DE REPRESENTANTES DO PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA E DA FRELIMO
A luta armada que a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)
desencadeou durante dez anos (1964/1974), com vista à independência de Moçambique,
viria a terminar pouco depois do golpe militar em Portugal em 25 de Abril de
1974, mais concretamente depois de assinado o Acordo de Luzaka em 7 de Setembro
do mesmo ano entre representantes do governo de Lisboa e a delegação da Frelimo
chefiada pelo seu presidente Samora Moisés Machel.
Desde 1970 que a
guerra iniciada no norte havia atingido o centro de Moçambique e o Parque
Nacional da Gorongosa viria a ressentir-se devido a algumas acções da Frelimo,
nomeadamente depois de um ataque intimidativo às instalações do acampamento do
Chitengo, em 1973, quando o mesmo estava repleto de turistas. Esta situação
levou as autoridades coloniais (civis e militares) a colocar no Parque uma
Companhia de tropa portuguesa e um grupo equivalente em número de homens armados
sob o comando da Organização Provincial de Voluntários – OPV.
A situação de
guerra favoreceu a acção dos caçadores furtivos, tanto residentes como idos das
cidades e vilas, que abatiam indiscriminadamente os grandes animais, sobretudo
elefantes. Logo após o “25 de Abril” tudo se agravou devido à indisciplina
reinante nos homens da OPV, também eles predadores dos efectivos dos grandes
animais, quer para alimentação quer para negócio da carne e marfim. Os próprios
guardas e os trabalhadores do Parque em geral, afectados pela confusão
reinante, caíram numa total indisciplina e deixaram de cumprir cabalmente as
suas tarefas passando os dias a reivindicar condições impossíveis de satisfazer
no momento que se atravessava.
A administração do
Parque encontrava-se, nessa altura, desfalcada dos principais responsáveis
devido ao pedido de demissão, meses antes, do próprio administrador, o
veterinário Dr. Albano Cortês e pela ausência de férias em Portugal do
respectivo adjunto, o fiscal de caça Luís Lopes Fernandes. O fiscal de caça
Justino Matias, que ficou a substituir o adjunto, tal como o seu colega Manuel
João Moedas, tiveram, entretanto, de ser retirados do Parque porque vinham
sendo maltratados e ameaçados de morte pelos homens da OPV, justamente por
tentarem opor-se às suas actividades ilegais. Ambos foram substituídos no
Chitengo pelos fiscais de caça Pedro Manussos e Joaquim Rato Martins,
excelentes profissionais conhecedores do Parque, mas impotentes perante tão
caótica situação.
A primeira medida
para acabar com toda aquela anarquia foi a desmobilização e retirada do grupo
da OPV . Assim, em fins de Julho (3 meses após o “25 de Abril”), depois de uma
autêntica odisseia que eu próprio vivi como enviado especial do serviços
centrais para promover essa diligência, foi possível, com o apoio do comandante
das tropas portugueses e dos seus homens instalados no Chitengo, desarmar e
retirar os 120 homens e enviá-los para Lourenço Marques (actual Maputo), onde
haviam sido recrutados e preparados para aquela missão no Parque. Um trabalho
que se tornou difícil devido ao facto da retirada do grupo não ter sido
decidida nem apoiada pelos altos comandos da OPV. Uma história que está
enterrada, como tantas outras que ocorreram nesse período do fim da chamada
“guerra colonial” e na transição até à independência de Moçambique em 25 de
Junho de 1975!
Imediatamente, após
a saída dos “voluntários”, reuni com os responsáveis e representantes dos
trabalhadores do Parque baseados no Chitengo, para uma análise da situação e
estudo de medidas a tomar com vista ao futuro do mesmo Parque. Foi resolvido
contactar o mais breve possível os responsáveis da Frelimo, sediados algures em
bases da Serra da Gorongosa e na margem esquerda do rio Púnguè, com os quais
ainda não tinha havido qualquer ligação. Apenas se dispunha de informações que
existiam tais bases e que o comandante da região era um guerrilheiro famoso de
nome Cara Alegre.
Elaborou-se um
documento (mensagem) dirigido aos combatentes da Frelimo, exortando-os a
defenderem o Parque e darem apoio imediato aos seus responsáveis para resolução
de problemas graves que ali decorriam, tais como a caça furtiva e indisciplina
entre os trabalhadores. Apesar de ter sido redigido a 4 de Agosto, somente a 11
do mesmo mês foi possível fazer a sua entrega a esse comandante, o que
aconteceu através de um grupo de representantes do Parque, que o subscreveram,
a saber:
- Celestino
Ferreira Gonçalves, fiscal de caça-chefe
- Joaquim Pedro
Rato Martins, fiscal de caça de 1ª classe
- Pedro David Ernesto
Manussos, fiscal de caça de 2ª classe
- Chico Natal
Alfredo Candeeiro, motorista
- Francisco Pranga,
servente de 1ª classe (guarda)
- Castigo
Mamunanculo, servente de 1ª classe (guarda)
O encontro com o
famoso comandante da Frelimo ocorreu em Vila Paiva , sede da Circunscrição da Gorongosa
(actual vila de Gorongosa) depois de contactos prévios através do comerciante
Dário Santos Mosca, desta localidade, pessoa muito conceituada na região e
cujas relações com os representantes da Frelimo eram amistosas. Foi a primeira
vez que este comandante apareceu em público e se encontrou com as forças vivas,
civis e militares da região, um acontecimento que arrastou uma autêntica
multidão de elementos das populações da vila e circunvizinhas que ali acorreram
para ver esta figura mítica da luta armada, cuja popularidade ficou bem
demonstrada pelas aclamações de que foi alvo à chegada e quando percorreu as
ruas da vila.
Foi uma autêntica
festa, toda ela patrocinada e dirigida pelo comerciante Mosca, que
inclusivamente ofereceu comidas e bebidas a centenas de pessoas que encheram
literalmente as suas instalações comerciais e a rua fronteira, dando largas à
sua alegria cantando e aplaudindo a Frelimo e o comandante Cara Alegre.
Após o primeiro
contacto com a população que se concentrara em frente do complexo comercial e
industrial de Santos Mosca, o comandante Cara Alegre foi convidado para se
dirigir ao quartel militar onde o comandante do batalhão português, tenente
coronel Cavaco, acompanhado dos representantes das forças vivas locais e dos
elementos da delegação do Parque Nacional da Gorongosa, o recebeu no seu
gabinete e lhe dirigiu palavras amigas, retribuídas em tom emocionado por este
representante máximo da Frelimo na região da Gorongosa.
A nossa
representação teve um acolhimento muito especial da parte daquele combatente,
que ouviu com muita atenção a leitura que fizemos da nossa mensagem, no momento
da cerimónia no gabinete do comandante do batalhão português e agradeceu no
final, afirmando que a faria chegar ao seu chefe máximo, o presidente Samora
Machel. Ali mesmo ficou combinada a sua ida ao Chitengo, dias depois, um
convite que aceitou prontamente face às preocupações que lhe transmitimos sobre
a situação complicada que se vivia no Parque.
Regressados
ao Chitengo, no dia seguinte ao memorável encontro de Vila Paiva foi-nos
entregue pelos guardas do portão de entrada no Parque uma mensagem escrita a
lápis, num papel tosco, que dizia: “O
responsável vindo de L. Marques deve
apresentar-se no Bué Maria, amanhã de manhã, sem armas nem militares”.
Esta mensagem, que não estava assinada e tinha em baixo a palavra “Frelimo” em
letras gordas, foi analisada e todo o grupo que esteve na Vila acordou que
seria prudente comparecermos. O mesmo não opinou o capitão da Companhia da
tropa portuguesa, que nos chamou a atenção para o perigo de se tratar de uma
cilada, acrescentando que em caso de sermos raptados ele nada faria pois tinha
ordens superiores, face a ocorrências recentes, de não se exporem mais a
situações de perigo como essa.
Não obstante a opinião
do capitão português, seguimos no dia seguinte de manhã para o Bué Maria, agora
com o grupo acrescido de mais dois elementos – Manuel Chimoio, motorista e
Alberto Matambo, servente de 1ª classe (guarda) -, utilizando uma viatura em
cuja caixa aberta nos acomodamos. No trajecto de cerca de 5 Km entre o portão de entrada
do Parque e o Bué Maria, na margem esquerda do rio Púnguè, sempre com a viatura
em velocidade moderada, nada aconteceu. Nem viv’alma e a sensação que tínhamos
é que até os animais, mesmo as aves, haviam desaparecido, tal o silêncio da
mata! Chegados ao rio e depois de uma pequena pausa, o Castigo Mamunanculo, o
carismático e sensato guarda do Parque, observou com grande convicção que no
regresso teríamos de certo o encontro. E não se enganou!
A cerca de um
quilómetro do rio e logo após uma curva, deparamos com um grupo (cerca de meia
dúzia) de combatentes armados no meio da picada. Deram-nos ordens para entrar
na mata, colocando um guia à frente e os restantes atrás do grupo. Obedecemos sem
trocar qualquer palavra e à medida que nos embrenhávamos para o interior,
silenciosos como nos foi ordenado, apenas trocávamos olhares entre os
companheiros mais próximos e percebíamos que a intranquilidade se instalara em
cada um de nós. A incerteza do que nos esperava e o aspecto severo dos
“raptores”, sempre com o dedo no gatilho das Kalasches, não dava para melhor
disposição!
Finalmente, após
cerca de um quilómetro de caminhada (que nos pareceu dez), chegamos junto de outro
grupo de combatentes, estes chefiados pelo responsável da base de Bué Maria, o
comandante Alfredo Maria, que se apresentava bem vestido de camuflado cinzento
esverdeado às pintas, a contrastar com a figura desoladora dos seus
subalternos, mal vestidos, esfarrapados e quase descalços!
Fomos recebidos com
alguma rudeza mas após a resposta que demos à pergunta sobre a situação dos
“voluntários” da OPV, tudo se desvaneceu. Ao saber que os famigerados
“voluntários” já haviam sido desmobilizados e mandados para a capital, o
Alfredo Maria mudou de tom e permitiu o diálogo durante o qual lhe demos conta
da situação preocupante do Parque. Demos-lhe conta, também, do encontro ocorrido
dois dias antes com o comandante Cara Alegre, em Vila Paiva. Entregámos-lhe um
exemplar da nossa mensagem à Frelimo e convidámo-lo a estar presente no
encontro do Chitengo onde o Cara Alegre também estaria, dois dias depois. Ao
fim de meia hora tudo estava esclarecido e, já tranquilos, despedimo-nos com
toda a cordialidade, como novos amigos que auguram excelentes relações no futuro!
O Alfredo Maria, ao
contrário do Cara Alegre, era pouco comunicativo e todas as suas palavras eram
pausadas e austeras, mesmo quando nos pediu
para lhe fornecermos géneros de alimentação, fardas e calçado para os seus subordinados.
Nesse mesmo dia, à tarde, uma viatura partiu do Chitengo carregada de fardas
(calças, camisas, botas, cintos e bonés), material que fora retirado aos
“voluntários”, dias antes quando foram desmobilizados. Enviamos-lhe também, produtos
de alimentação e sabão. No regresso, veio a resposta positiva ao convite para o encontro no Chitengo e o pedido para o Parque lhe mandar viatura para o
transporte da sua delegação.
2 - MENSAGEM ENTREGUE AOS COMANDANTES DA FRELIMO
2 - MENSAGEM ENTREGUE AOS COMANDANTES DA FRELIMO
Este documento, tal como o seu anexo, cujas cópias, obtidas do original "batido" em stencil fazem parte do meu arquivo pessoal e já resistiram mais de três décadas. Por estarem mal conservadas não foi possível obter um fac-simile que bem gostaria de aqui reproduzir. A solução foi "bater" de novo os respectivos textos, na íntegra, sem retirar ou acrescentar uma única vírgula.
Eis o seu teor:
“Prezados camaradas!
Chegou a hora de darmos as mãos para a construção do Moçambique Novo, pelo qual
vós lutais há tantos anos de armas na mão!
Chegou a hora de reconstruir esta Terra, tão abalada por treze anos de uma
guerra contra os governantes colonialistas!
O novo governo português, depois de ter demitido aqueles governantes no
histórico golpe de Estado de 25 de Abril, abriu já o caminho para a total
independência de Moçambique.
O General Spínola – novo Presidente de Portugal – no seu memorável discurso de
27 de Julho findo, proclamou o direito dos povos africanos, de Moçambique,
Angola e Guiné à total independência.
Nessa proclamação disse solenemente:
“…………PODEM AGORA OS SOLDADOS DE AMBOS OS
LADOS ARRUMAR
AS ARMAS E DAREM AS MÃOS PARA EM PAZ CONSTRUIREM UM PAÍS
NOVO…..”
Logo após aquela data, em todo o Moçambique se tem festejado a vitória do seu
Povo, conduzido pela FRELIMO ao longo destes dez anos de luta!
O cessar fogo é uma realidade em muitos pontos do território, havendo em muitos
lados uma leal colaboração entre as tropas da Frelimo e os soldados portugueses,
que retiram as minas das estradas e confraternizam nas próprias bases e aquartelamentos.
A guerra acabou finalmente, para bem de todos, porque redundou na mais justa
das vitórias: a independência do Povo de Moçambique.
Só quem não recebe notícias pode ignorar o que se passa. É preciso que todos
saibam: Moçambique é uma Nação Livre!
Nesta hora de alegria para o povo moçambicano, todos os trabalhadores do Parque
Nacional da Gorongosa, reunidos especialmente para elaboração desta mensagem,
vêm manifestar o seu regozijo por ter acabado a guerra e declararem o seu firme
desejo de colaborar com o futuro governo moçambicano na reconstrução desta
próspera Terra por forma a nela ser erguida a Nação que todos ambicionam.
Nesta tarefa, que só é possível na paz, todos nós temos um papel importante.
Nós, os homens e mulheres que trabalham no Parque Nacional da Gorongosa,
queremos ardentemente participar na obra que vai seguir-se.
Às pessoas menos esclarecidas sobre a verdadeira razão da existência do Parque
da Gorongosa, desejamos informar que ele representa uma riqueza da Nação Moçambicana;
que essa riqueza pertence ao povo moçambicano em geral e não aos que aqui
trabalham; que os animais que aqui protegemos constituem o símbolo dessa
riqueza; que é dever de todos nós conservar na Terra os Parques Nacionais onde esteja
garantida a continuidade dos representantes de todos os seres vivos, para os legarmos
às gerações vindouras; que o Parque da Gorongosa é e será sempre o melhor
reduto da fauna em Moçambique; que este Parque, como “Sala de Visitas”, há-de
ser motivo de orgulho de todos os moçambicanos quando utilizado na sua
verdadeira finalidade (recepção de amigos, exploração turística a nível
internacional, manifestações de carácter turístico, cultural e científico,
etc.); que o Parque bem organizado, como estão os famosos Parques da África do
Sul, Tanzânia, Kénia, Uganda e outros países de África, muito contribuirá para que
Moçambique acarrete com preciosas divisas estrangeiras para os seus cofres,
como sucede naqueles países, nomeadamente no Kénia onde o turismo deste género
fornece uma das principais receitas do Estado.
Também o futuro governo de Moçambique independente há-de conservar e
desenvolver este maravilhoso Parque, construindo nele as necessárias estruturas
com vista ao progresso que em todos os sectores se irá verificar em todo o
território.
Repetimos: o Parque Nacional da Gorongosa será um dos motivos de orgulho do
povo moçambicano e as próprias populações vizinhas, que naturalmente serão
respeitadas nos seus direitos, muito virão a beneficiar dele.
Lembra-se aqui, com muita satisfação, que numa das recentes emissões da “Voz da
Frelimo”, foi feita referência ao Parque da Gorongosa como sendo “uma mina de
Moçambique”. Isto dá-nos a consoladora certeza de que os responsáveis pela
futura administração estão absolutamente informados sobre o valor deste Parque
e que para o mesmo reservam já um plano de conservação adequado.
É apoiados nesta consoladora posição da Frelimo que nós, trabalhadores do
Parque, sentimos ânimo e confiança nos futuros governantes e nos propomos participar e dar todo o esforço na tarefa
que vai seguir-se.
Pedimos pois a melhor compreensão para o nosso trabalho e o respeito pelas
funções que nos atribuíram, sobretudo nesta fase de transição, pois temos a
certeza que no futuro não nos faltará uma directriz baseada nos princípios e nas convenções universais sobre a conservação da fauna bravia.
Neste momento, em que muitos – ou quase todos – habitantes da região ignoram o
valor e a finalidade deste Parque, podem existir alguns ressentimentos contra
os nossos guardas e fiscais, por proibirem a caça. Acreditamos que ninguém,
depois de esclarecido, poderá levar a mal termos cumprido as nossas obrigações.
Fazemo-lo pensando sempre no futuro, podendo nesta altura constituir um motivo
de orgulho para todos quantos, de uma forma ou outra, contribuíram para legar
ao Moçambique Independente tão valioso património, hoje em dia tão importante
como os restantes que constituem a riqueza desta Terra.
Queremos prestar este esclarecimento aos nobres soldados da Frente de
Libertação de Moçambique, nesta hora do “apertar de mãos”, para que fique
inequivocamente conhecida a posição que todos os trabalhadores do Parque
Nacional da Gorongosa têm assumido na defesa dos interesses comuns e o seu
propósito de continuarem a pugnar pelo património da Nação Moçambicana.
Desfeitas possíveis más interpretações que porventura se tenham arreigado em
consequência da falta de esclarecimento sobre a orientação do pessoal ao
serviço no Parque Nacional da Gorongosa, todos pedimos que seja feita a aproximação entre nós.
Necessitamos dela para solucionar problemas que presentemente ameaçam a vida do
Parque, tais como os relacionados com a repressão à caça dos elefantes
praticada por furtivos vindos das cidades, que, aproveitando-se da situação
confusa actual, praticam as maiores barbaridades para obterem lucros fáceis.
É preciso salvarmos o Parque desses furtivos. É preciso reestruturar
rapidamente a fiscalização nos postos ora abandonados por motivos que neste
momento já não têm razão de existir.
Para tanto precisamos do auxílio da FRELIMO, a exemplo do que sucede noutros pontos
de Moçambique.
Quanto mais tarde entrarmos no bom caminho, da paz e da fraternidade, maiores
serão os prejuízos para o património que aqui estamos a defender e consequentemente
para a economia da Nação Moçambicana.
CAMARADAS !
A vossa colaboração é URGENTE! Ajudem-nos a proteger o Parque dos
reaccionários, que aproveitando-se da presente situação não só abatem a caça
para negócio como ameaçam destruir os nossos acampamentos.
Temos instalações a defender desses “furtivos”, como seja a Bela-Vista, onde há
casas que custaram muito dinheiro e muito trabalho a todos nós. Pretendemos que
todos os acampamentos voltem a ser ocupados tranquilamente por nós próprios, na
proporção que era hábito para assegurar a fiscalização das respectivas áreas.
Sem a vossa ajuda, porém, a tarefa é não só difícil como mal interpretada.
Não queremos pegar em armas.
As nossas armas habituais são as que utilizamos na defesa
contra eventuais ataques de animais e para proteger as populações e suas
culturas quando afectadas pelos mesmos.
O que queremos, sim, é o entendimento mais rápido possível pois chegou a hora de darmos as mãos, de nos conhecermos e trabalharmos juntos.
Venham pois, camaradas, dialogar sobre a melhor forma de, todos unidos, garantirmos a continuidade deste maravilhoso Parque, que é parte da riqueza da Nação - o Moçambique Novo.
O que queremos, sim, é o entendimento mais rápido possível pois chegou a hora de darmos as mãos, de nos conhecermos e trabalharmos juntos.
Venham pois, camaradas, dialogar sobre a melhor forma de, todos unidos, garantirmos a continuidade deste maravilhoso Parque, que é parte da riqueza da Nação - o Moçambique Novo.
De agora em diante aguardamos a vossa vinda, as vossas mensagens de amizade, os
vossos encontros fraternos, para juntos confraternizarmos na paz e traçarmos um
novo rumo, uma vida melhor.
Julgamos não terem qualquer dúvida na nossa honestidade. A nossa missão não pode
ser confundida e nunca se imiscuiu em problemas da guerra. Servimos sempre a
causa da fauna e queremos continuar fieis à mesma.
Apelamos uma vez mais à vossa compreensão, pois estamos numa luta de interesses
comum: a luta por Moçambique livre, independente e próspero.
A História há-de registar toda a epopeia destes dez anos de luta heróica para
tornar Moçambique independente. Estamos todos crentes que os vindouros acrescentarão
nela um capítulo próprio em homenagem aos bravos soldados que ajudaram a salvar
o mais belo santuário de caça de todo o Mundo, que é esta nossa – de todos –
GORONGOSA.
Aqui os esperamos, camaradas da FRELIMO, no Chitengo ou em qualquer outro ponto
do Parque, na certeza que virão na paz, para “darmos as mãos” e resolvermos os
nossos problemas.
Assim, todos os trabalhadores do Parque Nacional da Gorongosa vos saúdam e gritam
bem alto:
VIVA MOÇAMBIQUE LIVRE!
VIVA A FRELIMO!
VIVA A PAZ E A FRATERNIDADE!
Chitengo, 4 de Agosto de 1974
A COMISSÃO DE TRABALHADORES,
Assinados:
1 – Celestino Ferreira Gonçalves, fiscal de caça-chefe
2 – Joaquim Pedro Rato Martins, fiscal de caça de 1ª classe
3 – Pedro David Ernesto Manussos, fiscal de caça de 2ª classe
4 – Lourenço Rodrigues, guarda de Parques, Reservas e Coutadas
5 – Chico Natal Alfredo Candeeiro, motorista
6 – Manuel Chimoio, motorista
7 – Batage Vasco, operador de máquinas
8 – Castigo Mamunanculo, servente de 1ª classe (guarda)
9 – Francisco Pranga, servente de 1ªclasse (guarda)
10 – Alberto Matambo, servente de 1ª classe (guarda)”
ANEXO DA MENSAGEM
“O QUE É O PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA
E AS RAZÕES DA SUA EXISTÊNCIA
- Criado há cerca de 40 anos – primeiro como Reserva de Caça – tem o seu
coração no vale do rio Urema e Alonga-se às terras vizinhas de Cheringoma e
Gorongosa, ocupando uma área de cerca de 4.000 Km2.
- É povoado de uma abundante fauna, onde se destaca uma elevada representação
de Elefantes, Hipopótamos, Búfalos, Inhacosos, Zebras, Bois-cavalos, Leões,
Impalas, etc..
- É mundialmente conhecido e tornou-se famoso pela beleza natural que encerra e
variadíssima fauna que alberga. Os seus Leões constituem autêntico “ex-libris”
de Moçambique, pois deixam-se fotografar a escassos metros das viaturas.
- No campo turístico é de longe o principal cartaz de Moçambique.
- No campo científico serve os vários ramos ligados à zoologia, biologia, ecologia,
botânica, etc..
- No campo cultural proporciona a divulgação da vida selvagem às camadas
estudantis e de todos que nutrem interesse pelos problemas da natureza.
- No campo económico representa uma fonte de receitas em divisas estrangeiras,
através da exploração turística e futuramente na venda de animais para jardins
zoológicos de todo o mundo.
- É servido por um acampamento central – CHITENGO – onde existem instalações
para cerca de 150 turistas.
- Tem diversos outros acampamentos na sua periferia, destinados essencialmente
a fiscalização.
- Trabalham no Parque cerca de 130 empregados, entre brancos, mistos e negros
(estes em maior número), que executam as diversas tarefas de administração,
fiscalização, oficinas, obras, maquinaria e viaturas, arranjo de picadas,
manutenção de acampamentos, etc..
- Nos últimos anos de normal funcionamento recebeu em média 26 mil visitantes
por ano.
- Tem uma rede interna de picadas com cerca de 500 Km .
- É servido por uma pista para aviões do tipo “táxi aéreo”.
- A ligação rodoviária para o exterior é feita por um ramal de 11 Km . A partir do portão de
entrada até à estrada asfaltada Centro-Norte.
- No acampamento do Chitengo existe luz eléctrica fornecida pela rede exterior
da SHER.
- No mesmo acampamento há uma estação telégrafo-postal dos CTT, com telefones
para o exterior tipo VHF.
- Há uma Escola Primária, Posto de Socorros , Campos de Jogos e duas Piscinas.
Chitengo, 4 de Agosto de 1974
DISTRIBUIÇÃO:
Comandantes e outras autoridades da FRELIMO
da região da Gorongosa e Cheringoma”
3 - A BANJA NO CHITENGO
No dia aprazado, 16
de Agosto de 1974, 2 viaturas do Parque partiram ao alvorecer, uma para a Serra
da Gorongosa e outra para o Bué Maria e de lá transportaram para o Chitengo
aqueles dois comandantes e os elementos da sua segurança pessoal. O grupo do
Bué Maria chegaria muito atrasado em relação ao da Serra e praticamente não
participou dos momentos mais significativos das cerimónias de recepção.
Ambos os
comandantes vinham impecáveis nas suas fardas, naturalmente diferenciadas das
dos seus subalternos. O comandante Cara Alegre apresentou-se com um visual bem
diferente daquele que usou no encontro de 11 de Agosto em Vila Paiva , agora
vestido de camuflado de manchas largas, de confecção exclusiva dos comandantes
da Frelimo, com o seu inseparável chapéu de abas largas presas de ambos os lados,
óculos escuros, pistola à cinta e do lado esquerdo do peito o emblema da Frelimo.
Irradiava boa disposição e simpatia e isso ajudou à descontracção de todos. O
comandante Alfredo Maria, também garboso e vestido à imagem do seu colega, deu
menos nas vistas até pela sua condição de subordinado ao nível de comando da
área da Gorongosa.
O capitão, comandante das tropas portuguesas instaladas
no Chitengo, bem como os seus subalternos, aliaram-se aos funcionários e
trabalhadores do Parque nesta recepção e convívio, que decorreu em franca
camaradagem e sem ressentimentos de ambas as partes.
Coube-me a
responsabilidade de anfitrião e apoiado pelos restantes elementos dos grupos
que se deslocaram a Vila Paiva e Bué Maria, mobilizamos todos os trabalhadores,
tanto do Estado como da Safrique, assim como as suas famílias, para
participarem na banja de boas vindas aos convidados.
Graças à eficiência sempre patenteada pela Safrique na sua qualidade de concessionária da parte hoteleira do Parque, foi possível oferecer às delegações visitantes um bom almoço no restaurante do Chitengo. Durante o mesmo e por iniciativa do comandante Cara Alegre, cantou-se o "Vila Morena", cuja letra ele sabia de cor e poucos o puderam seguir senão no entoar da música. Foi um dos pontos altos desta confraternização que a todos emocionou. Soubemos depois que o comandante Cara Alegre era um excelente músico e que havia estado, meses antes, no encontro mundial da juventude comunista e lá se encontrara com camaradas portugueses, aprendendo com eles a célebre canção de Zeca Afonso que assinalou o golpe militar do "25 de Abril".
Graças à eficiência sempre patenteada pela Safrique na sua qualidade de concessionária da parte hoteleira do Parque, foi possível oferecer às delegações visitantes um bom almoço no restaurante do Chitengo. Durante o mesmo e por iniciativa do comandante Cara Alegre, cantou-se o "Vila Morena", cuja letra ele sabia de cor e poucos o puderam seguir senão no entoar da música. Foi um dos pontos altos desta confraternização que a todos emocionou. Soubemos depois que o comandante Cara Alegre era um excelente músico e que havia estado, meses antes, no encontro mundial da juventude comunista e lá se encontrara com camaradas portugueses, aprendendo com eles a célebre canção de Zeca Afonso que assinalou o golpe militar do "25 de Abril".
Antes de se dirigir às massas concentradas em frente do edifício da
administração do Parque, o comandante Cara Alegre foi elucidado dos problemas
que grassavam e que mais preocupavam os responsáveis, nomeadamente a indisciplina
dos trabalhadores e a situação da caça furtiva que nos últimos dois meses se
tornara incontrolável. Ele abordou estes temas na banja, dando particular ênfase à questão
da indisciplina que, salientou com severidade, era intolerável no seio da Frelimo
e, como tal, também ali, a partir desse momento, seria severamente punida pela
própria Frelimo.
As promessas feitas publicamente pelo comandante Cara Alegre, de enviar pessoal
armado para iniciar uma guerra sem tréguas aos caçadores furtivos, assim como
de um secretário político para consciencializar e disciplinar os trabalhadores,
foram cumpridas dias depois. A viragem há muito desejada no Parque iniciou-se
no próprio dia da banja, tal o
impacto da intervenção deste comandante junto dos trabalhadores!
Ao fim de uma semana de acção das brigadas e do secretário político da Frelimo
no Parque a situação era outra. Mais de cem furtivos e outras tantas armas
ilegais foram aprisionados e os trabalhadores voltaram às suas tarefas normais,
ordeira e disciplinadamente. Uma mudança total que relançou o Parque nas suas
actividades normais, incluindo a parte turística.
A pouco mais de um mês destas ocorrências no Parque e em resultado do Acordo de
Luzaka, de 7 de Setembro de 1974, deu-se início à mudança política no
território. Um governo provisório da Frelimo e um alto comissário de Portugal
foram nomeados e dirigiram o país até à
sua independência em 25 de Junho de 1975.
Ambos os comandantes - Cara Alegre e Alfredo Maria - foram posteriormente investidos de funções em organismos de defesa e segurança na cidade da Beira. Já depois da independência, o comandante Cara Alegre, já com a patente de major das FPLM (Forças Populares de Libertação de Moçambique), seria transferido para Maputo, onde, entre outras funções, dirigiu a banda militar. Ali nos encontramos várias vezes graças à amizade mútua que cultivamos desde o primeiro encontro na vila da Gorongosa. Curiosamente, um desses encontros aconteceu durante as comemorações da Semana Nacional da Natureza, ambos integrados no programa de visita à Reserva de Elefantes de Maputo e que foi mais uma demonstração do antigo comandante do seu grande interesse pela preservação da Natureza em geral e da fauna bravia em particular.
Ambos os comandantes - Cara Alegre e Alfredo Maria - foram posteriormente investidos de funções em organismos de defesa e segurança na cidade da Beira. Já depois da independência, o comandante Cara Alegre, já com a patente de major das FPLM (Forças Populares de Libertação de Moçambique), seria transferido para Maputo, onde, entre outras funções, dirigiu a banda militar. Ali nos encontramos várias vezes graças à amizade mútua que cultivamos desde o primeiro encontro na vila da Gorongosa. Curiosamente, um desses encontros aconteceu durante as comemorações da Semana Nacional da Natureza, ambos integrados no programa de visita à Reserva de Elefantes de Maputo e que foi mais uma demonstração do antigo comandante do seu grande interesse pela preservação da Natureza em geral e da fauna bravia em particular.
Mais de três décadas decorridas, é justo recordar estas duas figuras míticas da
FRELIMO, que na altura certa ajudaram a defender o mais importante santuário de
fauna bravia de Moçambique, considerado o mais belo de África. Os efeitos da sua
acção benéfica no Parque sentiram-se durante vários anos, até 1981, altura em
que o conflito interno Frelimo/Renamo, que entretanto surgira, chegara à região
da Gorongosa e o Parque viria a ser atingido drasticamente, ficando em total
abandono até 1992. Mas esta é outra história - a mais negra de todas - a
contar por quem de direito.
4 - IMAGENS PARA A HISTÓRIA
4 - IMAGENS PARA A HISTÓRIA
Recepção da comitiva
da Frelimo na rua principal da vila da Gorongosa. Na foto o comandante Cara
Alegre (centro) é cumprimentado por um
militar do batalhão português. Seguem, um pouco atrás, eu próprio e restantes
membros da delegação do PNG. Do lado direito e parcialmente encoberto, o anfitrião
Dário Mosca.
Na varanda da pousada da Vila, o comandante recebe as boas vindas do
comerciante e industrial, Dário Mosca, perante as forças vivas, civis e militares, e uma grande
multidão de populares que o aclamaram e à Frelimo.
Chegada apoteótica de Cara Alegre e sua comitiva ao Chitengo.
Na varanda do edifício da administração
do Parque dou as boas vindas ao comandante da região militar da Frelimo da área
da Gorongosa. À sua direita e à civil o capitão comandante da companhia de
tropas portuguesa instalada no Chitengo.
Momento da cerimónia de boas vindas em que o funcionário do Parque, Francisco
Pranga, traduzia a intervenção de Cara Alegre.
Aspecto da concentração de pessoas no momento da cerimónia de boas vindas aos
representantes da Frelimo no Chitengo.
Mesa principal do almoço oferecido pela SAFRIQUE aos convidados, com Cara
Alegre ao centro, o capitão português e esposa à direita e à esquerda Celestino
Gonçalves e um comandante subalterno de Cara Alegre.
Novembro de 2007
Celestino Gonçalves
(Fiscal de caça-chefe de Moçambique - reformado)
Celestino Gonçalves
(Fiscal de caça-chefe de Moçambique - reformado)
NOTA À POSTERIORI
A presente crónica, que foi inicialmente escrita e publicada em duas partes, foi agora revista e compilada por forma a ficar menos extensa sem prejudicar a narrativa do acontecimento. Isso originou a retirada de parte do texto (algo repetitivo) e as fotos (não relacionadas directamente com o encontro PNG/FRELIMO de 1974), ambos constantes da segunda parte. Com este ajustamento, esperamos ter contribuído para uma mais rápida leitura do único post que descreve um acontecimento sem dúvida relevante para a história do Parque Nacional Nacional da Gorongosa.
Dezembro de 2019
Celestino Gonçalves