amigo acabasse numa frustrante jornada sentimental!

Ando na tua trás há mais de quinze anos!

Foram estas as primeiras palavras que dirigi ao velho amigo que nos aguardava no atelier de trabalho do rés do chão da sua grande residência, usando assim uma expressão popular muito em voga em Moçambique.

A sua reacção não se fez esperar com um “Bayete Gonçalves” e uma palmada na mão à boa maneira do cumprimento entre os jovens actuais, seguida de um prolongado abraço.


Bayete Gonçalves!


Afinal fui reconhecido e o à-vontade do nosso anfitrião foi tão manifesto que a breves momentos a descontracção era recíproca.

Que alívio!

O que se seguiu durante toda a tarde daquele dia memorável, foi para mim e para a Paula um autêntico deslumbramento! Um desfiar de recordações de um passado já com mais de meio século, desde que nos conhecemos em Marracuene, sede administrativa da sua terra Natal onde iniciei a minha carreira em Moçambique no longínquo ano de 1952. Ele tinha nessa altura 16 anos e eu 20!

Durante os anos que precederam a sua ida para Lourenço Marques, em 1956, Malangatana fez-se notar na vila pela sua participação em várias actividades culturais (música, danças tradicionais, artesanato) e desportivas. Naturalmente que os nossos encontros se sucederam nomeadamente no futebol que ambos praticamos e também na Administração onde ia com frequência tratar de assuntos pessoais ou visitar um seu parente próximo que ali trabalhava comigo. Depois de reavivarmos a memória citando factos e pessoas desses velhos tempos, nomeadamente dos administradores mais marcantes dessa época (Marques da Cunha e Granjo Pires), do padre Lourenço (que nos casou), dos Panguenes, dos Andrades, dos Lopes de Castro, dos Verdes, dos Bourlótos, dos Figueiredos (meus sogros), do velho Nunes (do Pavilhão de Chá), dos Faria Lopes e Lopes Marques (chefes de estação dos Caminhos de Ferro), dos Parentes, do Mendes (das excursões fluvias) e de outras figuras daquela bonita vila à beira do Incomáti, alargamos as nossas recordações ao período do pós independência quando ele era responsável do Departamento de Cultura do Ministério do Trabalho e eu adjunto da direcção dos Serviços de Fauna Bravia do Ministério da Agricultura, altura em que os nossos contactos foram mais frequentes pois estes Serviços forneciam o marfim de elefante para o sector de artesanato do mesmo Departamento.


Com a Paula numa das salas onde estão belos quadros e esculturas


A partir de 1990, data do meu afastamento de Moçambique para me fixar em Portugal, limitei-me a acompanhar, de longe, as notícias sobre a carreira fabulosa deste homem, que se tornou um dos pintores mundiais de vanguarda na actualidade, assim como escultor de grande mérito. A sua fama o tornou uma figura de grande prestígio, acumulando prémios e condecorações, incluindo a de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal. A sua vastíssima obra (Pintura, Desenho, Aguarela, Gravura, Cerâmica, Tapeçaria e Escultura), encontra-se em vários museus e galerias públicas, bem como em colecções privadas, espalhadas por inúmeras partes do Mundo. Tem ainda pintados ou gravados imensos murais não só em Moçambique como noutros países africanos, da Europa e do continente americano. O seu espólio pessoal, de valor incalculável, enche literalmente toda a sua grande casa-atelier de Maputo, aguardando o seu próximo destino que será o Museu da “Fundação Malangatana”.


Aspecto parcial do atelier


Toda a actividade artística e social deste grande senhor não o afastou, contudo, dos contactos com o povo humilde e sobretudo das crianças. Na sua terra natal ele impulsionou um importante projecto cultural – Associação do Centro Cultural de Matalana – de cuja direcção é presidente. No seu bairro criou uma escolinha para as crianças aprenderem a pintar. Tem sido membro de Júris de vários eventos nacionais e internacionais das Artes Plásticas, mantendo a ligação à UNICEF relativamente ao Júri para os Cartões de Boas-Festas.

A sua próxima obra, que será a maior, é a sua própria “Fundação Malangatana”, que será erguida também na sua terra natal e para a qual já conta com o respectivo projecto do seu grande amigo, o arquitecto e pintor português Miranda Guedes (Pancho), um dos grandes impulsionadores da carreira deste artista na sua fase inicial quando era ainda um modesto empregado de bar e da cozinha do velho Grémio (o Clube de Lourenço Marques), de parceria com o Dr. Augusto Cabral, actual director do Museu de História Natural.


Crianças angustiadas

As ligações de Malangatana a Portugal são muito estreitas, quer no âmbito institucional quer no relacionamento com as pessoas que o acarinharam nos tempos do seu lançamento na vida artística. Aqui tem feito muitas exposições individuais e elaborou, no Pavilhão de Moçambique da Expo-98 de que foi Vice-Comissário Nacional para a área da Cultura, uma escultura móvel, bem como um bonito painel-mural.

O seu Livro/Álbum “Malangatana” é uma encantadora obra por onde perpassa toda a magia e esplendor de uma vasta colecção das suas pinturas, desenhos e esculturas. Foi numa das páginas brancas deste Livro que o Mestre pintou uma bonita aguarela assinalando a visita que lhe fiz e que simboliza a nossa velha amizade. A todo o tamanho da página do lado esquerdo escreveu uma mensagem que muito nos sensibilizou e que é uma evocação especial dos velhos tempos de Marracuene (ex-Vila Luisa), com especial destaque para as suas belezas naturais, para os hipopótamos e crocodilos do grande rio Incomáti e para as actividades turísticas da vila. Escreveu ainda, numa outra página, uma dedicatória para as comunidades de Maputo, Inhambane, Beira e outras, que aqui deixo reproduzida, como se impõe.


Na fase inicial da pintura


A Paula observando o Mestre quando executava a pintura e dedicatória no Livro


Dedicatória e quadro concluídos


A Mensagem para as Comunidades


Agradecendo ao Mestre


Antes de deixar a casa-atelier de Malangatana, percorremos todas as salas onde se encontram expostos muitos dos seus quadros e esculturas, obras estas que executou ao longo da sua carreira e que foi seleccionando para fazerem parte do seu espólio inegociável.


Subindo para o 1º andar da maravilhosa casa-atelier


A visita acabaria pelas cinco da tarde porque Malangatana tinha tarefas na Assembleia Municipal, até onde o acompanhámos a seu pedido. Antes de nos despedirmos dirigiu-se à Paula e repetiu o que já nos havia dito no seu atelier: não te esqueças que quero fazer uma festa convosco e restante família em Marracuene, na próxima vinda de teu pai a Moçambique!


A despedida junto do Município


Nas horas que se seguiram a este encontro meditei profundamente sobre aquela figura imponente e bonacheirona, na sua simplicidade e delicadeza de trato, na sua sabedoria, na sua obra que os críticos tanto elogiam, na aura que o envolve e como conserva tanto vigor e alegria de viver apesar de rondar os 70 anos e ultimamente ter sido sujeito a delicadas intervenções cirúrgicas!

Quando deixei este ilustre personagem à porta do Município de Maputo, naquela tarde inesquecível, sentia-me imensamente feliz e, tal como Mia Couto escreveu em 1986 a propósito de mais uma exposição do Mestre - “Sai-se de uma exposição de Malangatana com a sensação de que já não somos os mesmos que éramos quando entrámos”- , também fiquei com a sensação de que já não era o mesmo!

A bordo do avião da TAP, 24 de Março de 2005

Celestino Gonçalves



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NOTA FINAL

Esta “Carta” foi alinhavada a bordo do avião da TAP durante a viagem de regresso a Portugal, três dias depois do encontro com Malangatana. Só hoje, porém, é publicada devido a dificuldades que surgiram com o restabelecimento da minha conta Internet, entretanto interrompida durante as férias em Moçambique.

Ela é a última da série de 16 modestas crónicas que ao longo dos mais de cinco meses de permanência em Moçambique tive o prazer de escrever para as Comunidades onde muito me orgulho de participar.

Prometo voltar com outras notícias e imagens que trouxe na minha bagagem!

Um abraço do tamanho de Moçambique para todos os que tiveram a paciência de ver e ler estes escritos!


Amor - Leiria, 10 de Abril de 2005

Celestino


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NOTA ACTUAL


A repetição agora da publicação desta Carta nos meus Blogs (Blogger e Multiply) tem por objectivo facilitar a sua reprodução aos amigos que manifestaram o desejo de preservar os meus trabalhos de 2004/2005 nos seus arquivos pessoais ou mesmo nos novos blogs do Multiply de cuja administração fazem parte.

Maputo, Janeiro de 2009

Celestino Gonçalves

48 - CARTA Nº 15 DO ANO 2005




CARTAS DA BEIRA DO INDICO

(15)

UM PASSEIO À INHACA
(Março de 2005)

Várias tentativas falhadas de ir à Inhaca levaram-me a admitir que teria de regressar ao velho continente com mais uma frustração no que às viagens fora de portas diz respeito!

Valeu ter prolongado a estadia em Moçambique muito para além do previsto para que a tal oportunidade acabasse por surgir. Um telefonema já noite adiantada do Sérgio Veiga, anunciava-me a viagem para o dia seguinte, aproveitando um passeio turístico com dois clientes portugueses.

Antes das 7 lá estava na casa deste velho amigo, em pleno Bairro do Triunfo, onde ele e seu ajudante já estavam nos preparativos para meter o barco na água, ali mesmo em frente. Para além dos 5 ocupantes, também o “Gunga”, um bonito perdigueiro inseparável companheiro da caça e da pesca do Sérgio, tomou lugar no bote.
A meio caminho já se divisava o recorte da ilha. O "Gunga" parece o timoneiro.

O mar estava calmo e brilhava como um espelho! Só a neblina matinal nos roubou o belo espectáculo da cidade, que deixamos para trás e aos poucos ficou reduzida às silhuetas dos grandes prédios recortadas no horizonte. Pela frente foi-se divisando a imagem das duas ilhas, com a dos Portugueses a fundir-se na vizinha Inhaca.

Uma hora de viagem estupenda e estávamos lá, em plena praia fronteira ao acampamento do Sérgio, uns bons quinhentos metros à direita do complexo turístico da Ilha. O programa não permitiu mais tempo ali do que o suficiente para trocar de roupa e colocar apetrechos de pesca e mergulho no barco.

Chegada à Ilha em frente da entrada do acampamento do Sérgio.

Contrariando os restantes companheiros, que dispensavam comer algo, lancei mão de duas latas de salsichas que faziam parte da minha bagagem de comezainas que levei e à socapa pedi ao cozinheiro para as preparar rapidamente. A fome que tinha dava para devorar qualquer daqueles avantajados mata-bichos de garfo dos velhos tempos das minhas andanças pelo mato!

Já estavam todos de novo a bordo para o périplo às ilhas, reclamando a minha presença, quando peguei na frigideira ainda no fogo e corri com ela para junto dos meus companheiros oferecendo a cada um (incluindo ao “Gunga”), uma bela e bem quentinha salsicha. Ninguém se fez rogado e lá fomos mar a fora mastigando o belo manjar, que foi providencial já que o regresso ao acampamento aconteceu apenas pelas 4 da tarde, altura em que recarregamos os estômagos com um belo caril de lulas!
O bungalow principal do acampamento, rodeado pela luxuriante vegetação tropical.

Há mais de dez anos que não visitava a Inhaca e as recordações que conservava não eram de todo agradáveis, já que da última vez que lá estive esta ilha estava ainda sob grande pressão de uma elevada população humana que ali se refugiara durante o período da guerra civil. Actualmente encontram-se ali cerca de seis mil pessoas, distribuídas sobretudo pela orla costeira e que são ainda um peso excessivo para a capacidade da ilha relativamente à agricultura e aos produtos do mar, considerando que se trata de uma reserva natural onde apenas a indústria do turismo deveria ter lugar.

Vista da Ilha da parte Leste

O Sérgio, para além de experimentado caçador-guia, é um dos mais consagrados pescadores e mergulhadores desportistas de Moçambique, detentor de muitos recordes de espécies de peixes raros. Há dois anos retratei (ver Álbum de Recordações do meu Site pessoal www.geocities.com/Vila_Luisa ) este homem como das personagens mais multifacetadas que tenho conhecido nesta terra, devido às várias actividades profissionais que tem abarcado e à sua extraordinária capacidade de as desenvolver.

Caçador profissional, pescador, pintor, jornalista, futebolista (jogador e treinador), atirador de stand e fotógrafo, são actividades que o Sérgio desenvolveu nos últimos trinta anos, mas recentemente iniciou outra que já então anunciei: a de escritor, tendo sido publicado em Novembro último o seu primeiro romance “O Cântico da Galinha do Mato” (ver fotos em “Pictures” nas Comunidades da Beira, Inhambane e MGM), que é um sucesso comprovado pela segunda edição já em curso. Ele é hoje um dos meninos bonitos da cidade, visitado na sua casa por muitos fãs e até por gente da comunicação social, de cá e de além fronteiras, que desejam fazer notícia dos sucessos da sua aliciante carreira.

O Sérgio durante a cerimónia de lançamento do seu livro em Maputo

Estou a falar de um dos poucos “intrusos” extra população local que desenvolvem na Inhaca actividades turísticas. Há mais de trinta anos que ele tem base de apoio na ilha para as suas incursões piscatórias e de caça submarina fora da zona de reserva e para os mergulhos nos locais de observação das grandes espécies marinhas. O Sérgio conhece como ninguém esses locais, que ajudou a preservar como santuários dessas espécies e que são uma atracção turística aqui mesmo às portas da capital. O passeio que ele nos proporcionou durante um único dia, só foi possível pela sua grande experiência e conhecimentos desta região.

Com o Sérgio na praia da ponta sul da Ilha

Aproveitando a situação da maré, navegámos em redor da ilha dos Portugueses, ao longo da linha de areias que faz ligação à Inhaca. Junto desta atravessamos na direcção do oceano até ao Farol, passando pela carcaça enferrujada de um velho navio ali afundado desde a segunda guerra mundial. Fundeamos junto da praia da ponta mais a sul da ilha, onde a paisagem é encantadora pelos contrastes da vegetação, das rochas e das areias, com o mar a perder de vista. Ali nos regalamos a mergulhar nas águas calmas e límpidas das piscinas naturais, observando os peixes multicores!

O Farol da Ilha

A segunda fase deste passeio incluiu uma paragem junto do velho navio afundado para alguns mergulhos e observação das espécies. Isso foi feito apenas pelo Sérgio e pelo seu cliente mais novo, atendendo à profundidade das águas e aos cuidados a ter com os tubarões, frequentadores desse local para caçarem os grandes peixes que ali procuram abrigo.


Parte visível do Navio afundado, perto da ponta Sul da Ilha

Navegamos depois pelo lado oriental da ilha dos Portugueses e a meio desta, onde a paisagem mais se parece com um deserto africano de areias, fundeamos de novo para nos deliciarmos com mergulhos em águas calmas e límpidas.

Paisagem de deserto de areia do lado oriental da Ilha dos Portugueses

Antes do regresso ao acampamento, o Sérgio proporcionou-nos a observação de uma zona de corais onde arpoou um polvo de razoáveis dimensões, suficiente para o jantar dos elementos do grupo.
Transportando o belo exemplar de polvo

Pelas cinco e trinta da tarde iniciámos o regresso à capital, mas as condições do mar eram já bem diferentes. Levantava-se o bem conhecido vento sul que normalmente assola a baía ao fim do dia e que obriga a viajar sob ondas crispadas e muito inconvenientes para as pequenas embarcações. A viagem durou mais meia hora do que o previsto e ocorreu sob o constante chapiscar das ondas que nos encharcaram até à medula, não obstante os impermeáveis que usamos.

O regresso do belo passeio à Inhaca foi de facto um autêntico suplício que só terminou em areia firme frente ao Bairro do Triunfo, pelas 19 horas. Só o Sérgio e o seu ajudante se mostravam tão serenos como se tivessem feito a travessia da baía em águas tão calmas como aquelas da viagem de ida. De resto, até o “Gunga” enjoou!
O barco que nos levou nesta aventura

Mas valeu a pena, pelo dia inesquecível que passamos na lendária e muito bonita ilha da Inhaca!

Maputo, Março de 2005

Celestino (Marrabenta )

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NOTA ACTUAL
A repetição agora da publicação desta Carta nos blogs do autor (Blogger e Multiply) tem por objectivo facilitar a sua cópia por parte de alguns amigos que manifestaram o desejo de preservar este trabalho nos seus arquivos pessoais ou mesmo nos blogs que administram.
Maputo, Janeiro de 2009
Celestino Gonçalves

17 January 2009

47 - CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO (10)



CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO

(10)



FÉRIAS EM MOÇAMBIQUE

(2008/2009)


GORONGOSA – PASSADO E PRESENTE EM MAPUTO





João Mosca, Cara Alegre, Celestino e Vasco Galante,
na esplanada do Maputo Shoping Centre


1 - ENCONTRO E BREVE HISTÓRIA



De passagem por Maputo a caminho de Lisboa, para representar o Parque Nacional da Gorongosa na Feira Internacional de Turismo da capital portuguesa e seguidamente em idêntico certame em Madrid, o director de comunicação do mesmo Parque, Vasco Galante, proporcionou-me hoje e a outros dois amigos comuns – comandante Cara Alegre e João Mosca – um encontro que me inspirou o título e o texto para esta Carta!

Os três amigos que representam o passado da Gorongosa não se viam desde meados da década de oitenta. O Vasco Galante, sempre em busca dos históricos que de algum modo estiveram ligados ao Parque, vai mantendo a sua escrita em dia, quer por contactos pessoais quer através da Internet.

Com recurso ao sofisticado telemóvel do Vasco, em poucos minutos se marcou o encontro no Hotel Tivoli, mas por deficiente funcionamento do sistema de climatização acabamos por nos mudar para o vizinho Centro Comercial de Maputo onde aos fins de tarde se está sempre bem na esplanada, beneficiando da brisa que sopra do lado da baía, sobretudo quando a maré enche e arrasta consigo os famosos ventos sul tão conhecidos e temidos pelos pescadores.

Uma vez reunidos, naturalmente que os primeiros momentos foram de alguma emoção sobretudo entre mim e o comandante Cara Alegre, cuja amizade foi selada em circunstâncias muito especiais, na Gorongosa, quando decorria o processo do fim da guerra colonial após o 25 de Abril de 1974.

António Rufino Cara Alegre Tembe, coronel do exército da República de Moçambique, na reserva, conhecido e tratado (como ele gosta) simplesmente por comandante Cara Alegre, é uma figura mítica da luta armada que a Frelimo travou com o exército português entre 1964 e 1974.

Ele fez história nos últimos anos dessa guerra, como comandante da base da Serra da Gorongosa e consequentemente responsável pelas actividades de guerrilha que influenciaram as actividades do Parque, sobretudo a partir de meados de 1973 até ao 25 de Abril de 1974.

Após a revolução dos capitães em Portugal e antes do Acordo de Lusaca entre a Frelimo e os representantes do governo de Lisboa, em 7 de Setembro do mesmo ano, o Parque da Gorongosa sofreu grandes convulsões que a estrutura administrativa e militar coloniais não conseguiram controlar e que ameaçaram a sua própria sobrevivência.

O descontrole das populações durante essa fase crítica e as suas próprias carências alimentares causadas pelo prolongado período de guerra, levou-as a tomarem de assalto o interior do Parque e por todos os meios ao seu alcance começaram a abater indiscriminadamente os animais. Os próprios trabalhadores, incluindo os guardas, deixaram de cumprir as suas obrigações e depressa se instalou a anarquia.

Vivia-se ali um clima de medo por parte dos responsáveis, pela incerteza do futuro e pela falta de apoio das estruturas hierárquicas superiores. Os tiros dos caçadores furtivos ouviam-se no Chitengo a todo o momento! Os elefantes eram os mais visados pelo valor do seu marfim e quantidade de carne!

A tropa portuguesa (uma companhia acantonada no Chitengo), se pouco fazia antes do 25 de Abril, nada fez enquanto esperou pelo momento de levantar ferro! Perdão, o seu comandante conseguiu apoiar-me no processo de desmobilização da OPV, cujo contingente de 130 homens ali havia sido instalado um ano antes para garantir a continuação da exploração turística do Parque, então ameaçada visto que os guerrilheiros da Frelimo chegaram mesmo a disparar algumas rajadas de tiros sobre o acampamento do Chitengo.

No auge desses desmandos, em Julho, fui mandado à Gorongosa para desmobilizar esses voluntários, que entretanto e aproveitando a anarquia reinante, já se haviam tornado potenciais furtivos e negociavam tanto a carne como o marfim. Uma tarefa que não foi fácil como noutra altura já demonstrei!

Enquanto decorreu o processo de desmobilização da OPV chegaram notícias da vila da Gorongosa ( ex-Vila Paiva de Andrade) dando conta que o comerciante Dário Santos Mosca estava a organizar o primeiro encontro entre as forças vivas (civis e militares) e o comandante Cara Alegre. Não perdemos essa oportunidade e organizamos uma comissão do Parque para participar nesse encontro. (1)

Assim conhecemos este comandante, a quem transmitimos a situação caótica que o Parque estava a atravessar. Sensibilizado com os problemas, dias depois ele e um grupo de guerrilheiros lá estavam no Chitengo para uma banja com os trabalhadores. Confraternizou com os funcionários e militares portugueses e traçou medidas severas para pôr fim aos desmandos ali em curso. Uma semana depois estavam em acção brigadas apoiadas pelos guerrilheiros sob seu comando e em pouco tempo apreenderam-se centenas de armas aos furtivos. Os guardas e outros trabalhadores do Parque refrearam as suas atitudes e recomeçaram as actividades normais.

O Parque estava salvo! (1)

Uma faceta que desde logo observei no comandante Cara Alegre, é que para além do guerrilheiro famoso que já era, também nutria (e nutre) grande paixão pela conservação da fauna bravia, um predicado que, segundo me disse, adquiriu desde criança na sua terra natal - Inhassoro - e que desenvolveu durante os anos de luta armada. Mais tarde, em 1982, ele voltou a dar-me provas disso ao participar activamente nas comemorações da Semana da Natureza, na Reserva do Maputo, chefiando uma representação do Ministério da Defesa Nacional.

Foi um dia muito especial para ambos, pois recordamos, ao fim de tantos anos, esses encontros e essa colaboração que estiveram na raiz da nossa amizade!

Mas também, neste encontro, se fez jus ao trabalho e ao grande homem que foi o saudoso Dário Santos Mosca, que construiu um verdadeiro império comercial e industrial na vila e na região da Gorongosa e que a Frelimo sempre respeitou devido ao seu exemplar comportamento para com as populações e à importância da sua obra no desenvolvimento da região.

O João Mosca, que desde criança conhece o Parque e por ele nutre grande paixão, é um quadro moçambicano da área da economia agrária que depois de ter passado por vários cargos de direcção no Ministério da Agricultura fez o doutoramento em Espanha e dedica-se agora ao ensino como professor universitário. Filho de um bom amigo, amigo nos tornamos quando ambos militávamos no mesmo Ministério nos primórdios da independência. Como qualquer filho orgulhoso, ouviu com alguma emoção as referências que eu e o Comandante Cara Alegre fizemos acerca de seu pai, que tive o prazer de ver por duas vezes em Portugal nos encontros do Buçaco e de beber o saboroso vinho branco que ele próprio produzia de uma modelar plantação das melhores castas, provavelmente a sua última obra, não em Moçambique mas na sua terra natal!

O Vasco Galante, que é já uma figura mundialmente conhecida devido ao cargo que desempenha e o leva a lidar com os mais diversos meios de comunicação de todo o mundo, que nos últimos quatro anos têm acompanhado a reabilitação do Parque da Gorongosa, dispensa apresentações. Ele aproveitou este encontro para conhecer mais alguns pormenores da história da Gorongosa em que os amigos presentes foram protagonistas, escutando-nos atentamente. Talvez por isso, as abelhas gulosas que zumbiam à nossa volta na esplanada do Maputo Shoping Centre, escolheram a sua careca para ali aterrarem e uma delas, que não gostou de ser espantada, zás, ferrou-o e tivemos de pedir gelo para lhe atenuar a dor e evitar o inchaço!

Que belo encontro este com amigos do passado e do presente do nosso querido Parque Nacional da Gorongosa, onde só as abelhas estiveram a mais!



Boa viagem Vasco e bons sucessos pessoais e profissionais nos dois importantes certames em Portugal e Espanha!






CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO

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FÉRIAS EM MOÇAMBIQUE
(2008/2009)


GORONGOSA – PASSADO E PRESENTE EM MAPUTO








1 - ENCONTRO E BREVE HISTÓRIA

 De passagem por Maputo a caminho de Lisboa, para representar o Parque Nacional da Gorongosa na Feira Internacional de Turismo da capital portuguesa e seguidamente em idêntico certame em Madrid, o director de comunicação do mesmo Parque, Vasco Galante, proporcionou-me hoje e a outros dois amigos comuns – comandante Cara Alegre e João Mosca – um encontro que me inspirou o título e o texto para esta Carta!

Os três amigos, que representam o passado da Gorongosa, não se viam desde meados da década de oitenta. O Vasco , sempre em busca de “históricos” que de algum modo estiveram ligados ao Parque, vai mantendo a sua escrita em dia, quer por contactos pessoais quer através da Internet. Com recurso ao seu sofisticado telemóvel, em poucos minutos se marcou o encontro no Hotel Tivoli, mas por deficiente funcionamento do sistema de climatização acabamos por nos mudar para o vizinho Centro Comercial de Maputo onde aos fins de tarde se está sempre bem na esplanada, beneficiando da brisa que sopra do lado da baía, sobretudo quando a maré enche e arrasta consigo os famosos ventos sul tão conhecidos e temidos pelos pescadores.

Uma vez reunidos, naturalmente que os primeiros momentos foram de alguma emoção sobretudo entre mim e o comandante Cara Alegre, cuja amizade foi selada em circunstâncias muito especiais, na Gorongosa, quando decorria o processo do fim da guerra colonial após o 25 de Abril de 1974.




Vasco Galante, dispensa apresentações, pois  é já uma figura mundialmente conhecida devido ao cargo que desempenha e o leva a lidar com os mais diversos meios de comunicação de todo o mundo que nos últimos quatro anos têm acompanhado a reabilitação do Parque da Gorongosa. Ele aproveitou este encontro para conhecer mais alguns pormenores da história da Gorongosa em que os amigos presentes foram protagonistas, escutando-nos atentamente. Talvez por isso, as abelhas gulosas que zumbiam à nossa volta na esplanada do Maputo Shoping Centre, escolheram a sua careca para ali aterrarem e uma delas, que não gostou de ser espantada, zás, ferrou-o e tivemos de pedir gelo para lhe atenuar a dor e evitar o inchaço!



António Rufino Cara Alegre Tembe, coronel do exército da República de Moçambique, na reserva, conhecido e tratado (como ele gosta) simplesmente por comandante Cara Alegre, é uma figura mítica da luta armada que a Frelimo travou com o exército português entre 1964 e 1974.

Ele fez história nos últimos anos dessa guerra, como comandante da base da Serra da Gorongosa e consequentemente responsável pelas actividades de guerrilha que influenciaram as actividades do Parque, sobretudo a partir de meados de 1973 até ao 25 de Abril de 1974.

Após a revolução dos capitães em Portugal e antes do Acordo de Lusaca entre a Frelimo e os representantes do governo de Lisboa, em 7 de Setembro do mesmo ano, o Parque da Gorongosa sofreu grandes convulsões que a estrutura administrativa e militar coloniais não conseguiram controlar e que ameaçaram a sua própria sobrevivência.

O descontrole das populações durante essa fase crítica e as suas próprias carências alimentares causadas pelo prolongado período de guerra, levou-as a tomarem de assalto o interior do Parque e por todos os meios ao seu alcance começaram a abater indiscriminadamente os animais. Os próprios trabalhadores, incluindo os guardas, deixaram de cumprir as suas obrigações e depressa se instalou a anarquia.

Vivia-se ali um clima de medo por parte dos responsáveis, pela incerteza do futuro e pela falta de apoio das estruturas hierárquicas superiores. Os tiros dos caçadores furtivos ouviam-se no Chitengo a todo o momento! Os elefantes eram os mais visados pelo valor do seu marfim e quantidade de carne!

A tropa portuguesa (uma companhia acantonada no Chitengo), se pouco fazia antes do 25 de Abril, nada fez enquanto esperou pelo momento de levantar ferro! Perdão, o seu comandante conseguiu apoiar-me no processo de desmobilização da OPV, cujo contingente de 130 homens ali havia sido instalado um ano antes para garantir a continuação da exploração turística do Parque, então ameaçada visto que os guerrilheiros da Frelimo chegaram mesmo a disparar algumas rajadas de tiros sobre o acampamento do Chitengo.

No auge desses desmandos, em Julho, fui mandado à Gorongosa para desmobilizar esses voluntários, que entretanto e aproveitando a anarquia reinante, já se haviam tornado potenciais furtivos e negociavam tanto a carne como o marfim. Uma tarefa que não foi fácil como noutra altura já demonstrei!

Enquanto decorreu o processo de desmobilização da OPV chegaram notícias da vila da Gorongosa ( ex-Vila Paiva de Andrade) dando conta que o comerciante Dário Santos Mosca estava a organizar o primeiro encontro entre as forças vivas (civis e militares) e o comandante Cara Alegre. Não perdemos essa oportunidade e organizamos uma comissão do Parque para participar nesse encontro.
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Assim conhecemos este comandante, a quem transmitimos a situação caótica que o Parque estava a atravessar  e convidamos a visitá-lo com urgência. Sensibilizado com os problemas, dias depois ele e um grupo de guerrilheiros lá estavam no Chitengo para uma banja com os trabalhadores. Confraternizou com os funcionários e militares portugueses e traçou medidas severas para pôr fim aos desmandos ali em curso. Uma semana depois estavam em acção brigadas apoiadas pelos guerrilheiros sob seu comando e em pouco tempo apreenderam-se centenas de armas aos furtivos. Os guardas e outros trabalhadores do Parque refrearam as suas atitudes e recomeçaram as actividades normais.

O Parque estava salvo! 

Uma faceta que desde logo observei no comandante Cara Alegre, é que para além do guerrilheiro famoso que já era, também nutria (e nutre) grande paixão pela conservação da fauna bravia, um predicado que, segundo me disse, adquiriu desde criança na sua terra natal - Inhassoro - e que desenvolveu durante os anos de luta armada. Mais tarde, em 1982, ele voltou a dar-me provas disso ao participar activamente nas comemorações da Semana da Natureza, na Reserva do Maputo, chefiando uma representação do Ministério da Defesa Nacional.

Foi um dia muito especial para ambos, pois recordamos, ao fim de tantos anos, esses encontros e essa colaboração que estiveram na raiz da nossa amizade!

Mas também, neste encontro, se fez jus ao trabalho e às qualidades do grande homem e bom amigo, que foi o saudoso Dário Santos Mosca, que construiu um verdadeiro império comercial e industrial na vila e na região da Gorongosa e que a Frelimo sempre respeitou devido ao seu exemplar comportamento para com as populações e à importância da sua obra no desenvolvimento da região.


 João Mosca, que desde criança conhece o Parque e por ele nutre grande paixão, é um quadro superior moçambicano da área da economia agrária, que depois de ter passado por vários cargos de direcção no Ministério da Agricultura fez o doutoramento em Espanha e dedica-se agora ao ensino como professor universitário, em Maputo.

Filho de um bom amigo – o Dário Santos Mosca -, amigo nos tornamos quando ambos militávamos no mesmo Ministério, nos primórdios da independência. Como qualquer filho orgulhoso, ouviu com alguma emoção as referências que eu e o Comandante Cara Alegre fizemos acerca de seu pai, que tive o prazer de ver por duas vezes depois do seu regresso a Portugal, nos encontros do Buçaco e de beber o saboroso vinho branco que ele próprio produzia de uma modelar plantação das melhores castas, provavelmente a última grande obra levada a cabo na sua terra natal!

Que belo encontro este com amigos do passado e do presente do nosso querido Parque Nacional da Gorongosa, onde só as abelhas estiveram a mais!

Boa viagem Vasco e bons sucessos pessoais e profissionais nos dois importantes certames em Portugal e Espanha!




2 - FOTOS DO ENCONTRO





Outro aspecto do encontro


Vasco Galante, Cara Alegre e Celestino, no Tivoli

Cara Alegre e Celestino

Vasco Galante no Tivoli



Saudações amigas, aqui da beira do Índico!


Maputo, 16 de Janeiro de 2009


Celestino Gonçalves


(1)Ver postagens nºs 29 e 30, acerca do primeiro encontro entre os representantes do Parque da Gorongosa e da Frelimo, em 1974.


Aqui: http://faunabraviademocambique.blogspot.pt/2007/11/o-primeiro-encontro-de-representantes.html