PARQUE NACIONAL
DA GORONGOSA
NOVOS LORDES DA
SELVA
Texto e fotos de Jean-Paul
Vermeulen
Passavam mais de trinta minutos
que estávamos parados na proximidade do Rio Urema. Ao chegar, o ruído do motor
tinha afugentado os crocodilos para dentro da água e agora
esperávamos em silêncio que eles
saíssem para retomar o seu banho do sol.
Um elefante veio da mata atrás do carro sem que nos
apercebêssemos imediatamente. Estava visivelmente irritado. O nosso veículo era
um contraste na paisagem e com certeza o paquiderme ia testar as nossas
intenções. Numa fracção de segundo já estava perto. Muito perto. Abanando a
cabeça. Não havia ambiguidade quanto ao seu descontentamento pela nossa
intrusão no seu território. Os elefantes da Gorongosa têm a reputação de ser
agressivos e de atacar quem pode representar uma ameaça para eles. Ficámos
totalmente silenciosos, sem fazer qualquer movimento. A estratégia do silêncio e
imobilismo deu resultado. Após alguns segundos o elefante parou. A mudança de
atitude foi radical e estava agora totalmente descontraído. O rio era o seu
destino. Entrando na água foi bebendo e, após um banho de lama na outra margem,
desapareceu como apareceu.
Para entender a inimizade do elefante perante o Homem,
temos que recordar que em 1972 havia mais de 3.000 elefantes pelas matas da
Gorongosa e que menos de 200 sobreviveram à guerra civil. O elefante é
reconhecido pela sua inteligência. Ele tem também uma boa memória. Uma memória
de elefante… A retomada de uma relação mais pacífica com o Homem será lenta…
como a da Gorongosa.
PROJECTO DE RECONSTRUÇÃO DA GORONGOSA
O Projecto de Reconstrução da Gorongosa foi
iniciado em 2005 e as mudanças já são notáveis. Espécies praticamente
desaparecidas há quinze anos atrás, como a emblemática pala-pala, a impala, a nyala,
a piva e a oribi possuem agora efectivos que, em algumas delas, suplantam as
existências dos tempos áureos do Parque. Búfalos e bois-cavalo são objecto de
programas de renovação e multiplicação. Elefantes e hipopótamos também foram
introduzidos para aumentar a diversidade genética, bem como Chitas que tinham
totalmente desaparecido nos anos setenta. Apesar destes sinais encorajadores,
não deixam de aparecer situações preocupantes a determinar
novos desafios
Uma delas é a aparente estagnação, se não lenta extinção,
de algumas espécies como é o caso dos leões. Nos anos 60 a Gorongosa albergava uma
população estimada em mais de 500 desses felinos e podia orgulhar-se de ter a
maior densidade de toda a África Austral. Actualmente será de 30 a 50 o número de leões
dentro de Parque. Apesar dos esforços de reconstrução dos ecossistemas e da
aparente abundância de caça para a sua alimentação, essa população não cresce. A
situação é particularmente preocupante dado o facto de, ao nível da África, o
número de leões selvagens se ter reduzido em mais de 80% nestas últimas duas
décadas.
Alguns cientistas já prevêem que até ao final da
próxima terão completamente desaparecido. Sendo o leão, muito provavelmente, o mais
emblemático dos Big 5, como imaginar a
selva sem o seu rei? A situação requer medidas urgentes ao nível do continente para
proteger o habitat e as populações viáveis. Este é o objectivo do recém-lançado
Projecto Leões da Gorongosa que vai, a longo prazo, tentar trazer respostas para
a sua recuperação e conservação no Parque.
OS BIG 5
AGORA SÃO OUTROS
Inicialmente território dos Big 5, a Gorongosa perdeu essa qualificação nos anos setenta
quando desapareceu o último rinoceronte naquela região. Enquanto o Parque se esforça
para reconquistar o seu estatuto, o poder de sedução mantém-se intacto com os seus
próprios Big 5.
O primeiro é a Serra da Gorongosa, recentemente incluída
na zona de protecção total. Como uma sentinela no horizonte e contrastando com
as baixas altitudes do vale do Rift, a Serra acusa uma precipitação (mk) de
dois metros que origina uma vegetação luxuriante. Um recente “bioblitz” – um
estudo científico, curto e intensivo de pesquisa – demonstrou a presença nas suas
encostas de uma grande diversidade de espécies de fauna e de flora ainda
desconhecidas da ciência, entre as quais algumas endémicas. O segundo é o lago
Urema e as zonas pantanosas à sua volta, cuja extensão só pode verdadeiramente ser
apreciada do céu, especialmente durante a estação das chuvas, quando a sua
superfície se estende até 20 vezes o seu tamanho normal. O terceiro são as
falésias de Kúndue, antigas testemunhas das convulsões geológicas que se iniciaram
há milhões de anos e que um dia dividirão a África em dois continentes, a
partir da Etiópia até a região centro de Moçambique. O quarto é a gruta de
Codzué, a mais comprida de Moçambique, onde um dia talvez se descubram
vestígios dos primeiros hominídeos que percorriam o Leste da África. E o
quinto? É, claro, o elefante. Temido, admirado, procurado, dizimado, ele está a
voltar em força e é o verdadeiro lorde desta selva.
TURISTAS
Localizado na extremidade sul do Grande Rift, no
seio de um vasto ecossistema definido, modelado e alimentado pelo ciclo de água
e dos rios que o percorrem,
o Parque Nacional da Gorongosa representa um activo importante para o
desenvolvimento turístico do Pais. Em 1973, no seu apogeu, ele recebeu cerca de
20.000 turistas do mundo inteiro, tendo-se tornado uma referência na África
Austral até ao seu encerramento durante a guerra civil. Graças a um vasto
esforço de promoção ao nível nacional e internacional, o número de turistas
está em franco crescimento nestes últimos anos. Em 2011 o Parque teve cerca de
7.000 visitantes, dos quais um pouco mais da metade são moçambicanos. A médio
prazo a Gorongosa tem todo o potencial para se reposicionar no pódio dos
melhores destinos turísticos da região, gerando receitas e empregos que,
desesperadamente, as comunidades à volta do Parque precisam para o seu
desenvolvimento.
Mia Couto diz que “Nenhum lugar acontece
naturalmente. Toda a geografia é uma plantação do Homem”. O extenso território
do Parque Nacional da Gorongosa é um desses lugares enriquecido pelo cruzamento
entre natureza, cultura e história. As noites na Gorongosa são, desde sempre,
ritmadas pelos sons persistentes dos batuques. À volta da fogueira contam-se
histórias onde mitos e eventos são reinterpretados para reescrever o mundo
desde a sua criação. No Chitengo, belo local que acolhe a administração e os
visitantes, também se reinventa o passado e advinha o futuro do Parque. As
visões são claramente diferentes. Os interesses também. Mas um novo capítulo
dessa geografia está já sendo reescrito.
O
ELEFANTE DA GORONGOSA
Uma tarde, ao regressarmos ao Chitengo, cruzamos com uma
manada de elefantes. O encontro foi bem pacífico. Ficamos a observá-los, com o
pôr-do-sol em pano do fundo, enquanto atravessavam a estrada para procurar um tando (pastagem aberta, planície, geralmente
húmida). As sombras esticam-se no infinito e o céu alaranjado pinta-se de roxo
escuro. Os sons claros das criaturas da noite anunciam o despertar dos
adormecidos do dia. É a hora mágica da África e, por um instante, o tempo
parece suspenso no ar.
O elefante da Gorongosa é bem similar ao Homem em termos
de inteligência, relações familiares e complexidade social. Mas, para sua
desgraça, tem sido caçado desde as trevas dos tempos devido às suas pontas de
marfim. Ao observar os elefantes no Parque da Gorongosa nota-se algo de
diferente. Muitos deles não têm essas presas, pelo menos são muito mais
pequenas do que o normal. Como se eles tivessem sido obrigados a abandoná-las
para finalmente ficarem em
paz. Elefantes sem presas ocorrem naturalmente, mas são a
excepção, não a regra. Similarmente ao que aconteceu em outras regiões de
África, a hipótese mais provável é que durante os anos de guerra civil, os
caçadores tenham abatido sistematicamente os elefantes com maiores presas,
deixando de lado os animais sem valor comercial. Talvez só 6 % da população
inicial tenha sobrevivido. Mas ela está a crescer e admite-se que, esses
descendentes, carreguem nos seus genes as características que provavelmente contribuíram
para a sobrevivência da espécie nesta parcela do País. Felizmente a população
de elefantes da Gorongosa não está isolada e, com medidas apropriadas de
protecção, mais cedo ou mais tarde alguns animais de grandes pontas irão
encontrar o caminho desta vasta área de protecção e enriquecer o património
genético dos Lordes da Gorongosa. Os primeiros seis elefantes com aquelas
características já chegaram vindos do Kruger Park. Por esta vez com a ajuda do
Homem…
(Fim de citação
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BREVE COMENTÁRIO
Este interessante
artigo foi publicado no último número da revista MdeMoçambique e tem vindo a
ser difundido nas redes sociais por muitos amigos da Gorongosa.
O seu autor, a quem
agradeço a gentileza de me ter enviado o texto e fotos em formato acessível
para aqui publicar, faz uma avaliação realista da situação actual do Parque sustentada
no conhecimento directo do que ali se tem feito para a sua recuperação,
deixando-nos optimistas com o seu futuro face aos progressos ali alcançados na recuperação de
algumas espécies emblemáticas, algumas até já superaram os efectivos de
outrora. Por outro lado, o caso concreto da estagnação dos efectivos de leões e
o lento desenvolvimento de outras espécies como o búfalo e o boi-cavalo, são um
aviso importante de que muito há ainda a fazer para tornar a Gorongosa o
grandioso santuário que já foi. Caberá
aos governantes, ao mais alto nível, tomar as medidas adequadas que implicam defender
energicamente o Parque de toda a espécie
de inimigos como são os garimpeiros do ouro, os madeireiros, os furtivos, etc.
Saudações amigas!
Celestino Gonçalves