30 November 2009

63 - DR. ARMANDO ROSINHA - HOMENAGEM





ARMANDO JOSÉ ROSINHA

(1919 - 2009)


BREVE BIOGRAFIA E NOTAS PARALELAS

A MINHA HOMENAGEM



1 - INTRODUÇÃO

Conforme divulguei entre um círculo restrito de amigos, faleceu no dia 5 deste mês o Dr. Armando José Rosinha, médico veterinário que dedicou 44 anos da sua vida profissional a Moçambique, destacando-se nomeadamente no sector da fauna bravia e no ensino superior da mesma área. Fazia 90 anos no dia em que nos deixou!

Falar desta figura grada é para mim um imperativo de consciência, por duas grandes razões: a grande amizade que nos unia e o muito que lhe devo pelos exemplos e superiores conselhos que me deu ao longo dos últimos 45 anos de regular convívio, vinte dos quais trabalhando lado a lado em Moçambique!
Acresce ainda a esta motivação o muito carinho e amizade que nutro pela sua família, destacadamente os seus quatro filhos, Lisete, Paula, Ana e António Rosinha, que me habituei a estimar desde muito jovens quando o clã foi residir para cidade da Beira em 1964, onde o patriarca assumiu as funções de chefe da Repartição Distrital de Veterinária, acumuladas um ano depois com as de administrador do Parque Nacional da Gorongosa!

Ele foi o meu verdadeiro mestre, moldando-me como conservador da vida selvagem à imagem dos seus abalizados conceitos, que antes do nosso relacionamento, em 1964, eram para mim ainda muito vagos e confusos face aos exíguos conhecimentos técnicos e científicos exigidos aos fiscais de caça e total ausência de formação da parte dos serviços responsáveis pelo sector.


2. – O PERCURSO DESTE HOMEM

Filho de professores primários, nasceu em Mogadouro, distrito de Bragança, em 5 de Novembro de 1919. Na década de 20 a família (casal e quatro filhos) “emigrou” para Angola quando ele tinha apenas quatro anos de idade, Ali fez, tal como os irmãos, os estudos primários e secundários. Depois do liceu veio para Portugal, em 1940, onde fez, em Lisboa, o curso superior de medicina veterinária. Enquanto estudava dedicou-se também ao seu desporto favorito, o futebol, que praticou no Belenenses, o clube do seu coração.


O clã Rosinha, na década dos anos 20 quando "emigrou" para Angola.

O menino Armando é o penúltimo da direita. (foto histórica do arquivo familiar)


Um facto significativo que o marcaria como um dos pioneiros ligados ao embrião onde nasceram e amadureceram as ideias de que resultaram as viragens políticas nas colónias portuguesas em África, foi a sua ligação à Casa dos Estudantes do Império (CEI), em Lisboa, criada em 1940 por um grupo de jovens estudantes de que ele fez parte como fundador e membro da primeira direcção, tal como Amílcar Cabral e depois Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e outros nomes que vieram a ser figuras importantes na criação dos movimentos de libertação das colónias e nos governos das respectivas nações daí emergentes!

Apesar de ter sido uma decisão de que se orgulhava, a verdade é que nunca aceitou e sempre repudiou a acusação de que a criação da CEI teve por base ideias políticas em relação ao Ultramar Português, acrescentando que, no seu tempo, apenas se tratava de um centro cultural e recreativo onde ele e os colegas estudantes de várias universidades passavam os tempos livres. “Só quando eu já estava em Moçambique é que ouvi dizer que a CEI tinha sido encerrada por razões políticas…….”A única vez que fiz política foi quando resolvi ficar aqui e talvez tenha pensado mal!...” , disse ele numa entrevista ao jornal “Domingo”, de Maputo, em 12 de Agosto de 1984!

Após ter terminado o curso, em 1946, tentou regressar a Angola. Durante quatro anos esperou pacientemente por uma colocação na terra que tanto amava, onde passou a meninice, adolescência e juventude, ocupando-se em Portugal em actividades provisórias como veterinário privado em Trás-os-Montes e depois como assalariado no Instituto Nacional do Vinho. Era o período do pós segunda guerra mundial, muito difícil para todos os jovens iniciarem uma carreira, mesmo para os licenciados em cursos superiores! Havia na altura, segundo ele afirmou na entrevista ao “Domingo” em 1984, cento e cinquenta médicos veterinários desempregados em Portugal!

Cansado de esperar e desiludido com o seu trabalho na Metrópole, resolveu “emigrar” para Moçambique, onde alguns dos seus antigos colegas de faculdade já se haviam radicado e o entusiasmaram a tomar o rumo da costa oriental de África.

Viajou por sua conta, em Agosto de 1950, sem qualquer vínculo ou simples promessa de emprego! Mas logo chegou a Lourenço Marques (actual Maputo) os colegas o receberam de braços abertos e rapidamente conseguiu a sua primeira nomeação que deu início a uma longa e brilhante carreira como técnico superior dos Serviços de Veterinária de Moçambique, onde se notabilizou como dos mais devotados estudiosos na área da fauna bravia do território!

Almoço de boas-vindas ao Dr. Armando Rosinha após a sua chegada a Lourenço Marques, em Agosto de 1950, realizado pelos seus colegas médicos veterinários.
Da esquerda para a direita: José da Costa, Jaime Travassos Dias, Armando Rosinha (homenageado), Barreiros Cotta, Sá Teixeira, Raul Machado, Francisco Valadão e Duarte Paula Mira Loureiro.



Da sua biografia pessoal consta um vasto rol de actividades que desenvolveu durante a sua longa carreira em Moçambique e locais onde residiu. Dela salientamos os principais cargos que exerceu, a saber: 1950 – Veterinário de 2ª classe no Laboratório de Patologia Veterinária em Lourenço Marques; 1951 – Delegado de sanidade pecuária e chefe do Posto Zootécnico de Angónia – Tete; 1952 – Delegado de sanidade pecuária de Xai-Xai; 1953 – Chefe do Sector Veterinário da Missão de Combate às Tripanossomíases (MCT) de Espungabera – Manica: 1955 - Chefe do Sector Veterinário da MCT de Bela Vista – Maputo (actual Matutuine); 1958 – Chefe do Sector de Entomologia da MCT em Tinonganine – Maputo; 1960 – Chefe do Sector de Entomologia da MCT em Massangena – Alto Limpopo; 1963 – Ingresso no Quadro Comum dos Serviços de Veterinária do Ultramar e nomeado Delegado de sanidade pecuária de Maputo – Bela Vista; 1964 – Chefe da Repartição Distrital de Veterinária da Beira – Beira; 1965 – Administrador do Parque Nacional da Gorongosa, em acumulação com as funções de chefe da RDV da Beira; 1967 – Nomeado em comissão de serviço como adjunto do Chefe da Missão de Estudos Bioceanológicos e de Pescas de Moçambique – Lourenço Marques; 1969 – Chefe dos Serviços de Protecção à Fauna da Direcção Nacional de Veterinária – Lourenço Marques; 1979 – Nomeado consultor técnico da Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia – Maputo; 1980 – Reformado a seu pedido do Ministério da Agricultura.

Depois da reforma, de certo modo antecipada em relação à idade visto que tinha apenas 61 anos de idade (mais de 40 de serviço), o Dr. Rosinha recolheu-se ao ambiente tranquilo da sua casa da Sommerscield, que partilhava com a filha mais velha - Lisete - e sua família (marido e três filhos). Os outros seus três filhos, Paula, Ana e António, residiam em Portugal. Ali era visitado pelos amigos e muitas vezes solicitado para dar pareceres sobre as matérias da sua especialidade. Invariavelmente, aos domingos, ia buscá-lo para darmos o passeio habitual pelos mercados Central e Xipamanine e pela marginal até à Costa do Sol.

Em 1981 foi convidado especial para participar na primeira conferência sobre Fauna Bravia, realizada no Parque Nacional da Gorongosa, onde apresentou um minucioso trabalho sobre a história do mesmo Parque, documento este que há muito o ocupava em pesquisas nas principais fontes de informação antigas, nomeadamente boletins oficiais da extinta Companhia de Moçambique. Foi uma verdadeira dádiva para o Sector da Fauna e particularmente para o próprio Parque que ainda hoje o tem como referência dessa fiel e interessante história e será certamente preservado como peça fundamental para mais e melhor se escrever sobre o famoso santuário da vida bravia de Moçambique


1ª Reunião Nacional sobre Fauna Bravia realizada em 1981 no Chitengo, Parque Nacional da Gorongosa. Nesta foto “de família” o Dr. Rosinha é o terceiro, de pé, a contar da esquerda.

A este vasto palmarés se podem juntar um sem número de acções a nível nacional e internacional, em que participou quer no tempo colonial quer depois da independência de Moçambique, algumas delas chefiando delegações como eram as presenças em Conferências com a participação de vários sectores públicos do país. Esteve em Fóruns em Portugal, União Soviética, África do Sul, Kénia, Tanzânia, Angola, etc.

1ª Reunião Nacional para o estudo dos problemas da fauna selvagem e protecção da Natureza no ultramar português, realizada em Sá da Bandeira – Angola, em 1972.
Em primeiro plano a delegação de Moçambique chefiada pelo Secretário Provincial de Terras e Povoamento, Engº Martins Santareno ( à esquerda). À sua frente e da esquerda para a direita: Jorge de Abreu (representante da indústria do Turismo Cinegético); Dr. Armando Rosinha (Chefe dos Serviços de Fauna Bravia); Dr. Eduardo de Castro Amaro (Inspector Provincial de Veterinária); Engº Videira e Castro (Director de Agricultura e Florestas); Prof. Dr. Jaime Travassos Dias (Director da Faculdade de Veterinária) e Dr. Fernando Cardoso Paisana (Director dos Serviços de Veterinária).
A agenda da Reunião foi constituída por 7 temas, tendo o Dr. Rosinha elaborado e apresentado o nº 5 – Legislação base da “Protecção da Natureza no Ultramar Português”.
Na mesma Reunião foram elaboradas importantes Recomendações cuja implementação estava a decorrer com sucesso em Moçambique por altura da sua independência, sob orientação do Dr. Armando Rosinha e algumas delas têm sido seguidas na elaboração das leis e regulamentos actualmente em vigor no país.



3. - INTERVENÇÃO DE SAMORA MACHEL


Apesar de nunca se ter arrependido da atitude que tomou, a verdade é que o estado de espírito do Dr. Rosinha começou a ficar abalado com a monotonia da vida de reformado! Dentro de si havia ainda muito a dar, sobretudo à juventude que frequentava cursos universitários das áreas relacionadas com o sector agrário do país, onde a fauna, as florestas e a pecuária se inseriam. Jovens esses praticamente entregues a professores estrangeiros desconhecedores das realidades do país e por isso pouco recomendáveis como conselheiros ou orientadores em relação às melhores opções e vocação de cada um.

Os amigos mais próximos ficaram preocupados com a sua estabilidade emocional e conselhos não faltaram incentivando-o a voltar às lides da formação, que ele bem dominava nessas áreas, conforme provas insofismáveis que antes já dera leccionando em cursos médios ou mesmo superiores quando no activo no Ministério da Agricultura.

Tais preocupações acabariam por chegar ao mais alto magistrado da nação, o presidente Samora Machel, que mandou chamar o seu amigo de longa data (eles se conheceram e conviveram em meados da década de 50 na circunscrição de Bela-Vista, actual Matutuine, onde Samora era enfermeiro).

Nesse encontro o Dr. Rosinha, instado pelo presidente, teve a oportunidade de esclarecer as razões que o levaram a reformar-se aos 61 anos. O que lhe disse não foi muito diferente da resposta dada ao jornalista do “Domingo
”. “Moçambique é uma terra de jovens que, diga-se em abono da verdade, desprezam os mais velhos. Sabe porque é que me reformei? Fiquei um ano sem fazer nada no Ministério da Agricultura. Nomearam-me consultor técnico. No tempo colonial esta categoria corresponderia a inspector, ou melhor, o que fica arrumado na prateleira. E foi isso que aconteceu, porque do meu escritório eu apenas contava camiões na estrada, até que cheguei à conclusão de que setenta por cento dos que passavam não estavam carregados.”
Mas Samora Machel soube dar a volta à frustração do seu velho amigo, primeiro dando-lhe razão, mas depois argumentou que os jovens são os vanguardistas das revoluções e como tal os velhos teriam que os desculpar! Depois de longa conversa e a meio de um brinde com bom champanhe francês, Samora lançou a pergunta fundamental: “Rosinha, ainda te consideras útil à nossa revolução?” À resposta afirmativa concluiu:
“Então vais para a Universidade onde a tua sabedoria está a fazer falta aos jovens do país”.


Momento em que Samora Machel recebia o Dr. Rosinha no encontro que mudaria o rumo da sua vida profissional

4. - DOCENTE NA FACULDADE DE VETERINÁRIA

A partir daquele momento uma nova vida nasceu para este homem já descrente, que a revolução até então não soubera aproveitar e que em certa medida subestimou. Um homem que em 1975 requereu a nacionalidade moçambicana justamente porque acreditou nessa revolução e nas pessoas que conduziram o país à independência.

Pouco tempo depois do encontro com Samora Machel, a Faculdade de Veterinária da Universidade Eduardo Mondlane passou a contar com este novo docente e logo ali se operaram grandes alterações. Por sua iniciativa concretizou-se um velho sonho: a inclusão da disciplina de fauna bravia no currículo do curso de veterinária! A direcção da faculdade passou a ter o assessor que ali faltava, sobretudo para supervisionar o trabalho dos docentes estrangeiros, alguns deles com dificuldades no domínio do português e que tiveram no novo colega Rosinha um apoio inestimável!

Os alunos da faculdade rejubilaram com as novas directrizes do seu curso, nomeadamente aqueles que se interessavam pela nova disciplina e por terem como seu professor um notável técnico, conhecedor profundo da matéria, do país e dos problemas do sector, a pessoa certa para motivar os entusiastas pela fauna bravia a conduzir os seus estudos com vista à sua carreira profissional pós faculdade!

Muitas dezenas de livros que constituíam o vasto acervo literário da especialidade que o Dr. Rosinha possuía, assim como os trabalhos da sua autoria editados no país e que o notabilizaram como o técnico com maiores conhecimentos sobre a vida bravia de Moçambique, legou-os à faculdade e o seu próprio gabinete passou a ser uma autêntica biblioteca onde os alunos tinham todo esse espólio à disposição. São preciosas essas suas obras, assim como centenas de relatórios que desenvolveu ao longo da sua carreira na MCT e na Fauna Bravia, que infelizmente não foram editados e por isso se perderam nos arquivos que vieram a ser destruídos em 1978 quando as caves do Ministério da Agricultura foram inundadas pelas cheias ocorridas em Maputo. Graças à dispersão das suas obras editadas em brochuras em vários serviços, nomeadamente nos Institutos Agronómico e de Veterinária, foi possível reunir a colecção que se encontra a salvo. Eu próprio tenho a felicidade de possuir essa colecção, que preservo como um precioso legado do mestre Rosinha e muito tem já servido a estudantes, portugueses e moçambicanos, que me consultam sobre os problemas faunísticos de Moçambique. Recordo esses preciosos trabalhos: 1)- “Valerá a pena recuperar a caça no Maputo?” (1960); 2)- “O Parque Nacional da Gorongosa” (1968); 3)- “Da conveniência em se valorizar a Reserva Especial do Maputo mediante a introdução de algumas espécies faunísticas ali inexistentes” (1969); 4)- “Alguns aspectos da caça clandestina em Moçambique e sugestões para se pôr cobro à destruição do nosso património cinegético” (1969 - em colaboração com os Drs. Alexandre de Sousa Dias e Jaime Travassos Dias); 5)- “Protecção da Fauna em Moçambique – Algo do que se fez e do que importa fazer” (1969); 6)- “Terão justificação os abates indiscriminados da caça como medida de luta contra a mosca tsé-tsé ? – Uma análise do caso de Moçambique” (1970 - em colaboração com o Prof. Dr. Travassos Dias); 7)- “Proposta para a criação do Parque Nacional do Banhine” (1971 - em colaboração com o Prof. Dr. Travassos Dias e em cujo trabalho de reconhecimento eu próprio participei, tal como o caçador-guia Luís Pedro Sá e Mello); 8)- “ O Direito de Caçar: Quem o pode exercer e onde pode ser exercido” (1971); 9)- “Legislação base da “Protecção da Natureza no Ultramar Português” (1972).
O grupo que em 1971 efectuou o reconhecimento da área decretada em 1973 como “Parque Nacional do Banhine”. Da esqª para a direita: Luís Sá Mello, Celestino Gonçalves, Prof. Dr. Travassos Dias e Dr. Armando Rosinha


Os autores do relatório citado em 6) – Drs. Travassos Dias e Armando Rosinha - trabalharam vários anos na Missão de Combate às Tripanossomíases, chefiando sectores que tinham a tarefa de suprimir os animais selvagens com vista a eliminar a mosca tsé-tsé. Ambos deixaram este organismo agastados e desiludidos com essa tarefa porque a sua longa experiência e estudos efectuados os levou a concluir que era uma medida errada, ineficaz e inglória! Dados do relatório relativos a 5 das principais zonas do território onde a MCT actuou, entre 1947 e 1969, referem que foram abatidos 233.513 animais de todas as espécies de mamíferos, contando-se por largas dezenas de milhar as grandes espécies como elefantes, rinocerontes, hipopótamos, búfalos, girafas, elandes, zebras, bois-cavalo, palapalas, gondongas, inhalas, cudos, mezanzes e matagaiças. Um património fantástico e valioso que não foi substituído por gado doméstico nem pela apregoada agricultura organizada! E, o que também é lastimável, é que não foram poupadas espécies raras ou mesmo em vias de extinção, inexistentes nos parques e reservas, como rinocerontes, girafas, mezanzes e matagaiças, nem se promoveu a sua transferência para essas zonas de protecção!

Não resisto em abordar aqui este assunto porque se trata de um testemunho insofismável do grande carácter dos autores (ambos já falecidos), homens de coragem e técnicos consagrados, que enfrentaram toda uma plêiade de cientistas que defendiam e continuaram a praticar as medidas da MCT, lançando com este relatório um grito de alarme para que se acabasse com esses massacres. Eles não esconderam a sua revolta com estas palavras, na sequência da citação daquele número astronómico de peças de caça abatidas: “…número este que , ao registá-lo, o não poderemos fazer sem que um frémito de angústia nos tivesse invadido o espírito, deixando-nos verdadeiramente compungidos”.
Noutra parte do relatório, após demonstrarem a ineficácia dos métodos da MCT e de citarem a opinião de três outros conceituados cientistas estrangeiros que comungavam das mesmas ideias, os autores acrescentaram: “Não obstante estas conclusões – que pareciam claramente indicativas de que uma nova linha de pensamento viria a orientar os futuros abates de caça, nas áreas em que os mesmos se tornassem de todo necessários – a verdade é que aqueles continuaram, e continuam ainda hoje, a fazer-se de uma forma indiscriminada, desafiando as mais rudimentares regras do verdadeiro espírito científico, sem que de tal facto tivessem resultado consideráveis alterações nas comunidades glossínicas cuja destruição se visava”.

A dedicatória do autor, nesta e nas restantes brochuras dos seus valiosos relatórios e estudos acima descritos, assim como outras escritas pelo seu punho em muitos livros e álbuns que me ofereceu ao longo de mais de quatro décadas de relacionamento, são prova da amizade que sempre me dispensou. Guardo religiosamente todas essas obras e tenho a certeza que serão igualmente preservadas e estimadas pelas gerações minhas descendentes.
Ao longo dos dez anos que o Dr. Rosinha leccionou na faculdade de veterinária, foram notórias as transformações ali operadas e dali saiu um bom lote de licenciados que passaram a ocupar lugares de chefia no sector da fauna bravia do país. Todos eles tecem rasgados elogios a este seu professor e amigo que os soube cativar para a causa da conservação. Durante todo esse tempo ele preparou um seu substituto para dar continuidade à gestão da cadeira de fauna, o simpático Dr. Samuel Bila, que foi seu assistente desde o início e mais tarde se doutorou na África do Sul.


5 - O NOSSO RELACIONAMENTO


O Dr. Rosinha chegou à Beira, em 1964. Eu encontrava-me em Vila Pery (actual Chimoio), desde Janeiro de 1963, acumulando as tarefas de fiscalização com as de responsável administrativo do Parque Nacional da Gorongosa, visto que ali funcionava a administração do Parque sob a tutela do veterinário Dr. Amadeu da Silva e Costa.


O primeiro contacto que tive com o Dr. Rosinha foi no seu gabinete, na Beira, onde lhe fui apresentar cumprimentos pouco depois da sua chegada. Antes disso apenas o conhecia de nome por ter lido a sua primeira obra “Valerá a pena recuperar a caça no Maputo? (1960)” e por referências de amigos que com ele trabalharam na MCT.

Tivemos na altura uma longa conversa em que a tónica foi a situação da fauna bravia do distrito (agora províncias de Sofala e de Manica) e sobretudo do Parque Nacional da Gorongosa. Desde logo fiquei com excelente impressão deste homem, que me pareceu (e não me enganei) diferente dos seus colegas veterinários com quem trabalhei. Calmo, afável no trato e conhecedor profundo da fauna bravia e dos problemas do respectivo sector, foram as notas que mais registei nesse encontro, para além de ter ficado satisfeito por me ter dito que lhe tinham falado de mim antes da ir para a Beira e que ficara com boa impressão da minha pessoa!
Logo ali se marcaram alguns trabalhos em que eu deveria participar no imediato, entre eles a recepção ao Governador-Geral que iria visitar a Gorongosa.



Visita do Governador-Geral Engº Arantes e Oliveira e comitiva ao Parque Nacional da Gorongosa, em 1964. Da esqª para a direita: 1º plano: Esposa do Governador, Governador e Srª Supico Pinto. 2º plano: Celestino Gonçalves, Dr. Armando Rosinha, Engº Gomes Pedro e ajudante de campo do Governador


Seguiram-se outras tarefas por si determinadas sempre em acordo com o chefe directo a que eu estava subordinado, que era o seu colega delegado de sanidade pecuária de Vila Pery. Uma delas foi a condução do safari de caça do capitão Agostin Muños Grandes, filho do Ministro da Defesa de Espanha, que fora convidado pelo Presidente da República na sequência dos safaris que a filha e genro do general Franco fizeram igualmente a convite do governo português, nesse ano e no anterior, em que eu próprio havia participado como supervisor.

1964 - Safari de Agostin Muños Grandes

A época que se atravessava era de autêntica euforia cinegética, com grande afluência de turistas caçadores às coutadas e muitos visitantes ao coração da fauna bravia de Moçambique – a Gorongosa! A indústria dos safaris de caça, nascida no início da década, não estava estruturada para suportar semelhante afluxo e os problemas começaram a surgir e obrigavam a redobrados esforços por parte do organismo de tutela e dos poucos agentes da fiscalização que não tinham mãos a medir para acudir aqui e ali a situações que implicavam a sua intervenção. Muitas vezes éramos chamados para servir de cicerones de visitantes oficiais ou mesmo de simples turistas, à falta de profissionais privados!

Felizmente que foi criada, em 1965, sob a égide do Banco Nacional Ultramarino, a SAFRIQUE (Sociedade de Safaris de Moçambique), empresa que absorveu 9 das doze coutadas oficiais do distrito e que viria a tornar-se na mais importante do ramo em todo o continente africano! Para além dos safaris de caça nas coutadas, passou também a explorar o sector hoteleiro do Chitengo e os safaris contemplativos no Parque.

Todo este processo de transformação foi impulsionado e dinamizado pelo Dr. Rosinha, na qualidade de representante da tutela do sector da fauna bravia, passando pelas suas mãos todos os processos de transferência das concessões, criação de normas disciplinadoras das actividades cinegéticas, obtenção de meios humanos e materiais para fazer face aos progressos do sector, etc.

O famoso cartaz da SAFRIQUE usado nos seus mais diversos panfletos de promoção em todo o mundo

Em Outubro de 1965 a administração do Parque regressou à tutela da Repartição de Veterinária da Beira. Foi um alívio para mim esta mudança visto que deixei de ter a responsabilidade pela parte administrativa do Parque, cuja burocracia me roubava muito tempo em prejuízo das outras tarefas como a fiscalização das actividades de caça e o controle dos animais problemáticos. Por decisão do Dr. Rosinha, continuei a dar apoio técnico ao Parque, porque praticamente todos os quadros que entretanto lá foram colocados eram jovens que estavam no início de carreira e por isso com pouca experiência.

As tarefas que mais requeriam a minha presença no Parque e zonas periféricas, eram precisamente as de controle dos elefantes, quer os que invadiam e destruíam as culturas alimentares das populações circunvizinhas, quer aqueles que dentro da zona turística se tornavam agressivos para com os visitantes atacando as viaturas. Em relação a estes últimos casos, que felizmente eram raros e nunca atingiram proporções graves, como algumas vezes aconteceu noutros parques e reservas africanas onde morreram pessoas, nem sempre era fácil identificar o animal que atacava os carros, uma vez que no Parque havia mais de dois mil elefantes divididos em pequenas manadas dispersas por toda a parte.
Sabendo dessa dificuldade, o Dr. Rosinha, que era um conservador nato (nunca abateu um animal), quis ele próprio acompanhar-nos nas operações de busca e identificação, quando, pouco depois do início do seu mandato como administrador do Parque, houve necessidade de abater três elefantes que ultimamente vinham causando problemas aos turistas. Ele observou como testamos os grupos de animais suspeitos e só quando ficou convencido que não restavam dúvidas sobre a identificação do causador dos ataques é que autorizou o abate dos mesmos.

O Dr. Rosinha, ao lado do meu colega Lobão Tello (que está ao volante do Land-Rover), durante uma das operações de busca e identificação dos elefantes perigosos no Parque. No banco de trás eu e o meu pisteiro favorito – o guarda António Algesse – que me acompanhou em muitas missões de controle, dentro e fora do Parque.

Depois do teste o elefante problemático destacava-se do grupo e carregava. Este foi um dos sacrificados!



O Dr Rosinha passava todos os fins de semana no Parque, trabalhando afincadamente com os agentes e percorrendo de ponta a ponta toda a área do mesmo para se inteirar dos trabalhos em curso e identificar os problemas existentes. Em resultado desse trabalho profícuo registaram-se muitas melhorias durante a vigência do seu mandato, incluindo o alargamento dos limites abrangendo zonas da periferia que fazem parte dos ecossistemas vitais do Parque, situadas a Leste do rio Urema, ecologicamente vitais para as espécies que mais se movimentam para se alimentar, como é o caso dos elefantes, búfalos, bois-cavalo, zebras, elandes, gondongas, cudos e palapalas. Foi também um golpe tremendo nos caçadores furtivos que tinham nessas áreas um vasto campo de acção onde praticavam as maiores barbaridades, abatendo essas espécies por vezes indiscriminadamente!



1965 - O Dr. Rosinha junto da entrada do Parque no dia em que ali foi pela primeira vez como seu Administrador

1966 - A comissão de revisão dos limites do PNG quando tomava uma refeição na região a Leste do rio Urema, durante os trabalhos de reconhecimento. Da esqª para a dirª: Dr. Alexandre de Sousa Dias; Engº Aguiar Macedo; Engº Gomes Pedro (chefe da comissão); Dr. Armando Rosinha; Dr. Travassos Dias; Engº Borges Leitão; Engº Baião Esteves e Celestino Gonçalves

Em fins de 1967 o Dr. Rosinha foi nomeado adjunto do chefe da Missão de Estudos Bioceanológicos e de Pescas de Moçambique, em Lourenço Marques. Entretanto o Parque Nacional da Gorongosa foi dotado do seu primeiro administrador residente, o médico veterinário Dr. Francisco Romão, ido especialmente da Metrópole. Foi também contratado o conceituado ecologista sul africano Kenneth Tinley, que durante dois anos desenvolveu ali um excelente trabalho de reconhecimento dos ecossistemas do Parque.
Finalmente os serviços centrais da tutela em Lourenço Marques, que entretanto também sofreram alterações na chefia, passaram a dar a devida importância àquele que na época fora considerado o mais bonito e completo santuário da fauna bravia de África!

Pouco depois da partida do Dr. Rosinha, também eu rumei à capital por motivo da minha transferência de Vila Pery para o Posto de Fiscalização de Caça da Matola, onde cheguei em Janeiro de 1968.
Reiniciamos assim os nossos contactos, tanto institucionais como pessoais visto que nos ligava uma salutar amizade que nascera e se cimentara nos tempos de Manica e Sofala. O seu regresso aos Serviços de Veterinária nesse mesmo ano e a sua nomeação como chefe dos Serviços de Protecção da Fauna, abriu as portas para voltarmos a trabalhar juntos.

Sem menosprezar o trabalho dos seus antecessores, Drs. Mário Guerra e Alexandre Sousa Dias, a verdade é que o sector da fauna deu saltos significativos depois da sua nomeação, graças aos seus profundos conhecimentos, dinamismo e espírito inovador. Naturalmente que os sucessos alcançados só foram possíveis graças também ao apoio incondicional do director nacional, Dr. Fernando Paisana, outro elemento que tendo igualmente militado na MCT, durante muitos anos, acabaria por se transformar, tal como os seus colegas Rosinha e Travassos Dias, num grande amigo e conservador da fauna, apoiando este sector como nenhum outro seu colega antes fez. A ele se deveram grandes transformações nos Serviços de Veterinária em geral e na Fauna Bravia em particular. Só para citar alguns exemplos no sector da fauna, saliento: a oportuna contratação do ecologista sul africano Kenneth Tinley para o PNG, uma medida inédita e de grande visão para o desenvolvimento do Parque e outras zonas do território onde actuou depois de concluídos os trabalhos na Gorongosa, como Banhine, Pomene, arquipélago do Bazaruto, Marromeu, etc.; a contratação do primeiro administrador residente do mesmo Parque, Dr. Francisco Romão; a revisão dos quadros e criação de novos postos para o corpo de fiscalização; a dotação de verbas para novos postos de fiscalização, viaturas e material de campanha para os fiscais. A ele se deve, também, o regresso do Dr. Rosinha aos Serviços de Veterinária e a sua nomeação para a chefia da Fauna Bravia.

As relações com os organismos internacionais de protecção da fauna, que até ali eram muito tímidas nos apoios a Moçambique, nomeadamente a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), a Convenção Internacional sobre o Comércio das Espécies Protegidas de Fauna e Flora (CITES) e o Fundo Mundial para a a Conservação da Vida Selvagem (WWF), passaram a ser mais profícuas tanto em donativos para a conservação,  como na cedência, a custo zero, de técnicos especialistas em fauna e controle de queimada. Tudo se ficou a dever à dupla Paisana-Rosinha, ambos imbuídos de um elevado espírito conservacionista que poucos colegas da sua geração cultivaram. O Dr. Paisana, já  em Portugal e depois de reformado, assumiu as funções de administrador do Jardim Zoológico de Lisboa e ainda hoje ali desempenha este cargo com elevada competência!

De destacar, também, o excelente relacionamento que se manteve com a vizinha África do Sul, expoente máximo da conservação da vida bravia em África, de onde já havíamos recebido cerca de quarenta rinocerontes brancos para a Reserva do Maputo e Parque da Gorongosa e alguns antílopes médios para a mesma Reserva.
Com a Rodésia (actual Zimbabwe), passamos também a ter óptimas relações. Os benefícios, embora comuns, sempre penderam mais para a parte moçambicana devido ao maior desenvolvimento do sector da fauna desses países, onde alguns dos nossos técnicos se deslocaram em visitas de estudo e outros obtiveram formação nesta área. Eu próprio, com o Dr. Rosinha e o meu colega Rato Martins, participamos, em Pretória, num curso de técnicas de captura e uso de drogas entorpecentes. Continuamos a receber animais do Kruger Park, como zebras e antílopes, agora para o Jardim Zoológico de Lourenço Marques, na altura dirigido em acumulação de funções pelo próprio Dr. Rosinha. Acordou-se com os rodesianos a realização de uma grande operação de captura de gondongas, em 1973, a norte do Parque da Gorongosa, que culminou com o envio de 60 destes animais para repovoamento da espécie na sua reserva de Gona-Ra-Zow e 10 para o Jardim Zoológico de Lourenço Marques.
1973 – "Operação Gondonga" na antiga Coutada 1, limite norte do PNG. Na imagem o Dr. Rosinha e Celestino Gonçalves observando uma fase da operação.



1973 - Uma fase da operação quando se procedia ao desembaraço de uma gondonga que ficara presa nas redes



1973 - Operação Gondonga. A equipa rodesiana com os técnicos da parte moçambicana que participaram na operação: Dr. Rosinha, Kenneth Tinley (4º e 5º de pé), Dr. Albano Cortez e Celestino Gonçalves (últimos de joelhos à direita). Na foto estão ainda o veterinário Dr. Joaquim Gradil e filho (esqª de pé), o caçador-guia Carlos Costa Neves (penúltimo à dirª), o filho do Dr. Rosinha e o filho do Celestino Gonçalves (de joelhos à esqª), que ali estiveram como espectadores.


Para que o sector da fauna funcionasse ao nível dos seus desejos, o Dr. Rosinha impôs a si mesmo um ritmo de trabalho que implicava constantes saídas para o interior do território, quer para controlar as actividades dos serviços e dos agentes nos distritos, quer para inspeccionar as actividades da indústria dos safaris de caça a cargo do sector privado. Anualmente e durante o pino da actividade cinegética, fazia longas viagens, visitando parques, reservas, coutadas e zonas livres de caça, contactando com os respectivos chefes, agentes, empresários, caçadores-guias, fiscais de caça, guardas e os próprios turistas. Privilegiava, por vezes, o uso de viatura 4x4 mesmo para longas viagens a partir da capital, mas também as carreiras aéreas da antiga DETA (actual LAM), os pequenos aviões (táxi aéreo) e até helicópteros, neste último caso só em missões específicas, como foram algumas campanhas de controle dos furtivos no Alto Limpopo, reconhecimentos aéreos da Reserva do Maputo e Parque da Gorongosa e preparativos para a realização da “Operação Arca de Noé” em Cabora Bassa. Este último trabalho, embora programado com antecedência, acabou por não ser efectuado devido a ordens superiores resultantes das transformações políticas provocadas pelo golpe de estado em 25 de Abril de 1974, cerca de um mês antes  do fecho das comportas da barragem.

1973 - Campanha do Alto Limpopo. O Dr. Rosinha com o caçador-guia Luís Sá Mello (centro) e o piloto Cunha (esqª), junto do helicóptero no acampamento do Assane - Coutada 16


1973 – Campanha do Alto Limpopo. O uso de helicóptero possibilitou a descoberta de muitos locais de abate clandestino de elefantes e acampamentos dos autores dos massacres.
Na foto: Dr. Rosinha, o piloto Cunha (centro) e Gonçalves (dirtª)

Em quase todas as viagens de serviço realizadas pelo Dr. Rosinha, dentro de Moçambique, entre 1969 e 1980, fui seu companheiro com a missão de assessorar o seu trabalho, quer no campo quer nas sedes distritais. A mais demorada ocorreu em 1971, com saída de Lourenço Marques a 9 de Agosto e regresso a 3 de Setembro – 26 dias – em inspecção às coutadas oficiais e áreas livres de caça dos distritos de Gaza, Inhambane e Manica e Sofala, tendo sido percorridos 6.450 quilómetros!

1971 - Mapa com o roteiro da viagem de inspecção às coutadas.
(extraído do relatório dos trabalhos dessa missão)


1971 - Durante a viagem de inspecção às coutadas houve uma pausa no Chitengo para rever o Parque . A foto regista um momento de convívio com os técnicos do Parque e da SAFRIQE. Da esqª para a dirª: Dr. Rosinha, Adelino Brígido (inspector da Safarique) Dr. Francisco Romão (administrador do Parque), um piloto da empresa de táxis aéreos da Beira, Luís Fernandes (adjunto da administração do Parque), Adelino Serras Pires (inspector e sócio da Safrique), Joaquim Pedro Rato Martins (fiscal de caça do Parque) e Celestino Gonçalves


1971 - Com o astronauta Stuart Roosa, da Apollo 14 (ao centro), no acampamento de Inhamacala - Coutada 6 - da Safrique


1969 - A sua primeira viagem de inspecção às Coutadas como responsável do Serviço de Protecção à Fauna. Foto tirada na Coutada 11 - Sofala - no decorrer de um safari conduzido pelo caçador-guia Adelino Serras Pires (de costas)





6 – GRANDES MUDANÇAS DEPOIS DA INDEPENDÊNCIA EM 1975

Depois da viragem política provocada pelo golpe de Estado em Portugal em 25 de Abril de 1974, que conduziu Moçambique (e as outras colónias portuguesas) à independência em Junho de 1975, o sector da fauna continuou a ser dirigido pelo Dr. Armando Rosinha. Eu aceitei o convite para continuar na condição de cooperante, tendo renovado sucessivos contratos (bi-anuais) até 1990.

Durante os primeiros três anos após a independência, a chefia da fauna conseguiu o que parecia muito difícil naquela fase, que foi arrumar a casa com a prata existente. Começou por reciclar os cerca de 40 agentes existentes – fiscais de caça e guardas de parques, reservas e coutadas - reunindo-os num curso acelerado no Chitengo – Gorongosa. A primeira ficha que lhes foi apresentada, logo após a abertura do curso pelo Dr. Rosinha, obrigava-os, entre outros quesitos, a responder a um muito importante que era se queriam ou não continuar a exercer as suas funções como agentes de fiscalização. A alternativa a este resposta, se fosse negativa, era o seu ingresso nos serviços administrativos, em lugar equivalente ao salário que auferiam nas funções de fiscais e guardas. Quatro ou cinco foram os que preferiram trocar e logo foram afectados em cargos correspondentes nas secretarias dos serviços, uns na Beira e outros em Maputo.
Eles compreenderam a mensagem: Na fauna bravia só poderia continuar quem na verdade se sentia bem como agente da conservação, em suma, quem tivesse paixão pela vida bravia!

Após esse curso, que viria a ter o seu epílogo em Maputo onde eu próprio ministrei a disciplina que não fora dada no Chitengo – Legislação e sua aplicação –, os agentes reciclados vieram a ser colocados em função das melhores conveniências para os serviços.



1977 - Os agentes de fiscalização de fauna e florestas que participaram no curso de reciclagem. A foto (onde também estou, de joelhos) foi tirada no centro de formação de cunicultura de Boane onde decorreu a fase final do curso.

O primeiro classificado daquele curso foi o fiscal de caça Elija Uilissone Chamba, que era dos primeiros negros que no período colonial ingressaram na fauna e que melhor se adaptou a estas funções, trabalhando na província da Zambézia. Ele veio a ser escolhido para trabalhar nos serviços de tutela da Fauna, em Maputo, começando por ser meu contraparte, passando depois para responsável da Campanha Nacional para o Controle das Queimadas, a seguir adjunto do director da empresa estatal EMOFAUNA, depois director da Unidade de Direcção da Fauna Bravia (onde eu fui seu adjunto) e, por último, quando esta direcção foi extinta, chefe do Departamento de Fauna da Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia. Um percurso que correspondeu às esperanças nele depositadas pelo Dr. Rosinha, mas infelizmente interrompido com a sua morte precoce, por acidente de viação nos primeiros anos da década de 90.

Entretanto, o sector da fauna conheceu os seus melhores tempos em matéria de apoios, recebendo subsídios das organizações internacionais e nomeadamente dos países nórdicos através do projecto MONAP (Mozambique Nordic Program). Foi possível, nesses anos, criar melhores condições de trabalho nos parques nacionais, nas reservas e postos de fiscalização e criar pela primeira vez um sector para gerir a campanha nacional para o controle das queimadas, assessorado por um técnico especialista vindo da Inglaterra. Foram escolhidos os melhores agentes para chefiar essas brigadas e cada província recebeu uma equipa dotada de carro novo, material de campanha, aparelhagem sofisticada de projecção e material didáctico adequados, tendo ficado a cargo do conceituado ecologista sul africano, Paul Dutton, nosso colaborador, todo o processo logístico da sua aquisição assim como o treino dos agentes para a sua utilização.

Com a criação, em 1979, da Unidade de Direcção da Fauna Bravia (uma experiência de modelo cubano que fracassou ao fim de dois anos), substituindo o Departamento da Fauna e a nomeação de Elija Chamba para seu director, o Dr. Rosinha viria a ser nomeado consultor-técnico da Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia e aí foi o fim da carreira deste respeitável homem e consagrado técnico no Ministério da Agricultura! Em vez de o manterem ligado ao sector, que ele tão bem dirigiu durante muitos anos, colocaram-no num gabinete especial sem definição clara do seu trabalho. Aconteceu o que ele logo previu: arrumaram-no na prateleira! Era a revolução a actuar pela cabeça dos jovens pouco preparados politicamente e desconhecedores das realidades da nação, ignorantes mesmo dos problemas da fauna bravia, um riquíssimo património que para esses revolucionários pouco ou nada significava!

Valeu-lhe o seu amigo Samora Machel depois dessa experiência amarga que o levou a reformar-se prematuramente! Os dez anos que passou como docente e assessor da Faculdade de Veterinária, foram a grande recompensa que recebeu pela sua dedicação ao país, pelo muito que fez ao longo da sua carreira, pelo muito que ensinou aos jovens e pelos bons exemplos que deu a todos que o conheceram e com ele trabalharam!

Eu, particularmente, tenho uma grande dívida para com este homem que foi a minha maior referência em Moçambique como exemplo e paradigma de pessoa de bem, de chefe competente, compreensivo e solidário com os seus subordinados. Do técnico que embora de nível superior e conhecedor profundo dos assuntos da fauna nunca desprezava a opinião dos menos categorizados. Ele também soube quanto eu o estimava e respeitava e por isso nunca regateou a sua amizade, a mim e aos meus!

Depois de ter regressado a Portugal em 1994, por motivo de doença, a sua vida acabou por estabilizar, vivendo tranquilamente com uma das filhas, a Paula, em Carnaxide, às portas de Lisboa. Durante muitos anos habituamo-nos às suas visitas, iniciadas em 1991 quando vinha de férias e depois continuadas com mais assiduidade a partir do seu regresso passando muitos dias connosco na aldeia, onde a sua companhia nos encantava e muito honrava.

Aqui, no sossego da nossa modesta casa, ele passava o tempo como melhor entendia, lendo e vendo futebol na televisão, mas também dando as suas voltinhas pelo quintal para observar e comentar o que achava diferente na horta, nas árvores e no jardim. Adorava comer a fruta colhida directamente das árvores, tendo especial predilecção pelos pêssegos, tangerinas, nêsperas, figos e alperches. Não dispensava, também, passeios pelas redondezas para apreciar as belezas naturais deste local outrora frequentado pelo rei D. Dinis e que, segundo reza a lenda, se chama Amor porque o monarca tinha aqui uma amante!
1993 - O ambiente bucólico da minha aldeia e a beleza natural envolvente fascinava-o!

1991 - A povoação de Amor teve a sua origem neste local designado de Alto de S. Paulo. Era um dos sítios que o Dr. Rosinha muito gostava de visitar por ter uma vegetação natural exuberante e dali se desfrutar toda a aldeia!
1995 - Colhendo pêssegos no pomar


1995 - Observando o milheiral
Adorava, também, plantar árvores e fazia sempre questão de ser ele a comprá-las directamente nos viveiros. Aquela de que mais gostava era o cipreste plantado em frente da casa, em 1999, e junto dele se deixava fotografar com frequência, sozinho ou com outras pessoas.


1999 - Plantação do cipreste

2000 - Crescimento rápido do mesmo cipreste


2004 - Junto do mesmo cipreste com os filhos Paula e António

Havia períodos especiais que fazia questão de estar na nossa companhia: em Março para assistir à plantação das batatas; em Junho para ver a horta viçosa e comer os seus produtos sãos e saborosos e ainda comer os primeiros frutos da época que são os alperches; Em Julho para assistir à colheita da batata; em Setembro para assistir à vindima. Depois disso havia o período de inverno em que preferia ficar em Carnaxide onde o clima é mais brando.

Aqui se encontrava com amigos comuns e conheceu muitas pessoas das nossas relações!


2000 - Diálogo com Mia Couto

2000 - Encontro com os seus colegas Drs. Pinho Morgado e Caldas Duque





1998 - Com o seu colega Dr. Vale Henriques na abertura de um pipo de vinho da quintinha Marrabenta

2003 - Com os casais Florêncio Machado e Manuel Bom,

cuja amizade nasceu em Moçambique

2000- Com um grupo de machistas no dia da vindima!

2003 - Com Fernando Costa (esqª), um dos mais competentes colaboradores da fauna em Moçambique e em Angola (antes e depois das respectivas independências)!


1998 - Com Rita Bens, a nossa antiga colega (tradutora) dos Serviços da Fauna

2000 - As minhas netas adoravam o avô Rosinha!

Na foto com a Dania, a mais nova!



2002 - Com as filhas Paula e Ana e respectivos maridos
num belo dia de verão na Marrabenta!


2000 - Com o Luis Pedro Sá e Mello, o mais consagrado dos caçadores guias portugueses ainda em actividade na Tanzania
Também fizemos muitas viagens pela região, que ele muito apreciava. As praias desde a Nazaré à Figueira da Foz, Fátima, Batalha, Alcobaça, Leiria, Marinha Grande, Santarém, Alpiarça, Almeirim, Coimbra, Ourém, Tomar, Castelo de Bode e muitas aldeias das redondezas, foram lugares de eleição para essas deslocações.

2003 - Na Nazaré, comigo e com o Xico Magalhães


1991 - No castelo de Leiria

2001 - Em Fátima com as filhas do amigo comum João Carrilho,
                                             ex-vice Ministro da Agricultura de Moçambique
Em 2002 fomos mais longe, ao norte, com o objectivo principal de visitar a sua terra natal - Mogadouro - conforme seu desejo há muito manifestado. Foi uma romagem de saudade a muitos locais onde viveu na sua juventude quando estudava e lá ia passar as férias, mas também muito gratificante para nós porque não conhecíamos aquela e outras regiões de Trás-os-Montes que tivemos a oportunidade de visitar.


2002 - Na avenida principal da sua terra natal - Mogadouro


1991 - Na Beira Alta visitámos a Casa Museu Aquilino Ribeiro
Fomos também a muitos convívios, um deles no Buçaco, onde nos encontramos com velhos amigos de Moçambique, um deles muito especial que era o saudoso Dário Mosca, antigo comerciante da vila da Gorongosa, nosso amigo e do Parque.


1991 - Encontro com amigos especiais no convívio de moçambicanos no Buçaco. O saudoso Dário Mosca é o penúltimo à direita.

Também participou conosco em várias cerimónias de casamentos de pessoas das nossas relações. Nos últimos anos o gosto pelas saídas foi abrandando porque já se cansava de andar a pé. Quando íamos à cidade deixava-o numa pastelaria ou numa esplanada a tomar o seu cafezinho e a ler o jornal enquanto eu dava as voltas necessárias.

1997 - Em Alpiarça com a Lurdes e a nossa neta Maura quando fomos ao casamento do José Viegas, filho do último encarregado português do Jardim Zoológico de Lourenço Marques, Vasco Viegas, nosso comum e particular amigo que também já nos deixou!


A última estadia do Dr. Rosinha na nossa casa de Amor foi no verão de 2006, precisamente em Julho quando efectuamos a colheita da batata. Um acidente de automóvel em que seguia ao lado do condutor, no final desse ano, trouxe-lhe vários problemas, entre eles o agravamento da sua já notória dificuldade de locomoção.



2006 - Observando os trabalhos de arranque da batata durante a sua última estadia em Amor.

Passei a visitá-lo em Carnaxide e nas nossas conversas ele fazia sempre questão de saber como estavam os meus familiares, as pessoas das nossas relações e também, em pormenor, como estavam as árvores, o seu favorito cipreste, a horta, o jardim, a criação etc.!

Mas a Natureza é implacável!

Uma doença súbita de que foi acometido já depois da última visita que lhe fiz, foi irreversível.

Partiu com a serenidade no rosto que lhe era peculiar. Terá contribuído para isso a cuidada assistência clínica durante a fase crítica da sua doença, mas também e principalmente o carinho e a presença constante dos seus quatro filhos, netos, nora e genros.

Fazia 90 anos no dia em que nos deixou!

Ficou um grande vazio na família e naqueles que tiveram o privilégio de o ter como amigo!

Perdeu-se, sem dúvida, a memória histórica mais completa do sector da fauna bravia de Moçambique!



7 – MENSAGEM DE CONDOLÊNCIAS DOS COLEGAS DE MOÇAMBIQUE, SEUS EX-ALUNOS

Volvidos quinze anos após o seu regresso a Portugal por motivos de doença, os seus antigos alunos agora diplomados e ao serviço da Fauna Bravia de Moçambique, enviaram à família, por ocasião do desaparecimento físico do seu antigo professor, uma sentida mensagem de condolências, assinada em nome de todos pelo actual director nacional de Áreas de Conservação, Dr. Francisco Pariela, a qual muito gentilmente me foi também enviada em atenção à minha condição de amigo comum e também pelo facto de ter sido colaborador de alguns dos seus subscritores. É do conteúdo dessa extensa e sentida mensagem que tomo a liberdade de aqui reproduzir dois trechos:

“Estamos todos de luto! Estamos assolados pela profunda mágoa do desaparecimento físico do nosso querido Dr. Rosinha! Este Senhor é um ícon da conservação em Moçambique mas mais do que isso ele representa o Pai da Conservação em Moçambique, pois muito conhecimento partilhou com as várias gerações . Conhecemo-lo através das suas grandes obras para a fauna bravia, feitas através da Repartição Técnica da Fauna Bravia dos Serviços de Veterinária, da Unidade de Gestão da Fauna Bravia e depois da Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia. As publicações sobre a fauna bravia de Moçambique e de Angola fazem do Dr. Rosinha uma figura largamente respeitada nos países de expressão portuguesa.”

“Na verdade, o sucesso que Moçambique hoje timidamente palmilha na conservação da fauna bravia, deve-se a pessoas comprometidas com a conservação e que têm no Dr. Rosinha uma grande referência, como Chefe dos Serviços, como Professor e como Conselheiro. Trata-se de uma imensa perda para Moçambique, e para a conservação global, numa era em que atravessamos uma grande crise de conservação e de gestão do meio ambiente”



8 - NOTA FINAL


Constando do meu arquivo muitas centenas de fotografias que assinalaram momentos grados do nosso convívio, nomeadamente durante as visitas que nos fez ao longo de mais de 15 anos na nossa casa de Amor, em breve apresentarei em álbum uma selecção das mesmas que oportunamente divulgarei.


Amor (Leiria), 30 de Novembro de 2006

Celestino Gonçalves