04 September 2007

27 - RECORDANDO OS CAÇADORES GUIAS DA ÉPOCA DE OURO DOS SAFARIS EM MOÇAMBIQUE



MANOEL POSSER DE ANDRADE

(Caçador Guia)

Manoel James de Arriaga Posser de Andrade, descendente de famílias nobres e donas de um dos maiores latifúndios de Portugal (Herdade de Palma), foi um dos pioneiros da caça turística em Moçambique na qualidade de caçador guia ao serviço da empresa Moçambique Safarilândia, concessionária das coutadas oficiais 4 e 5, situadas numa vasta região atravessada por um dos grandes rios do país – o Save.

Conheci este alto, louro e atlético nobre português (designação referida no livro Baron in África que retrata o seu colega Werner von Alvensleben), no Parque Nacional da Gorongosa, em 1964, quando ali esteve com outros caçadores guias para participarem, com os fiscais e guardas do mesmo Parque, na segurança ao Presidente da República Américo Tomaz e sua comitiva, durante a visita que foi a última de um Chefe de Estado português à colónia de Moçambique. Posteriormente, durante as minhas deslocações de trabalho às referidas coutadas, tive alguns encontros com este caçador, de quem conservo viva na memória a sua imagem e a sua delicadeza de trato. Dava a impressão ser uma pessoa de outra região do globo que estava ali não no exercício de uma profissão, mas como turista a curtir férias e a viver as emoções das caçadas. Tudo neste homem era diferente dos seus colegas, fruto naturalmente das suas origens e de um passado moldado em ambientes faustosos . Esta postura não lhe trazia qualquer desvantagem, antes pelo contrário, pois era muito estimado tanto pelos turistas que acompanhava, como pelos colegas e pelos trabalhadores nativos da organização que invariavelmente o apelidavam de grande senhor, de excelente colega e de gentleman. Para os turistas caçadores ele era o anfitrião encantador que, para além dos resultados dos safaris, tinha o privilégio de saber preencher os tempos livres contando histórias apropriadas ao ambiente africano que viviam.

O Posser de Andrade, como era tratado, ostentava um currículo invejável como caçador, nomeadamente em Angola, Quénia e Moçambique. Aos 23 anos ele iniciou os seus contactos com o continente africano encetando uma viagem de carro em companhia de quatro amigos, também eles ciosos de aventuras e de emoções fortes. Atravessaram o deserto do Sahará, desde Marrocos até ao Congo, numa viagem muito atribulada que durou seis meses. Os companheiros regressaram mas ele seguiu sozinho rumo à costa Leste acabando por se fixar no Quénia, território onde viria a encontrar excelentes condições para caçar.

Na condição de turista e de fidalgo endinheirado, fez safaris sobre safaris, convivendo ali com figuras célebres do mundo da caça e da indústria dos safaris, uma vez que o Quénia era já, na época, o principal território do continente africano onde se praticava o turismo cinegético em larga escala.
De caçador turista, acabou por se envolver numa carreira com que sempre sonhara: a de caçador profissional em África.

Foi precisamente como caçador guia que Posser de Andrade se manteve naquele território sob colonização inglesa, por alguns anos, adquirindo não só uma larga experiência nesta actividade como granjeou imensas amizades personalizadas por figuras que mais tarde foram caçar com ele a Moçambique. O célebre Barão de Blissen, figura preponderante do filme África Minha, foi um dos seus grandes amigos!

Depois do Quénia, Posser de Andrade seguiu para Moçambique para uma breve visita à Beira e sobretudo à Companhia Açucareira do Búzi, um potentado agrícola fundado muitos anos antes por seu avô Guilherme de Arriaga. Decorria o ano de 1940, altura em que praticamente todo o interior de Moçambique era fértil em animais selvagens. A região do Búzi, de planícies imensas e vastas savanas, era um dos grandes bastiões de fauna do território, desde o mais pequeno antílope ao elefante, daí ter atraído o nosso viajante que ali passou alguns meses a caçar antes de regressar a Portugal.
Já casado, voltaria pouco tempo depois à Beira, onde nasceu o primeiro dos seus cinco filhos. Embora ligado à empresa fundada por seu avô, a caça continuou a ser a sua principal ocupação.

Regressado de novo a Portugal, Posser de Andrade tenta adaptar-se ao modo de vida europeu e passa por vários e bons empregos graças não só à sua excelente preparação académica e aos vastos conhecimentos linguísticos (frequentou os melhores colégios suíços, franceses e portugueses) como à posição social herdada de uma família nobre e abastada. Viveu aqui o tempo que levou a família a atingir o máximo do seu agregado, depois do que as saudades de África e a paixão pela caça falaram mais alto ao seu coração e o levaram de novo a partir, no início da década de 60.

Angola foi agora o primeiro reduto que Posser de Andrade escolheu, atraído às lendárias Terras do Fim do Mundo, famosas pela sua fabulosa fauna bravia, criando ali uma empresa de safaris com o apoio de Manuel Ferreira de Lima e Jimmy Carvalho e Silva.


Em Angola - 1960


Mas não se demorou muito por aquelas afamadas terras angolanas pois Moçambique atraí-o de novo. Iniciara-se ali muito a sério, no início daquela década, a promissora indústria dos safaris de caça e nela estava envolvido o seu grande amigo e também famoso caçador, Werner Alvensleben, associado aos irmãos Abreu (Jorge e Mário), fundadores da referida empresa Moçambique Safarilândia.
É nas margens do grande rio Save, nas duas das melhores coutadas do território, em ambiente de extraordinária beleza paisagística, com acampamentos de sonho e rodeado de milhares e milhares de animais selvagens das mais variadas espécies (estimativas da época indicavam cerca de 1,5 milhões de cabeças) que Posser de Andrade, a rondar os 47 anos, reinicia uma actividade que sendo apoiada na sua vasta experiência do Quénia, Angola e Rodésia (actual Zimbabwe), muito contribuiria nos anos seguintes para o sucesso da empresa, cotada internacionalmente neste ramo como das melhores ao nível de África.
Quando chegou à Safarilândia encontrou, para além do Werner (que sendo director também conduzia safaris esporadicamente), mais três outros velhos amigos e experimentados caçadores, George Dedeck, Wally Johnson e Harry Manners, bem como os novatos Rui Quadros e Amadeu Peixe, que mais tarde se tornariam dos melhores caçadores guias de Moçambique. Outros guias se juntaram posteriormente a esta fabulosa equipa e de todos ouvi sempre referências elogiosas a respeito do Posser, genericamente tratado por grande senhor, por gentleman, e outros epítetos associados às pessoas de eleição.
Figuras mundialmente conhecidas, como o Príncipe Juan Carlos (actual rei de Espanha), Giscard d’Estaing, (ex-presidente francês), Rod Taylor, Hearst (da Times), Malon, Dupont, Heinz (o senhor dos molhos), Niarchos (armador grego), Conde Cinzano, Robert Ruack (escritor americano) e Nordoff (fundador da Volkswagen), entre outros, foram alguns dos muitos clientes do fidalgo e carismático caçador Manoel Posser de Andrade.


Manoel Posser de Andrade (esquerda) com o Príncipe Juan Carlos nas Coutadas do Save em 1962


Do artigo com o título “Grandes Caçadores – ‘Gentlemanoel’ Posser de Andrade”, publicado na revista portuguesa “Calibre 12” nº 33, de Julho 2003, cuja cópia me foi gentilmente enviada pelo seu filho Salvador Posser de Andrade e de onde extraí os dados biográficos aqui inseridos, transcreve-se a seguinte passagem que reforça a ideia que temos deste lendário português que trocou o seu bem estar na Europa por uma vida menos cómoda mas cheia de aventuras em África:

"Manoel Posser de Andrade, descrito por aqueles que com ele privaram como um gentleman, excepcional anfitrião e contador de histórias sempre com um sorriso, uma anedota para contar à volta de uma fogueira no mato depois de um banho retemperador em que se apresentava impecavelmente vestido, com boas roupas velhas, camisola Pringle de caxemira a que os anos acrescentavam patine, cabelo louro penteado e um ar simplesmente senhorial elogiando os atributos do seu cliente caçador em detrimento dos seus." (fim de citação)

O artigo acima referido acaba com estas significativas palavras:

"Gentle…manoel Posser de Andrade, um dos últimos grandes caçadores africanos portugueses e seguramente o menos conhecido!" (fim de citação)

Mas não se esgotam no artigo citado as referências ao Manoel Posser de Andrade. Vive actualmente nos Estados Unidos da América uma das pessoas que conheceu e conviveu muito de perto com o “Gentlemanoel”. Trata-se do João Abreu, filho do Jorge Abreu que era um dos donos e fundador da Moçambique Safarilândia. O João, que na época era um jovem estudante que ia passar as suas férias no acampamento de Zinave, tinha em todos os caçadores guias um amigo especial que o acarinhavam e levavam às caçadas. Dois deles eram mesmo muito especiais – o Werner von Alvensleben e o Manoel Posser de Andrade. Sabendo disso e valendo-me da amizade que partilho com o João, pedi-lhe que me ajudasse a falar destes dois carismáticos homens da selva. O que ele disse sobre o Manoel:


"Manoel Posser de Andrade, O gentleman no mato Africano!
Conheci o Manoel caçando em Moçambique nos anos sessenta e setenta.
Ele não só era um Caçador , mas tambem um anfitrião!
Ele morava no Zinave o Acampamento (Pousada) base da Moçambique Safarilandia , na margem Sul do Rio Save. Hoje o Parque Nacional do Zinave.
O seu dia começava ás cinco da manhã tomando café com os clientes depois de se ter assegurado que o equipamento estava em ordem!
Jeep, armas (específicas para a caça do dia). Sempre levava uma 375 e dependendo do animal levava uma 500 ou uma arma "leve", munições e mantimentos.
Antes do nascer do Sol já Manoel estava nas picadas em busca do troféu almejado por seu cliente.
Esse troféu podia ir desde um Javali até um Elefante!
Básicamente existiam dois tipos de clientes: O Caçador cliente e o Cliente caçador.
O Caçador cliente era o colega de amor pela Fauna Africana que estava em Africa em busca de uma presa definida, ou para bater algum record mundial ou para completar a sua colecção.
Aqui a conversa era específica e objectiva!
Onde vamos hoje? Tentar localizar o animal visto e perseguido anteriormente? Ou procurar numa nova região uma presa dentro do objectivo do Cliente? Este cliente sabia o que queria , como queria e o que tinha que fazer para o obter. Para este cliente Manuel era um colega melhor conhecedor do terreno, um apoio e um gestor de logística.
Manoel conhecia a região como a palma das suas mãos ele sabia se havia e onde havia animais recordes! Ele, assim como os colegas os tinham poupado para Clientes á altura.
Isso, aparentemente fácil, mas numa área maior que a Suiça e com uma população só de antílopes superior a 1,5 milhões de cabeças não era simples.
As horas passavam e os dois Caçador profissional e Caçador amador conversavam sobre a sua paixão comum: Caça e Fauna! A conversa era em voz baixa, com paixão mas nunca perdendo a concentração na busca.
Por vezes se passavam horas, dias, se localizava dezenas de outros animais da mesma raça pretendidos, mas não do porte desejado e se preservava em troca da possibilidade de encontrar o almejado troféu. Conforme as horas passavam e a tensão crescia o Manoel Caçador profissional começava discretamente a liderar a caça....A estimular o cliente, a manter o seu moral alto.
O dia continuava e o Sol começava a descer dependendo do estado de espírito do cliente Manoel decidia caçar um antílope para: 1- Alimentar a população local; 2- Relaxar a tensão!
Com um prémio de consolação se regressava ao acampamento para um banho , jantar e conversa sobre...Caça!
Antes, durante e depois do jantar se passavam momentos tão importantes como os passados no Jeep.
Manoel, já banhado e com o seu cabelo loiro ondulado impecavelmente penteado ! Vestido com caxemira "pringle" gerenciava subtilmente o ego deflacionado ou excessivamente inflacionado ( caso o dia tivesse sido bom) do seu cliente.
Se a conversa aquecia, com a sua habitual educação desviava a conversa para os seus tempos de estudante na Suiça ou para algum lugar do mundo onde ele sabia que o cliente mais "animado" tinha visitado e com isso gerenciava os animos e garantia o sucesso do Safari.
Nesta classificação de cliente se encontrava Robert Ruack o escritor Americano!
"A Safarilandia construíu para ele uma Pousada específica, que se veio a chamar "Ruack Camp" pois chegou a passar mais de 4 meses por ano escrevendo os seus livros.
Lá escreveu "Something of Value" e " Uhuru".
O Robert Ruack tinha uma fixação por Javalis. Ele assim como Nordoff ( o fundador da Volkswagen, tb cliente) queriam e eram os recordistas mundiais de Javali Africano.
Assim como eles nesta categoria foram G. Destaing ( Presidente Frances), Niarchos, e entre os famosos não caçadores: Juan Carlos da Espanha, Mallon, Dupont, Heinz, Rod Taylor, Hearst ( LA Times), Conde Cinzano,etc.

Com o cliente não caçador o dia de Manoel era muito diferente!
Ele era o caçador!
O Profissional!
O Professor!
O Psicólogo e o amigo.
Com este cliente Manoel começava o dia ensinando o que iriam caçar.
Os hábitos dessa espécie, onde alvejar, como, quando e que tamanho. As diferenças entre os sexos ( nunca se caçava uma femea).
Este cliente queria ter o prazer de caçar. Este prazer lhe seria dado mas sem ele saber estava ajudando no equilibrio ecológico da região pois sem o conhecimento do cliente Manoel tinha sido informado pela equipe de pesquizadores ( apróximadamente 20) residentes que espécie e que região estava com excesso ou com falta de certo tipo de animal
Estes pesquizadores eram candidatos a PhD pelas melhores Universidades de Zootecnia do mundo e em convénio com a direção da Safarilandia em troca da sua estadia nas coutadas nos davam o apoio científico de controle da Fauna baseado na equação: Animais/ Agua/ Alimentaçao.
Através do controle dessa equação este tipo de cliente subsidiava sem saber o controle da Fauna Africana sendo a sua caça controladora e não predadora.
Este cliente geralmente fazia ( sem saber) a sua caça ou pouco antes do almoço ou logo após.O resto do dia era passado muito discretamente ensinando este ser humano a respeitar o meio ambiente e a se sentir realisado o fazendo!
O fim de tarde e o Jantar era um evento social onde Manoel "o Gentleman", o Anfitrião, sobressaía!
Para este cliente e com este cliente ele contava histórias de outras caçadas e de gente famosa que tinham caçado com ele ou na Safarilandia.
Ele os fazia sentir como heróis vivendo o que provavelmente seria a memória mais forte de suas vidas.
Estes serões e de sua habilidade e savoir faire social realmente dependia o sucesso deste tipo de safari.
Nele Manoel, o Gentleman, animava as noites africanas!"
(fim de citação)

A época dourada dos safaris em Moçambique acabaria em 1974 devido à transformação política ocorrida e que levou o território à independência absoluta em 1975. Assim, os caçadores guias na sua quase totalidade debandaram outros países africanos, tendo o Posser de Andrade regressado a Portugal onde viveu alguns anos, fixando-se mais tarde e por motivos familiares em Cork, na Irlanda, onde faleceu em 1999, com 84 anos.

AGRADECIMENTOS- Ao Salvador Posser de Andrade, filho do caçador, pela cedência dos dados biográficos e fotografias.

- Ao João Abreu, filho de um dos fundadores da empresa Moçambique Safarilândia, pela aproximação ao filho do Manoel Posser de Andrade e pela excelente narrativa que acima reproduzimos.

Marrabenta, Janeiro de 2006
Celestino Gonçalves


NOTA: Texto (ligeiramente corrigido) do Álbum de Recordações (nº 15), publicado no site www.geocities.com/Vila_Luisa, em Janeiro de 2006
Marrabenta, Setembro de 2007
Celestino Gonçalves