CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO
(8)
FÉRIAS EM MOÇAMBIQUE
(2008/2009)
ENCONTRO COM PRÍNCIPES DA SELVA
Cândido, Celestino, Rui e Sérgio
Alguém apelidou um dia de “Príncipes da Selva” os caçadores guias que durante a época de ouro dos safaris de caça em Moçambique (1960/1975) foram os responsáveis pelos sucessos das caçadas de figuras ilustres do mundo das finanças, da política, da ciência, das artes, etc. As empresas e os privados concessionários das coutadas e das zonas livres de caça receberam aqui famosos e ricos homens do petróleo, da indústria automóvel, astronautas, actores de cinema, escritores, cientistas, chefes de governo, empresários, etc., que vieram caçar dos melhores troféus, muitos deles recordes mundiais que tornaram famoso o território como dos mais importantes em fauna bravia africana!
Antes do início desta indústria, Moçambique foi palco de chacinas implacáveis por parte de caçadores que dizimaram centenas de milhares de elefantes, búfalos rinocerontes e outras espécies de grande porte, apenas na mira do negócio do marfim, da carne e das peles. Eram os chamados caçadores profissionais, um estatuto que não estava previsto em qualquer lei da colónia.
Contudo, a profissionalização desta actividade viria a ser decretada em fins da década de 50, quando se criaram as coutadas oficiais e regulamentaram as actividades da caça turística (safaris de caça) . Foi simultaneamente criado o estatuto (regulamento) do caçador-guia, à imagem de outros países africanos (sobretudo no Kénia), onde esta profissão já vinha sendo exercida desde a década de 30.
O mítico e pomposo nome de White Hunter (caçador branco), criado nesses países para identificar precisamente os guias dos safaris de caça, conferiu a estes profissionais o estatuto de figura de confiança dos turistas-caçadores, que dos mais variados pontos do mundo se deslocavam a África, terra de negros, para realizarem as suas caçadas. Na gíria, pode ainda utilizar-se esta designação, mas desde a década de 70 que os clubes e organizações internacionais ligadas à caça, e de uma forma geral toda a imprensa da especialidade, por razões óbvias, aboliram a mesma. Passaram a chamar-se de Professional Hunters !
Ser caçador-guia não bastava saber dar tiros e ter alguma coragem para enfrentar os animais, como era a maioria dos caçadores em Moçambique antes do início da indústria dos safaris de caça em 1960. Esta nova profissão implicava que o caçador reunisse um conjunto de qualidades que completassem as exigências de um safari de caça, cuja responsabilidade recai sobre o guia, tais como: ser caçador completo (saber caçar todas as espécies); conhecer as línguas dos potenciais clientes; conhecer e saber aplicar primeiros socorros; ter conhecimentos de culinária; ter noções de mecânica automóvel; saber os dialectos locais; ter boa cultura geral; etc., etc.
Como em Moçambique não havia formação profissional para tal actividade, de início as exigências não foram muito rigorosas para a concessão das respectivas licenças, bastando a prova de ter tido anteriormente licença de caça de 1ª classe e declaração médica atestando ser conhecedor dos primeiros socorros.
De entre os mais de 60 caçadores guias licenciados durante a administração colonial, só cerca de um terço tinha os requisitos exigidos para a profissão, no que respeita à experiência como caçadores. Os restantes eram medianos caçadores desportistas, os chamados caçadores de fim de semana, que se entusiasmaram pela caça e naturalmente foram seduzidos pela fama de que gozavam os “príncipes da selva” e pelos excelentes salários que auferiam nesta actividade! Durante a minha carreira como fiscal de caça, tive a oportunidade de conhecer praticamente todos esses “príncipes”, que eram, no fundo, meus colegas na conservação da fauna bravia, por imposição da própria lei. Melhor, convivi de perto com uma boa parte deles, com quem fiz e conservo boas amizades! Infelizmente, a lei da vida já levou alguns desses bons amigos!
A interrupção da indústria dos safaris em Moçambique, em 1975 (ano da independência do país), e o prolongado período da guerra civil, que não permitiu o recomeço dos safaris durante cerca de vinte anos, obrigou à debandada de quase todos os profissionais para outros países africanos, para Portugal e Brasil.
Contam-se pelos dedos de uma mão aqueles que cá ficaram ou regressaram e entre eles apenas dois voltaram às lides venatórias, cujo recomeço se verificou por volta de 1995. São eles o Rui Quadros, que regressou no ano 2000 e o Sérgio Veiga, que nunca abandonou Moçambique! Ambos são filhos da terra e têm um historial bem interessante, de profissionais competentes e cujos percursos tive já a oportunidade de descrever em resumidas biografias que publiquei no meu site original e em algumas comunidades moçambicanas com blogs na Internet.
E foi com estes dois amigos que almocei e passei um excelente dia, na casa do Sérgio, no Bairro do Triunfo, aqui em Maputo. A meio da tarde juntou-se a nós o velho Cândido Veiga, pai do Sérgio, também ele um histórico caçador-guia (já reformado), que vive ali ao lado, na rua das Massalas, onde igualmente mora outra sua filha.
Como sempre acontece quando estou em Moçambique, frequento a casa do Sérgio com regularidade, porque nunca me canso de conhecer as suas aventuras, os seus sucessos e de uma forma geral o que vai acontecendo neste país relativamente à caça, aos caçadores e às actividades cinegéticas em que ele participa ou simplesmente acompanha de perto. A sua recente missão em Cabo Delgado (Palma e Mocímboa da Praia), como responsável pela segurança de uma equipa americana de prospecção de petróleo, contra possíveis ataques de leões que na área têm últimamente apavorado as populações (só em 4 meses comeram 26 pessoas), só por si, deu para uma prolongada e apaixonada conversa!
E porque já biografei de algum modo estes dois amigos, pouco me resta dizer deles se não acrescentar que ambos continuam activos, mais o Sérgio que com os seus 55 anos está praticamente no auge da sua vida profissional e divide a mesma entre a caça, a pesca, a caça submarina, a pintura e a escrita. Depois da publicação, em 2005, do seu primeiro livro “ O Cântico da Galinha do Mato”, prepara agora a publicação das narrativas do seu trabalho junto dos americanos, onde viveu os dramas das populações vítimas do flagelo dos leões e abateu dois destes felinos! Um trabalho cujo manuscrito acabei de ler e me fascinou bastante, não tanto pelo relato dos acontecimentos que são muito comuns aos que vivi durante a minha carreira profissional, mas pelo sentido poético muito especial que o Sérgio imprime às suas narrativas.
E por aqui me fico para não roubar o interesse que certamente vai despertar este seu novo livro!
Menor actividade como caçador-guia tem tido o Rui Quadros, que se virou para outras actividades mais consentâneas com a sua idade (já na casa dos 70) e só esporadicamente pega nas armas e bagagens para um ou outro safari, sobretudo para acompanhar antigos clientes que continuam a requisitar os seus serviços!
Como complemento desta “Carta”, deixo aqui os links dos trabalhos que publiquei anteriormente sobre estes dois "príncipes da selva", particulares amigos que muito estimo!
1 - SOBRE O SÉRGIO VEIGA
ÁLBUM 9 - 2003
Ver ainda a Carta nº 15 das férias de 2004/2005, abaixo transcrita
2 - SOBRE O RUI QUADROS
ÁLBUM 11 - 2003
http://faunabraviademocambique.blogspot.pt/2010/05/79-cacador-guia-rui-quadros-minha.html
REPORTAGEM FOTOGRÁFICA
Placa da rua da Massala, no Bairro do Triunfo, onde vive o clã Veiga
Início da rua das Massalas. A praia fica a cerca de 40 metros!
Trecho da mesma rua. Como todas as do Bairro Triunfo é de terra batida!
A casa do Sérgio. O carro dos safaris fica na rua!
Na garagem fica o carro da cidade e o barco!
Sérgio, Celestino e Rui, no cantinho do quintal onde almoçamos
O Cândido Veiga sempre bem disposto!
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O Cândido e o Rui mostram mazelas das caçadas!
Cicatrizes de garras de um leão na perna do Cândido!
Rui e Sérgio vendo álbuns de fotos das suas caçadas!
O simpático casal Cândido Veiga em frente da sua casa
No interior da casa do Cândido fala-se de histórias que marcaram a vida destes "príncipes da selva"!
Cândido, Rui e Celestino
O simpático Cardoso, cozinheiro do Sérgio. Ele faz um caril divinal!
Uma foto para recordar. O fiel Gunga fica sempre por perto do dono!
Última conversa à despedida
Horas de ir embora porque a tarde chegara ao fim!
Lá deixamos o Sérgio que em breve voltamos a visitar!
Saudações amigas, aqui da beira do Índico
Maputo, 25 de Dezembro de 2008.
Celestino (Marrabenta)
NOTA A POSTERIORI
Dois destes velhos amigos, infelizmente, já “partiram”, quase em simultâneo, conforme na altura dei conta nas redes sociais. Passam já cerca de cinco anos. Trata-se do Cândido Veiga e do Rui Quadros.
Lisboa, Outubro de 2015
Celestino Gonçalves
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EM TEMPO
Transcrevo a seguir o teor da Carta nº 15, das férias de 2004/2005, por conter mais dados biográficos relativos ao Sérgio Veiga e descrever uma interessante viagem à ilha da Inhaca onde o mesmo mantém um discreto mas modelar acampamento turístico.
CARTAS DA BEIRA DO INDICO
(15)
UM PASSEIO À INHACA
Várias tentativas falhadas de ir à Inhaca levaram-me a admitir que teria de regressar ao velho continente com mais uma frustração no que às viagens fora de portas diz respeito!
Valeu ter prolongado a estadia em Moçambique muito para além do previsto para que a tal oportunidade acabasse por surgir. Um telefonema já noite adiantada do Sérgio Veiga, anunciava-me a viagem para o dia seguinte, aproveitando um passeio turístico com dois clientes portugueses.
Antes das 7 lá estava na casa deste velho amigo, em pleno Bairro do Triunfo, onde ele e seu ajudante já estavam nos preparativos para meter o barco na água, ali mesmo em frente. Para além dos 5 ocupantes, também o “Gunga”, um bonito perdigueiro inseparável companheiro da caça e da pesca do Sérgio, tomou lugar no bote.
O mar estava calmo e brilhava como um espelho! Só a neblina matinal nos roubou o belo espectáculo da cidade, que deixamos para trás e aos poucos ficou reduzida às silhuetas dos grandes prédios recortadas no horizonte. Pela frente foi-se divisando a imagem das duas ilhas, com a dos Portugueses a fundir-se na vizinha Inhaca.
Uma hora de viagem estupenda e estávamos lá, em plena praia fronteira ao acampamento do Sérgio, uns bons quinhentos metros à direita do complexo turístico da Ilha. O programa não permitiu mais tempo ali do que o suficiente para trocar de roupa e colocar apetrechos de pesca e mergulho no barco.
Contrariando os restantes companheiros, que dispensavam comer algo, lancei mão de duas latas de salsichas que faziam parte da minha bagagem de comezainas (que levei e à socapa) e pedi ao cozinheiro para as preparar rapidamente. A fome que tinha dava para devorar qualquer daqueles avantajados mata-bichos de garfo dos velhos tempos das minhas andanças pelo mato!
Já estavam todos de novo a bordo para o périplo às ilhas, reclamando a minha presença, quando peguei na frigideira ainda no fogo e corri com ela para junto dos meus companheiros oferecendo a cada um (incluindo ao “Gunga”), uma bela e bem quentinha salsicha. Ninguém se fez rogado e lá fomos mar a fora mastigando o belo manjar, que foi providencial já que o regresso ao acampamento aconteceu apenas pelas 4 da tarde, altura em que recarregamos os estômagos com um belo caril de lulas!
Há mais de dez anos que não visitava a Inhaca e as recordações que conservava não eram de todo agradáveis, já que da última vez que lá estive esta ilha estava ainda sob grande pressão de uma elevada população humana que ali se refugiara durante o período da guerra civil. Actualmente encontram-se ali cerca de seis mil pessoas, distribuídas sobretudo pela orla costeira e que são ainda um peso excessivo para a capacidade da ilha relativamente à agricultura e aos produtos do mar, considerando que se trata de uma reserva natural onde apenas a indústria do turismo deveria ter lugar.
O Sérgio, para além de experimentado caçador-guia, é um dos mais consagrados pescadores e mergulhadores desportistas de Moçambique, detentor de muitos recordes de espécies de peixes raros. Há dois anos retratei (ver Álbum de Recordações do meu Site pessoal www.geocities.com/Vila_Luisa ) este homem como das personagens mais multifacetadas que tenho conhecido nesta terra, devido às várias actividades profissionais que tem abarcado e à sua extraordinária capacidade de as desenvolver. Caçador profissional, pescador, pintor, jornalista, futebolista (jogador e treinador), atirador de stand e fotógrafo, são actividades que o Sérgio desenvolveu nos últimos trinta anos. Mas recentemente iniciou outra que já então anunciei: a de escritor, tendo sido publicado em Novembro último o seu primeiro romance “O Cântico da Galinha do Mato” (ver fotos em “Pictures” nas Comunidades da Beira, Inhambane e MGM), que é um sucesso comprovado pela segunda edição já em curso. Ele é hoje um dos meninos bonitos da cidade, visitado na sua casa por muitos fãs e até por gente da comunicação social, de cá e de além fronteiras, que desejam fazer notícia dos sucessos da sua aliciante carreira.
Estou a falar de um dos poucos “intrusos” extra população local que desenvolvem na Inhaca actividades turísticas. Há mais de trinta anos que ele tem base de apoio na ilha para as suas incursões piscatórias e de caça submarina fora da zona de reserva e para os mergulhos nos locais de observação das grandes espécies marinhas. O Sérgio conhece como ninguém esses locais, que ajudou a preservar como santuários dessas espécies e que são uma atracção turística, aqui mesmo às portas da capital. O passeio que ele nos proporcionou durante um único dia, só foi possível pela sua grande experiência e conhecimentos desta região.
Aproveitando a situação da maré, navegámos em redor da ilha dos Portugueses, ao longo da linha de areias que faz ligação à Inhaca. Junto desta atravessamos na direcção do oceano até ao Farol, passando pela carcaça enferrujada de um velho navio ali afundado desde a segunda guerra mundial. Fundeamos junto da praia da ponta mais a sul da ilha, onde a paisagem é encantadora pelos contrastes da vegetação, das rochas e das areias, com o mar a perder de vista. Ali nos regalamos a mergulhar nas águas calmas e límpidas das piscinas naturais, observando os peixes multicores!
A segunda fase deste passeio incluiu uma paragem junto do velho navio afundado, para alguns mergulhos e observação das espécies. Isso foi feito apenas pelo Sérgio e pelo seu cliente mais novo, atendendo à profundidade das águas e aos cuidados a ter com os tubarões, frequentadores desse local para caçarem os grandes peixes que ali procuram abrigo.
Navegamos depois pelo lado oriental da ilha dos Portugueses e a meio desta, onde a paisagem mais se parece com um deserto africano de areias, fundeamos de novo para nos deliciarmos com mergulhos em águas calmas e límpidas.
Antes do regresso ao acampamento, o Sérgio proporcionou-nos a observação de uma zona de corais onde arpou um polvo de razoáveis dimensões, suficiente para o jantar dos elementos do grupo.
Pelas cinco e trinta da tarde iniciámos o regresso à capital, mas as condições do mar eram já bem diferentes. Levantava-se o bem conhecido vento sul que normalmente assola a baía ao fim do dia e que obriga a viajar sob ondas crispadas e muito inconvenientes para as pequenas embarcações como a nossa. A viagem durou mais meia hora do que o previsto e ocorreu sob o constante chapiscar das ondas que nos encharcaram até à medula, não obstante os impermeáveis que usamos.
O regresso do belo passeio à Inhaca foi de facto um autêntico suplício que só terminou em areia firme frente ao Bairro do Triunfo, pelas 19 horas. Só o Sérgio e o seu ajudante se mostravam tão serenos como se tivessem feito a travessia da baía em águas tão calmas como aquelas da viagem de ida. Até o “Gunga” aparentava enjoo!
Mas valeu a pena, pelo dia inesquecível que passamos na lendária e muito bonita ilha da Inhaca!