15 January 2008

33 - LIVROS SOBRE FAUNA BRAVIA, CAÇA E CAÇADORES DE MOÇAMBIQUE


(11)


Título

AFRICAN TRAILS

Autor

FRANCISCO MAGALHÃES

(XICO)


(Caçador desportista)

Ano: 1996 (Edição em inglês, esgotada)
Edição em português: no prelo (Brasil)






1 - BREVES NOTAS SOBRE O LIVRO



Este interessante livro relata a experiência do autor como caçador desportista em Moçambique durante os últimos quinze anos da administração colonial portuguesa (1960/1975). Trata-se de uma obra cuja edição foi feita em Inglaterra em circunstâncias que prejudicaram os direitos do autor, levando-o a processar a editora e em consequência disso encontram-se suspensas as vendas e as reedições em língua inglesa. Entretanto e dado o sucesso alcançado no Brasil, o autor tem já no prelo a reedição (melhorada) em português, esperando-se que sai-a em breve.


Alguns dos relatos das caçadas referem a participação do autor nos trabalhos das brigadas de controle dos animais, sobretudo elefantes, que estavam a meu cargo na província de Manica e Sofala, alguns deles na área do Parque Nacional da Gorongosa. Também revela a sua grande paixão pelo mesmo Parque com cuja administração colaborou tanto em trabalhos da sua profissão, que foram as instalações eléctricas em alguns edifícios do Chitengo e nos da Bela-Vista, como na elaboração dos mapas das picadas com desenhos dos animais mais representativos. Esses mapas, tal como um outro abrangendo toda a província, foram oficializados e vigoraram até muito recentemente.


A descrição pormenorizada que ali se faz das regiões de caça frequentadas pelo autor e do seu potencial faunístico, são um excelente contributo para os estudos que se venham a fazer nessas mesmas áreas, sobretudo para localização de algumas espécies raras que sofreram elevado desbaste durante a guerra civil que grassou no país desde 1977 a 1992.




2 - O QUE ESCREVI ACERCA DO XICO NO ANO 2000 (*)


ÁLBUM DE RECORDAÇÕES
- 1 -
FRANCISCO MAGALHÃES
(XICO) 


  Francisco Magalhães, (Xico), com um belo exemplar de Palapala (Hippotragus niger), abatido em 1965 no tando do Suzano, 
perto do rio Tôa, afluente do Revuè, na Província de Manica e Sofala – Moçambique.


Nascido em Moçambique, em 1936, desde criança que o Xico se habituou a conviver com a natureza e logo se apaixonou pela caça. Seu pai foi chefe de posto administrativo e viveu em regiões das mais famosas em fauna bravia, como Marromeu, Lacerdónia, Inhaminga, Gorongosa, Vila Machado e por último Vila Pery, actual Chimoio.


Caçador desportista por excelência, estudioso e apaixonado pelos problemas da fauna bravia, depressa despertou a minha atenção após a chegada a Vila Pery no início de 1963. Para além da caça tinha ainda outra grande paixão: a fotografia ! Raramente se encontravam, no seio dos caçadores, indivíduos com estes atributos !


O Xico era um profissional do ramo da electricidade, com formação superior obtida na África do Sul. Esta sua actividade contribuiu também para a nossa aproximação: elaborou e executou projectos de electrificação para o Parque Nacional da Gorongosa, - a cuja administração estive ligado nessa altura - e também para o Posto de Fiscalização de Caça de Vila Pery.

Conhecedor das áreas de caça da região e do seu potencial faunístico, foi o meu melhor colaborador na identificação das mesmas, quer elaborando mapas e gráficos, quer acompanhando-me nas deslocações, sobretudo quando havia operações de controle de animais em defesa de pessoas e bens, muito frequentes naquela zona central de Moçambique.


No escritório-laboratório da residência da família Magalhães – uma das melhores da cidade - passámos muitas horas ao serão, revelando filmes e fazendo fotos e mapas ilustrados com desenhos dos animais típicos das respectivas áreas. Muitos destes trabalhos foram oficializados e alguns deles ainda estão em uso, nomeadamente os respeitantes aos Parques Nacionais, Reservas e Coutadas. O Xico era perito nestes trabalhos e executava-os com grande satisfação, nunca tendo cobrado por eles qualquer importância !


Dizia-me que a melhor recompensa que podia receber era a nossa confiança e o reconhecimento das suas virtudes como caçador desportista, respeitador das leis da caça e simultaneamente como conservador da fauna bravia. Não tive pois qualquer dúvida em lhe facultar a realização de alguns dos seus sonhos, integrando-o muitas vezes nos meus trabalhos de controle de animais de grande porte, nomeadamente de elefantes, quando em defesa de pessoas e bens. Foi um dos raros caçadores estranhos aos Serviços da Fauna a quem facultei semelhante participação, durante a minha actividade e a sua preciosa ajuda revelou-se sempre muito útil e confirmou o seu valor como caçador.


O  Xico com o autor junto de um elefante problemático abatido durante uma 
operação de protecção  às culturas dos naturais das povoações a 
Noroeste do Parque Nacional da Gorongosa, na década de 60 
(foto extraída do livro “African Trails”)

Publicou em 1996 um interessante livro, em inglês, sobre as suas aventuras como caçador, com o título “African Trails”, descrevendo ali algumas experiências sobre a sua participação naquelas brigadas. Está a preparar a edição em português.


Saiu de Moçambique em 1976, em circunstâncias que muito o traumatizaram e que deixou transparecer naquele mesmo livro.


 Imagem da capa do livro “AFRICAN TRAILS”

Vive há largos anos no Brasil, provavelmente sonhando com a sua terra natal e com os belos momentos que ali passou nas caçadas que tanto o emocionavam! Pela admiração e respeito que sempre me mereceu e pela amizade recíproca que ao longo dos anos temos mantido, o primeiro lugar neste álbum dificilmente poderia ser ocupado por outro !


Voltarei, em local diferente, a falar do Xico e de seus saudosos pais !

(*) - Álbum nº 1 da série "ÁLBUM DE RECORDAÇÕES" do meu site
www.geocities.com/Vila_Luisa

NOTA A POSTERIORI
O servidor "Geocities" deixou de estar activo a partir de 2008, tendo sido republicados todos os trabalhos ali inseridos no meu Blog http://faunabraviademocambique.blogspot.pt/ 




3 - VOLTANDO A FALAR DO XICO E DA FAMÍLIA


Volvidos oito anos após aquela publicação, a promessa de voltar a falar do Xico e de seus saudosos pais cumpre-se agora. Faço-o com satisfação redobrada porque ao longo destes anos recebi imensas mensagens de amigos comuns para saberem notícias dele, alguns antigos colegas de escola que sem dúvida vão gostar de ter mais informações. E porque já visitei o Xico na sua terra de adopção, o Brasil, em 2006, em retribuição de três visitas que dele recebi aqui em Portugal, tenho motivos adicionais para enriquecer a pequena biografia que abriu os "Álbuns de Recordações" do meu site no ano 2000.


Voltando aos tempos de Vila Pery para descrever a família Magalhães (casal e dois filhos), queria dizer que este clã desfrutava de grande simpatia da parte da população da bela cidade do planalto de Chimoio, em cujo meio se encontrava radicado desde o início da década de 30 (o Xico nasceu lá em 1936).


O patriarca, António Correia de Sousa Magalhães (conhecido por "Magalhães Careca"), descendente de uma antiga família cuja árvore genealógica revela ligação à irmã do navegador português Fernão de Magalhães, foi para Moçambique depois de ter feito os seus estudos para oficial da Marinha nos anos em que algumas figuras conhecidas, como o antigo presidente da república Almirante Américo Tomaz, igualmente fizeram tal formação. Seguiu contudo a carreira administrativa como chefe de posto da Companhia de Moçambique, mas quando esta majestática foi integrada no Estado, em 1941, ele abandonou a carreira e fixou-se em Vila Pery (então uma pequena vila) para se dedicar à indústria de madeiras, construção civil e outras actividades imobiliárias. Um dos seus melhores negócios (assim o dizia), foi a compra da fazenda "Mandigos", que inicialmente pertencera aos caminhos de ferro de Moçambique e depois aos irmãos Fernandes até chegar às suas mãos. Uma propriedade de grandes dimensões situada na parte sul da vila e dividida desta apenas pela estrada Beira-Rodésia, que adquiriu justamente por antever o desenvolvimento da futura cidade capital do Chimoio e a sua importância como área de expansão da mesma.


O sucesso das suas empresas depressa o tornaram uma figura bem conhecida e admirada não só na vila mas ao nível da província de Manica e Sofala que abrangia praticamente todo o centro de Moçambique (entre os rios Save e Zambeze), cuja capital era a cidade da Beira, a segunda maior do território. O desenvolvimento da pequena vila dos anos 40, transformada numa airosa e bonita cidade nos anos 50, muito se ficou a dever ao dinamismo e colaboração deste velho colono, que através de parcelamentos sucessivos e adequados permitiu a criação da zona industrial, aerodromo, campo de futebol, feira de exposições agro-pecuárias, laboratório de investigação veterinária e pequenas quintas para agricultura e habitação. Parte dessas parcelas, nomeadamente as de benefício público como o aeródromo, feira, campo de futebol e laboratório veterinário, foram por ele oferecidas ao Estado.



O maior e mais belo conjunto arquitectónico da cidade, constituído pelo prédio e cinema Montalto, construído no centro e com frente para as duas principais avenidas, integrou, para além de uma moderna sala de espectáculos, um espaçoso café, lojas, escritórios e apartamentos de habitação. Foi um dos mais arrojados projectos por si encabeçados, de parceria com outros dois bem conhecidos empresários da época, Engº Jaime Guedes (construtor civil e empreiteiro de estradas) e Jorge de Abreu (da Somocine e Hoteis Tivoli e Turismo de Lourenço Marques). A empresa que formaram - Sociedade de Construções Montalto - daria assim o nome a este complexo e ao próprio cinema que ainda hoje é a única sala de espectáculos da cidade.


Mas a empresa que lhe terá dado mais sucessos, em termos financeiros, era a LICA - Luso Industrial Comercial e Agrícola, Lda, que comercializava internamente e exportava as ricas madeiras de Moçambique, preparadas nas duas serrações que possuía em Gondola e Inhamacoa. Este negócio, considerado dos mais rendosos no território, levava o velho Magalhães a deslocar-se com frequência ao estrangeiro, o que lhe dava a oportunidade de conhecer muitos países de todos os quadrantes e o tornava uma pessoa bem informada e esclarecida com quem dava gosto conversar.



A matriarca, D. Rosalina Barradas, de uma família com vários elementos igualmente radicados em Vila Pery, há muitos anos, tornara-se uma das principais damas da sociedade local, tanto pelo estatuto do próprio marido como pela simpatia que irradiava e pela sua acção benemérita junto dos mais desfavorecidos.

Boa esposa, boa mãe, boa amiga e maravilhosa anfitriã, D. Rosalina tinha o seu tempo sempre ocupado, quer nas lides da casa quer nos compromissos sociais ou ainda a costurar, um hobby que muito adorava. E porque era um hobby, apenas confeccionava roupas para a família e amigas e nunca cobrava por isso qualquer importância!
A casa da família, construída num vasto talhão na parte sul da cidade, não muito longe do centro, era das melhores vivendas de Vila Pery e estava discretamente protegida por muros periféricos com grades metálicas cobertas por espessas sebes de buganvílias e lantanas sempre bem aparadas. De piso térreo e arquitectura moderna ao estilo das moradias dos bairros chiques das cidades da África do Sul e da Rodésia, compunha-se de dois corpos unidos e em sentidos opostos. O interior, de divisões espaçosas e bem arejadas, era dotado de amplas portadas e janelas envidraçadas. No exterior e ao fundo do quintal, alinhavam-se os anexos de apoio constituídos por uma ampla garagem, escritório, dependência de empregados e estúdio fotográfico. Na parte da frente e à direita da casa estava um pequeno e airoso challet destinado aos trabalhos de costura de D. Rosalina, uma autêntica sala de visitas onde ela recebia e tomava chá com as amigas. Mais tarde o Xico construiu um pavilhão anexo à garagem onde instalou uma escola de judo, outra das suas grandes paixões e que alcançou grande sucesso na cidade, chegando a ter mais de três dezenas de praticantes!


Tudo naquela casa espelhava o bom gosto de D. Rosalina! A sala comum, requintadamente equipada com móveis das melhores madeiras, onde se destacava uma enorme mesa para as refeições (nota evidente do espírito de bem receber desta família), era o espaço onde os Magalhães se orgulhavam de receber as suas inúmeras visitas, muitas delas partilhavam das suas refeições mesmo que chegassem em cima da hora. Contígua a esta sala, entre a cozinha e a ala dos quartos, havia a sala de música onde o Xico muitas vezes ao serão deliciava a família e os amigos tocando ao piano as músicas mais em voga na época e também alguns clássicos que bem dominava. Ele ainda agora recorda com muito orgulho que foi o primeiro pianista do conjunto dos irmãos Muge, célebre em Moçambique na década de 60!


Os quadros, as molduras com fotos de família, os bibelôs, a tapeçaria e os arranjos de flores sempre viçosas, tudo disposto nos lugares adequados, condiziam igualmente com o ambiente sóbrio e funcional da casa. Na grande cozinha, as flores eram substituídas por vários cestos repletos de boa fruta tropical da região do planalto, dispostos ao longo das bancadas de mármores que ladeavam as paredes.


O quarto do Xico, o terceiro do fim da ala respectiva, era uma autêntica suite, espaçoso, com banheiro privativo e uma salinha de entrada, tornando-o assim independente mesmo para receber visitas. Estava decorado discretamente com motivos de caça, fotografias artísticas, quadros e outros objectos da sua autoria. Numa vitrine encontravam-se dos melhores livros e álbuns sobre a caça, vida selvagem, fotografia, judo e música, as suas paixões e hobbys predilectos. E num armeiro especial, a um canto da salinha, estava o património pessoal de que mais se orgulhava, que era o arsenal de armas de caça próprias para abate de todo o tipo de animais, incluindo elefantes, bem polidas e oleadas e que faziam inveja a qualquer caçador profissional afamado. Cada uma destas espingardas tinha a sua história, que ele contava com o entusiasmo próprio dos caçadores, sobretudo quando referia os seus sucessos nas caçadas aos búfalos, a espécie que o fez viver emocionantes aventuras e que tão bem relatou no seu livro "Afican Trails".


Aquele belo apartamento integrado na casa dos Magalhães fora concebido e mobilado para os dois filhos do casal, mas o João, o mais novo, só o utilizava quando ali ia de férias, visto que, ao contrário do Xico que regressou da África do Sul após os estudos, ficou em Johannesburg a trabalhar na IBM depois de concluída a formação em engenharia de sistemas de computadores. O John, como era (e ainda é) conhecido, viria a adquirir uma elevada craveira técnica dentro da IBM, acabando por ser requisitado pelas grandes empresas deste grupo sedeadas no Canadá, onde se radicou há mais de vinte anos e desempenha altos cargos como conselheiro, gerente de sistemas, vice presidente e consultor sénior da Logitek (Toronto) e director do grupo DMR (Ottawa).


Durante os seis anos que residi em Vila Pery (1963/1968), fui frequentador assíduo da casa dos Magalhães, graças à amizade enraizada com o Xico que me facultava o seu pequeno mundo onde me sentia bem justamente pelo muito de comum que tínhamos, nomeadamente na área da fotografia que ele tão bem dominava e que também era um dos meus hobbys preferidos. No seu bem apetrechado estúdio passámos imensos serões, revelando filmes, fazendo fotos e trabalhando-as nas mais diversas formas, o que me permitiu aumentar os conhecimentos que já tinha nesta matéria.

Mas o calor humano que ali se respirava era sem dúvida o factor máximo que me dava o à-vontade e o prazer de conviver com esta família, cujo patriarca me tratava carinhosamente por poeta (alusão ao facto de usar o cabelo comprido) e com quem muito aprendi porque era um bom conversador, senhor de uma invulgar bagagem geral de conhecimentos e com grande experiência de vida em Moçambique. Era também um acérrimo crítico à governação colonial e um fervoroso adepto de uma independência baseada nos princípios democráticos, sem quaisquer barreiras de caris rácico ou religioso.


O Xico, que entretanto (1973) constituíra família casando com a simpática Fernanda, filha de um funcionário da Textáfrica (a grande fábrica de tecidos instalada no início da década de 60 nos subúrbios de Vila Pery e que muito contribuiu para o grande desenvolvimento da cidade), mudara-se para uma casa que o pai lhe oferecera como prenda da casamento, situada junto das pistas do aeródromo e integrada numa parcela de terreno com 14 hectares. Ali iniciou um projecto agro-pecuário (cultivo de forragens e criação de ovelhas), mais um dos seus planos para rentabilizar os vastos terrenos da família.


Os sonhos desta família começaram a desvanecer-se com o falecimento súbito, em 1973, do pai Magalhães e ruíram completamente com as transformações políticas operadas em Moçambique após a independência, em 1975.

Tudo se complicou com as medidas tomadas pelas novas autoridades, que decretaram, em 2 de Fevereiro de 1976, a nacionalização dos bens de rendimento como prédios, terrenos, ou qualquer bem imóvel com excepção da própria casa de habitação. A família Magalhães perdeu praticamente tudo, um verdadeiro império comercial, industrial, agrícola e imobiliário!

Entretanto o Xico já havia sido privado de todas as suas espingardas de caça, recolhidas pela polícia como medida de segurança própria de quem vinha de uma guerra e receava complicações que alterassem o processo de descolonização em curso. Uma medida que foi acompanhada com a proibição do exercício da caça, aquilo que ele mais gostava fazer nos tempos livres!


A população portuguesa, desprotegida face à retirada das tropas e de todas as forças de segurança do regime colonial, iniciou a debandada logo após o acordo de Luzaka ente a Frelimo e o governo português, em 7 de Setembro de 1974. Muitos daqueles que insistiram manter-se após a independência em 25 de Junho do ano seguinte, viram-se a braços com imensas dificuldades, muitas vezes pelo exagero na actuação dos agentes de autoridade do novo poder da Frelimo. Um pequeno problema era transformado em grande conflito lesa pátria e o Xico acabou por ter o primeiro, relacionado com duas granadas que a polícia portuguesa lhe entregou anos antes, destinadas ao encarregado de uma das serrações da família para defesa das instalações que já haviam sido atacadas por grupos de guerrilheiros. O Xico nunca entregou essas granadas e guardou-as na sua casa acabando por se esquecer delas até que uma busca inesperada da polícia as detectou. Foi preso e viu-se envolvido num processo que acabou por ter um desfecho feliz graças à boa reputação que desfrutava entre a população negra local. Esteve eminente a sua expulsão de Moçambique com a aplicação da célebre sentença conhecida pelo 24/20, que era aplicada a torto e a direito e que dava aos "réus" 24 horas para sair de Moçambique e o direito a levar 20 quilos de bagagem!

Um novo caso surgiu, tempos depois e ditou o fim das suas aspirações e do resto da família, incluindo da mãe que, na altura, Fevereiro de 1976, se preparava para regressar da África do Sul onde fora visitar o John.
Uma velha espingarda de 1840, da antiga colecção do Xico, legalizada como arma de panóplia, incapaz de dar tiros há mais de cem anos e que ficara na casa dos pais dependurada na parede do escritório junto de alguns troféus de caça, foi o objecto do "crime" que levou ao novo conflito com as autoridades.




A feliz coincidência da ida do Xico com a família (esposa e o filho, Rui, de 2 anos) à Rodésia, para receber a mãe no aeroporto de Salisbury, evitou a sua prisão que esteve eminente poucas horas depois de ter saído de Vila Pery. Uma denúncia de que ele mantinha armas em casa levou a polícia da Frelimo a fazer uma busca ao local certo, onde recolheram a velha espingarda. De seguida dirigiram-se à sua residência para o deterem e como não estava foram ao cinema onde normalmente trabalhava como encarregado da cabine de projecção. Interromperam a sessão que estava a decorrer, num aparato como se procurassem um perigoso bandido. Vasculharam praticamente todos os locais da cidade que ele habitualmente frequentava e no hotel Atlântida chegaram a fazer buscas no interior do forno industrial da respectiva cozinha!



A cunhada Edite (irmã da esposa), ainda a residir em Vila Pery, avisou-o por telefone do que se estava a passar. O Xico e família não voltaram à sua terra abdicando assim de todos os seus bens em troca de liberdade. Ficaram na Rodésia, acolhidos pela cunhada Filomena (outra irmã da Fernanda) e marido que na altura trabalhava em Salisbury. A D. Rosalina, também avisada a tempo, já não viajou e disse adeus, para sempre, à sua bela casa, aos seus bens, à sua querida terra de Moçambique!


O casal ficou cerca de um ano e meio na Rodésia, onde a situação era crítica dado que o governo de Ian Smith, que anos antes declarara independência unilateral desligando-se da Inglaterra, era alvo não só de fortes sanções económicas como de resistência armada por parte do movimento de Robert Mugabe, o nacionalista que levou o território à independência em 1980 com o nome de Zimbabwe e que ainda hoje é o presidente do país, não obstante a pressão que está a sofrer pela oposição através de eleições que decorrem no momento em que escrevo este texto.



Durante esse tempo o Xico trabalhou primeiro nos caminhos de ferro rodesianos, em Bulawayo, operando no ramo da electricidade e depois na polícia de reserva. Esta última actividade foi-lhe imposta pelas forças armadas e era uma obrigação que abrangia todos os estrangeiros ali residentes precisamente para participarem no combate à guerrilha. Andou sete meses a expor-se aos perigos que eram cada vez maiores à medida que o tempo passava e isso o levou a deixarem a Rodésia em Julho de 1978. Entretanto, em 1977, a família ficou aumentada com o nascimento do segundo filho, o João Carlos!



Depois de uma breve estadia em Portugal, seguiram para o Brasil onde já se encontravam há mais de um ano, na cidade de Recife, a cunhada Filomena e marido que também haviam deixado a Rodésia pouco depois da chegada ali do Xico e família. E foi este casal que lhes deu apoio nos primeiros tempos, inclusive para o primeiro emprego do Xico numa fábrica de linhas como responsável de manutenção de máquinas.



Finalmente encontraram a paz e estabilidade naquele admirável país que tão bem soube acolher muitos milhares de portugueses regressados das colónias portuguesas que se tornam independentes em 1975, nomeadamente Angola e Moçambique.




Entretanto, D. Rosalina fixara-se com o John no Canadá, onde veio a falecer em 1987 após doença prolongada, o que constituiu mais um acontecimento que abalou profundamente os seus dois filhos.

D. Rosalina com os seus dois filhos Francisco (Xico) e João (John), junto das cataratas de Niagara - Canadá, em 1986, cerca de um ano antes do seu falecimento.








4 - O XICO NO BRASIL




Já ali radicado há cerca de dez anos, só em 1988 tive notícias dele através de uma prima, a Ana Maria, que também nascera e vivera em Vila Pery e partira com os pais para o Brasil, em 1975. A Ana Maria regressou em meados da década de oitenta a Moçambique, indo trabalhar no Ministério da Agricultura como secretária da direcção de recursos humanos do MONAP, um projecto nórdico onde curiosamente eu também estava integrado.
Foram boas as notícias sobre o Xico, que davam conta ter-se inserido e progredido no mercado de trabalho brasileiro, primeiro na cidade de Recife, até finais da década de 70 e depois em Fortaleza onde se fixou em definitivo e ainda vive actualmente num confortável e bem localizado apartamento em condomínio fechado que ali adquiriu. Reatamos assim os nossos contactos, trocando correspondência que avivou a velha amizade e conduziu ao nosso reencontro quando nos visitou com a família na nossa casa de Amor, em 1994! Posteriormente, em 1996, voltou a visitar-nos ainda acompanhado da família, mas esta seria a última com a sua adorada esposa, visto que a Fernanda falecera em fins de 1999, vítima de grave e incurável doença. Mais uma tragédia na vida do Xico, que só chegou ao meu conhecimento depois da publicação do Álbum de Recordações do meu site, em Fevereiro de 2000. Não foi, por isso mesmo, referenciado este infeliz acontecimento na breve biografia que sobre ele ali publiquei.

Tal desenlace mudou radicalmente a vida do Xico, que ao longo de vinte anos havia reconstruído o seu lar em terras do Brasil e de algum modo atenuado o desgosto pelo que passaram e perderam em Moçambique. A perda da esposa abalou-o profundamente e só recentemente, graças ao seu abnegado espírito de luta contra as adversidades, conseguiu recuperar a moral que ficara profundamente abalada. Contou com a ajuda dos filhos e da Teresa, uma simpática cearense que tem um monte de virtudes que o encantaram para sua companheira.

Também se reabilitou profissionalmente já que na fase crítica da doença da Fernanda se viu forçado a suspender o seu emprego. Começou por concluir os estudos na área de engenharia industrial, obtendo a respectiva licenciatura, o que lhe permitiu actuar individualmente executando projectos de formação profissional desta mesma área. Por outro lado, obteve do Estado brasileiro a aposentação relativa aos vinte anos de trabalho em Recife e Fortaleza.
Entretanto, no Verão de 2003 , visitou-nos de novo, agora sozinho, aproveitando uma das suas habituais visitas que faz aos tios e primos que vivem no Porto. Proporcionei-lhe aqui o encontro com outro velho e comum amigo, o Dr. Armando Rosinha, antigo director dos serviços de fauna bravia de Moçambique e que também foi administrador (por acumulação) do Parque Nacional da Gorongosa nos tempos em que o Xico ali colaborava.

Finalmente, concretizei a promessa que há vários anos vinha fazendo ao Xico de o visitar na sua nova terra. Esta decisão foi encorajada também porque quis fazer uma surpresa a minha mulher que era festejarmos as nossas bodas de ouro de casados no Brasil!

Arrumei com antecedência as passagens e anunciei ao Xico as datas de chegada e regresso e confidenciei-lhe os planos. Em casa deixei correr o tempo e obtive a cumplicidade de uma sobrinha, por sinal costureira, que convenceu a tia a renovar o seu guarda-roupa já a pensar na próxima viagem a Moçambique, programada para o fim do Verão. Quase em cima da data de embarque entreguei-lhe um embrulho muito bonito com os bilhetes!

Chegamos a Fortaleza ao fim da tarde do dia 10 de Março de 2006, viajando através de um pacote turístico de uma semana, com instalação num hotel situado na avenida marginal onde se realiza a célebre feira de artesanato nocturna durante todos os dias do ano.

Penso que a reacção que tivemos ao pisar terra brasileira não foi muito diferente da de todos os portugueses que visitam este maravilhoso país! De tanto ouvirmos falar dele, de tantas telenovelas que ao longo de décadas nos entraram em casa e de conhecermos a sua história como colónia portuguesa, até parece que estamos em casa. Ficámos extasiados perante a beleza daquela cidade, a quinta maior do Brasil em termos de população!

O casal (Xico e Teresa) lá estava no aeroporto e foi no seu carro que seguimos para o Hotel, um percurso de dezassete quilómetros sempre dentro da cidade e a uma hora de ponta que ali, naquele burgo de quase três milhões de habitantes, é coisa séria face ao mar de carros que circulam nas ruas e avenidas a perder de vista!

Impunha-se, à chegada ao hotel, um banho reparador para aliviar do cansaço da viagem e a troca de roupa por coisas mais leves visto que estávamos num clima tropical que é bem agressivo durante o dia (a média anual é de vinte e seis graus mas estávamos no período mais quente do ano, acima dos trinta) e que à noite raramente baixa dos vinte! E já mais descontraídos, tiramos a primeira foto com os nossos amigos e começamos a saborear a visita com um breve passeio ali mesmo em frente do hotel, no chamado calçadão da avenida Beira Mar, onde apreciamos a famosa feira de artesanato e nos refrescamos com uns apetitosos sumos de frutos naturais!

A estadia em Fortaleza ultrapassou as nossas expectativas, não obstante a prévia preparação que fizemos lendo os sites sobre a cidade e as informações recebidas do próprio Xico. A grandiosidade e beleza arquitectónica da cidade, as imaculadas praias da região, o bom hotel onde nos instalámos, o clima quentinho tão do nosso agrado, a simpatia dos habitantes, os sabores da culinária, os bons frutos tropicais, o artesanato genuíno, etc., foram factores que tornaram a nossa estadia muito agradável e francamente inesquecível!


Mas sem o apoio e acompanhamento do casal, que todas as manhãs nos ia buscar ao hotel e nos levava a visitar os lugares mais significativos da cidade (exceptuando apenas o dia em que nos integramos no programa do pacote turístico de visita à praia de Cumbuco, situada a cerca de 40 Km), aquelas "férias" não teriam atingido tal plenitude! O Xico e a Teresa foram inexcedíveis levando-nos a conhecer não só os lugares onde o turista comum normalmente vai, mas outros mais recatados e sobretudo alguns pouco recomendados por questões de segurança como dois mercados rurais e uma favela onde melhor pudemos observar e contactar com o povo e a sua cultura. Felizmente nada nos aconteceu, talvez pela descontracção, pouca exposição e aparência de pobretanas com que nos apresentávamos!

Limitados ao tempo do pacote da viagem (8 dias e 7 noites), naturalmente que não pudemos visitar todos os pólos turísticos da cidade e arredores, como desejaríamos. Eram precisos muitos mais dias. Mesmo assim, aproveitamos bem esse tempo graças aos conhecimentos e eficácia dos nossos cicerones e ao genuíno Chevrollet do Xico, que só fracassou por momentos quando desabou sobre Fortaleza uma daquelas chuvadas tropicais que nós bem conhecemos de Moçambique e que afectou a parte eléctrica!





Visitamos locais típicos da cidade , como o Porto de Mar de Mucuripe; o mercado dos pescadores onde se vende o peixe e mariscos frescos vindos diariamente do mar; o mercado central da cidade, de quatro pisos, onde fervilha uma enorme multidão de gente ; o rio e parque do Cocó, muito belos; alguns bares e restaurantes da cidade e da avenida Beira Mar, onde saboreamos a boa comida nordestina: as praias de Meireles e Iracema, que são a bandeira da cidade; o novo e mega centro comercial onde os restaurantes fornecem a comida mais barata da cidade (que bela feijoada lá comi!); a zona colonial, toda ela bem conservada e vocacionada para o comércio em pequenas lojas muito frequentadas pela população e turistas; o castiço bar do capitão Mostarda, onde se bebe cerveja a rodos; o famoso Pirata, na praia de Iracema, onde passamos uma maravilhosa noite assistindo ao maior espectáculo de forró do Brasil; a praia de Cumbuco, uma das mais belas da região, onde comemos a melhor picanha na aldeia Brasil; a catedral de S. José; etc., etc.




Esta foto, tirada com o Pirata na sua famosa casa de Forró de Fortaleza, deveu-se ao facto do Xico e os filhos terem relações de amizade com este português de sucesso!


A excursão à praia de Cumbuco foi muito curiosa porque nos permitiu observar ao longo dos 40 Km do percurso uma paisagem muito igual à do litoral do norte de Moçambique e toda uma sequência de aglomerados populacionais onde é bem notória, pelo aspecto das construções, a diferença de nível de vida dos brasileiros: belos challets, isolados mas bem protegidos com muros altos e com grades electrificadas, misturam-se com pequenas e modestas casas! Aqui e ali aparecem urbanizações onde prevalecem os condomínios fechados, igualmente protegidos com muros e redes electrificadas!

Não obstante a roda viva em que os nossos amigos andaram para nos mostrarem o mais possível da sua cidade, eles excederam-se como anfitriães recebendo-nos e oferecendo-nos na sua casa excelentes refeições tipicamente nordestinas!



A primeira vez coube ao Xico a confecção da refeição, uma novidade para nós: badejo no forno, um belo manjar que muito apreciamos! A segunda foi a Teresa a cozinheira: um belíssimo caril (lá não chamam caril) de camarão, que não ficou a trás do melhor da tradição moçambicana!





O calor humano não se esgotou no Xico, Teresa e João. Os simpáticos cunhados do Xico, a Edite e o António, que igualmente vivem e estão solidamente enraizados em Fortaleza, também nos acolheram na sua casa, um belo apartamento num moderno edifício em condomínio fechado no centro da cidade, obsequiando-nos com um requintado e apetitoso almoço!






Mas o ponto alto da estadia foi o momento em que, com os nossos amigos, na catedral de S. José e junto do altar do respectivo patrono, eu e a Lurdes nos congratulamos e agradecemos o percurso de 50 anos atingido nesse dia 17 de Março! Uma breve e singela cerimónia que foi seguida de um almoço num modelar restaurante, a última e apetitosa refeição nordestina antes do regresso a Lisboa ao fim da tarde desse dia.

Lá deixámos mais uma amiga, a Teresa, a simpática cearense que nos cativou pelo carinho que nos dedicou e também pela forma como tem contribuído, como companheira do Xico, para a estabilidade emocional deste grande amigo que tem vivido um dos dramas mais intensos entre as famílias que tudo perderam na antiga colónia de Moçambique, por razões que só podem ser atribuídas aos responsáveis do governo português que aprovaram a independência de forma leviana não acautelando no respectivo Acordo (Luzaka, Setembro 1974) os interesses e a própria segurança dos portugueses lá estabelecidos!

O Xico já está curado da nostalgia e saudosismo que o perseguiram durante os primeiros anos de estadia no Brasil. Apenas mantém o sentimento de revolta contra as autoridades que o perseguiram e forçaram a sair de Moçambique pois não compreende porque razão o fizeram quando ele era uma pessoa com um passado limpo, muito estimado pela população e se considerava um elemento útil ao país, tanto para fazer formação profissional na área da sua especialidade, como para dar aulas nas escolas secundárias e institutos, ensinar música, treinar desportistas, ou, simplesmente, deixarem-no prosseguir com o seu projecto agro-pecuário que tanto o fascinava!

O Brasil conquistou-o, soube aproveitá-lo e ele agora ama-o tão intensamente como amava a sua terra natal - Vila Pery, Moçambique!



O almoço de despedida




As belas frutas brasileiras!


O simpático João, que muito colaborou na nossa visita!
O irmão mais velho, o Rui, já casado, vivia na altura em S. Paulo.


Na praia de Iracema


A Teresa e o Xico, descontraídos à boa maneira afro-brasileira!


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Marrabenta, Abril de 2008

Celestino Gonçalves