(Outubro de 1972 a Julho de 1973)
Três acontecimentos marcaram de forma indelével e por distintas razões o já longínquo ano de 1972.
O nascimento do meu primeiro filho, a conclusão da licenciatura em medicina-veterinária e a colocação no Parque Nacional da Gorongosa como Administrador-Residente.
Após a conclusão do curso em Agosto de 1972, apresentei-me na Direcção Provincial dos Serviços de Veterinária, onde tomei posse como medico-veterinário de 2ª classe.
Começou aí uma longa carreira de 37 anos e meio como funcionário público.
Por determinação do Director daqueles serviços, Digmo Dr. Fernando Cardoso Paisana, pessoa de quem guardo as melhores recordações, fui colocado, com alguma surpresa, no P.N.G., como Administrador-Residente, para ocupar a vaga deixada em aberto pelo dr. Francisco Prestes Romão, que abandonara aquele lugar uns meses antes.
O Parque encontrava-se sem Administrador e havia a preocupação por parte do Dr.Paisana em preencher rapidamente essa vaga.
Estabelecia o Regulamento do P.N.G. no artigo 3º, parágrafo único, aprovado pelo Diploma Legislativo de 21 de Maio de 1967 o seguinte:
-“Superintende nos Serviços do Parque um Administrador-Residente, que actua em conformidade com as directrizes dimanadas da Direcção Provincial do Serviços de Veterinária” e ainda, “que o cargo de Administrador-Residente será desempenhado por médico-veterinário ou técnico superior do quadro dos Serviços de Veterinária “.
Os Serviços de Veterinária eram assim responsáveis pela administração do Parque, com todas as competências e deveres inerentes.
A construção e manutenção de infra-estruturas do Parque, bem como a fiscalização das suas fronteiras eram da exclusiva responsabilidade da sua administração.
Tinha como receita a cobrança das entradas no Parque e os proventos da concessão da sua exploração turística à Safrique, empresa de turismo sedeada na Beira.
Não fiquei contrariado com tal colocação apesar de saber que iria trabalhar em regime de exclusividade, com um vencimento mediano e num campo de trabalho totalmente novo para mim, contrariamente ao que acontecia com outras vagas possíveis na altura, que permitiam a acumulação de funções públicas e privadas, em áreas ligadas à bovinicultura.
A Gorongosa interessava-me por ficar perto da Beira, cidade para onde fui viver com um ano de idade, onde estudei, onde viviam os meus pais e onde tinha os meus amigos. Nasceram na Beira a minha mãe, a minha mulher e os meus dois filhos.
Apresentei-me no Chitengo, como Administrador-Residente nos primeiros dias de Outubro de 1972, com 23 anos de idade.
Não me arrependi. Iniciei assim um período único e irrepetível na minha vida. Eu, um jovem recém-formado, de repente, passei a residir e a dirigir uma das melhores reservas naturais do mundo, um verdadeiro santuário, em contacto directo e permanente com toda uma variedade de espécies selvagens, num parque com uma diversidade única de ecossistemas.
Sabia que iria interromper a minha prestação de serviços dez meses depois, em Agosto de 1973, por ter nessa altura que me apresentar no Distrito de Recrutamento de Boane, para cumprimento do serviço militar obrigatório, mas, apesar disso, coloquei todo o meu empenho nas responsabilidades que me foram cometidas.
Foi minha preocupação inicial conhecer o Parque em toda a sua dimensão, identificar as diferentes espécies que o povoavam e, obviamente, conhecer todos os problemas com que se debatia a sua administração.
Trabalhava no Parque em 1972, um sul-africano, o eco-biologista de renome Kenneth Tinley. Ofereceu-me alguns livros técnicos e deu-me a conhecer um estudo bem fundamentado que apresentara às autoridades competentes em que era proposta uma nova área para o Parque, que incluiria a serra da Gorongosa, fonte de água imprescindível para a sobrevivência das suas espécies e que se encontrava em processo de erosão devido a culturas agrícolas itinerantes das populações ali residentes. Um problema para ser resolvido por políticos.
A caça furtiva era outro dos problemas que, com frequência, éramos confrontados. Vi vários animais estropiados em consequência das armadilhas colocadas. Faziam-se várias apreensões de armas e armadilhas.
O Parque estava rodeado por uma cintura humana asfixiante que tinha a tendência de crescer para o seu interior, onde encontrava meios de subsistência e uma inesgotável fonte de alimento.
Além desta caça furtiva, artesanal e crónica, havia outra esporádica, mas mais profissional, mais bem armada e porventura mais mortífera, protagonizada por caçadores que se deslocavam em veículos todo o terreno.
Recordo-me de ver num perímetro de cerca de 200 metros quatro, elefantes recentemente abatidos, com os membros amputados e sem as respectivas presas! Havia também neste cenário dantesco algumas zebras mortas e esfoladas.
Os guardas de parque, inexcedíveis na sua missão de fiscalização, faziam caminhadas dignas do conhecimento de hinógrafos, mas nem assim conseguiam evitar a caça furtiva numa área imensa sem vedações e com fronteiras de centenas de quilómetros.
Sob o ponto de vista meramente técnico e condicionado pelo pouco tempo que ali passaria, limitei-me a anestesiar e a marcar alguns animais, entre elefantes, búfalos, bois-cavalos e leões, e a seguir os seus movimentos.
Acompanhei um estudo que estava a ser efectuado por K.Tinley sobre uma população de hipopótamos que vivia numa lagoa, situada entre o Chitengo e o portão de entrada, em situação de “overcrowding”. K.Tinley através de estudos comparativos chegou à conclusão que essa população se encontrava em declínio pela contagem do número de sub-adultos.
No âmbito de um programa de intercâmbio, assisti e participei juntamente com o fiscal de caça Celestino Gonçalves, numa captura de gondongas efectuada com a ajuda de um helicóptero, por uma equipa de rodesianos. As mesmas foram posteriormente transferidas para uma reserva daquele país.
Recordo-me igualmente de ter diagnosticado um caso de tuberculose num fígado de um búfalo com lesões suspeitas, mais tarde confirmado em laboratório.
O Parque recebia visitantes de todas as partes do mundo, alguns ilustres.
O número de visitantes atingia naquela altura o seu pico. Cerca de 20.000 por ano.
A densidade animal do Parque impressionava.
Ninguém ficava indiferente àquele espectáculo de harmonia e beleza imensa. Uma profusão de cores e cheiros que nos tocavam profundamente.
A segunda fase da minha permanência na Gorongosa foi fértil, mas noutro tipo de acontecimentos, que também fazem parte do acervo histórico do Parque e que iriam condicionar todo o seu futuro.
A onda de libertação da África sub-sahariana iniciada com Nkrumah no Gana em 1957, chegou em 1973 ao Parque Nacional da Gorongosa.
Começaram a ser frequentes os relatos de encontros casuais entre os guardas de parque, na sua missão de fiscalização, e os guerrilheiros da Frelimo.
Numa coutada vizinha, no Nhamacala, um neurocirurgião espanhol foi morto durante um safari.
Um dos nossos funcionários, de nome Bruno, responsável pelo acampamento de Mussapassua, foi raptado e posteriormente morto.
O problema agora passava a ser o da segurança, não dos animais, mas dos funcionários do Parque e dos turistas que o visitavam.
Para reforço da segurança, um pelotão de paraquedistas passou a viver no Chitengo.
A culminar todo este clima de insegurança, o Chitengo, cheio de turistas, foi atacado no dia 18 de Julho, enquanto decorria o jantar no restaurante do Parque. Recordo-me de ver os fogachos das Kalashnikov entre a escuridão que nos circundava. Ninguém se feriu em consequência desse ataque.
Nessa noite, telefonei ao governador da Beira, coronel Sousa Teles, a reportar o ataque e a solicitar instruções sobre o eventual encerramento do Parque aos turistas.
O Governador deu-me instruções expressas para não o fechar e para mandar tapar os impactos das balas visíveis nas paredes dos edifícios atingidos.
No dia seguinte, na picada entre o Chitengo e o portão de entrada, num acidente provocado pelo despiste de um Unimog morreram 5 paraquedistas. Havia pelo menos dois feridos graves que foram evacuados de helicóptero para a Beira.
Nesse mesmo dia a maior parte dos turistas abandonou o Parque.
A segurança do mesmo ficou, definitivamente, posta em causa. Nada passou a ser como dantes.
O número de turistas baixou consideravelmente. O ambiente de trabalho, com as preocupações de segurança, passou a ser insuportável.
Conforme já estava anteriormente previsto, 13 dias depois do ataque ao Chitengo, no dia 31 de Julho de 1973, terminei a minha prestação de serviço como Administrador-Residente e deixei o Parque Nacional da Gorongosa.
Anos mais tarde, em Novembro de 1996, desloquei-me a Moçambique para participar num Congresso de Medicina-Veterinária realizado em Maputo.
Aproveitando essa deslocação fiz questão de visitar a Beira e, como não podia deixar de ser, o Parque Nacional da Gorongosa, na companhia de dois amigos que ainda hoje vivem nesta cidade, o Chico Ivo e o Rui Basílio.
Vinte e três anos depois, tive a oportunidade e a alegria de rever dois dos funcionários que trabalharam comigo, o Castigo Mamunanculo e o Batage Vasco.
Fiquei impressionado com a destruição do Chitengo, ocorrida durante a guerra civil moçambicana, mas pior, muito pior, foi a matança que aconteceu, autêntico extermínio de animais que, durante séculos ali viveram em equilíbrio no seu habitat natural. Um património único de difícil recuperação.
Numa deslocação até à “casa dos leões” vi um pequeno grupo de gondongas assustadas, uma bauala e alguns macacos. Nada mais!
O responsável do parque na altura, disse-me que já se começava a registar algum repovoamento animal e que “as espécies estavam lá”.
Compreendi então, quão difícil e moroso seria este processo, especialmente para as espécies de ciclo reprodutivo mais longo, se não acontecesse algo de extraordinário.
O extraordinário aconteceu. Como que enviado por mão divina, apareceu Greg Carr.
Tenho acompanhado com curiosidade e interesse a sua actividade e da sua equipa na reabilitação do Parque. É fácil adivinhar as dificuldades que têm pela frente. Penso que ele e os seus colaboradores, com diplomacia e inteligência, irão atingir o difícil objectivo a que se propuseram.
Estou surpreendido com os progressos alcançados e vejo com satisfação o total empenho das autoridades moçambicanas a nível local, regional e central, na tarefa ingente de recuperação do Parque.
Esta semana reuni em álbum digital algumas fotografias que tirei durante o tempo em que trabalhei na Gorongosa. Terei todo o gosto em oferecer este registo fotográfico ao seu Centro Interpretativo.
Continuo a ser um dos “amigos da Gorongosa” e desejo a todos os que por ela trabalham os maiores sucessos. Bem hajam!
Viana do Castelo, 28 de Junho de 2009.
O MEU COMENTÁRIO
O jovem Banito (como era e ainda é tratado pelos familiares e amigos), viveu intensamente esse período e sendo embora, na altura, um novato com formação essencialmente virada para os animais domésticos, depressa se apaixonou pelo Parque e pela fauna bravia, dedicando-se com grande entusiasmo à sua preservação durante o tempo que ali trabalhou. Teve a felicidade de conhecer o Parque na sua plena pujança, repleto de animais das mais variadas espécies, que estudou apoiado por um dos melhores cientistas de África que ali trabalhava desde 1968, o eco-biologista Kenneth Tinley.
ALGUMAS IMAGENS A PROPÓSITO
Castigo Mamunanculo e Batage Vasco, os únicos moçambicanos do staff do Parque do tempo colonial que resistiram às sucessivas catástrofes ocorridas no Parque durante a guerra civil e que regressaram em 1994. O Dr. Albano Cortez teve a satisfação de encontrar estes fieis e excelentes colaboradores no Chitengo, em 1996. Eu tive o mesmo prazer em Janeiro de 2000, quando fiz esta fotografia, mas em 2006, quando lá voltei, já os dois tinham deixado este mundo!
No pavilhão do PNG da BTL:
No pavilhão de Moçambique onde a Mostra do Parque esteve inserida
Dr. Vasco Galante, Dr. Albano Cortez e Drª Manuela Vilhena, em conversa após a brilhante exposição sobre o PNG apresentada pelo primeiro na Conferência "Desenvolvimento e Ambiente", realizada na antiga FIL, em Abril do ano findo.
Celestino Gonçalves, Drª Maria de S. José, Rita Galvão (outra "Amiga da Gorongosa" que neste momento se encontra na Tanzania, no famoso Parque do Serengueti, onde o marido cumpre um contrato de piloto de balões) e Dr. Albano Cortez. Encontro em Lisboa em Abril do ano findo, a seguir à Conferência "Desenvolvimento e Ambiente"
Saudações amigas!