26 February 2009

51 - CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO



CARTAS DA BEIRA DO INDICO


(12)

FÉRIAS EM MOÇAMBIQUE


(2008/20009)




COMPLEXO TURÍSTICO DE TECHOBANINE -
UM SONHO EM VIAS DE REALIDADE



As praias moçambicanas, devido à sua extraordinária beleza e às maravilhosas águas do Índico, têm sido alvo da cobiça de empresários turísticos estrangeiros (maioria sul-africanos), que tomaram de assalto praticamente toda a costa de quase três mil quilómetros de extensão, assim como as inúmeras ilhas da plataforma continental do território!

À parte alguns complexos de bom e até de alto nível, a maioria, contudo, não passa de modestos acampamentos, cujos investimentos não condizem com a importância dos locais onde estão inseridos, portanto de reduzido peso para a economia do país já que a afluência ali de turistas é muito limitada.

Na região a sul da cidade de Maputo, onde existem das mais belas praias deste país, as concessões sucedem-se umas às outras, desde a Ponta Abril até à Ponta do Ouro. No entanto, só esta última, que é considerada das melhores, tem uma grande frequência de visitantes, nomeadamente sul africanos que ali afluem através da fronteira vizinha porque beneficiam das vias de comunicação do seu território que em nada se comparam com a cada vez mais degradada estrada que liga a capital àquela belíssima estância turística.

Na verdade, o que mais entrava o desenvolvimento desta região, incluindo a própria Reserva de Elefantes de Maputo, é justamente a falta de vias de comunicação condignas, já que as existentes não passam de picadas em muito mau estado onde as próprias viaturas 4x4 transitam com dificuldade.

Entretanto, o projecto de construção da estrada Maputo - Ponta do Ouro – Fronteira, tão badalado há vários anos, continua por realizar, embora seja considerado uma prioridade para o desenvolvimento da região sul do país e a cada passo anunciado para breve.

Mesmo assim, os empresários não desistem e constroem cada vez mais complexos turísticos na região, como é o caso da praia de Techobanine, um pouco a norte da ponta Mamoli, onde um velho amigo meu está envolvido na construção de um belo acampamento que em breve se poderá classificar entre os melhores Lodges de toda a costa.

Manuel Rodrigues, conhecida figura da capital moçambicana, onde nasceu em 1945 e que os seus colegas de escola alcunharam com o epíteto de “Cento e Picos” (uma frase que dizia com alguma frequência para referir a velocidade que atingia com a sua moto), é o concessionário deste maravilhoso recanto que a natureza ainda conserva intacto.

Ele foi um dos príncipes da selva – caçador guia – durante o período colonial, tendo actuado nas duas principais empresas de safaris, - a Safrique e a Moçambique Safarilândia -, onde se notabilizou não só como condutor de safaris de caça, mas também como grande defensor da fauna bravia, devido às suas acções no combate à caça furtiva, desenvolvidas voluntariamente e muitas vezes nos períodos de defeso quando a generalidade dos caçadores guias seus colegas gozava as suas férias na cidade.


Após a independência de Moçambique, em 1975, e devido ao encerramento das actividades cinegéticas no país, este carismático caçador dedicou-se, entre outras coisas, à produção de cravos, em terrenos que possuía na Matola. Tinha, simultaneamente, uma banca no mercado Vasco da Gama (actual bazar central), onde, para além de flores, vendia artesanato de madeiras preciosas e marfim que ele próprio e outros artesãos que trabalhavam sob sua orientação produziam. Contudo, a sua ambição levou-o a outras paragens e antes do fim da década de setenta fixou-se na África do Sul – Durban –, onde em poucos anos se tornou um empresário de sucesso em vários ramos de comércio. (1)

Regressado às suas origens há dois anos, resolveu concretizar aqui um velho sonho, justamente a construção de um complexo turístico numa praia deserta onde a natureza ainda não tivesse sido afectada.

E foi ali, na Ponta Techobanine, que este sonhador (que faz lembrar os velhos e barbudos sertanejos que por essa África afora protagonizaram as mais arrojadas aventuras) encontrou o que há de melhor para o seu projecto: praia excelente e ambiente natural intacto.

Mãos à obra, ali se instalou, primeiro numa tenda com a sua inseparável companheira, a simpática Mina (a grande mulher que está sempre por detrás de um grande homem), já habituada às suas anteriores aventuras na senda de sucessos financeiros, mas agora numa experiência nova que abraçou com o mesmo entusiasmo com que sempre o ajudou a fazer fortuna nas actividades comerciais na África do Sul.

Na véspera do feriado nacional 3 de Fevereiro, um telefonema da minha querida amiga Paula Pereira (Nocas), esposa de outro grande amigo, o bem conhecido caçador submarino e pescador, José Rosado (Zé Pescador), convidava-me para ir a Techobanine onde iria no dia seguinte para recolher o marido, que ali se encontrava em trabalhos da sua actividade de investigador das espécies de moluscos.

Naturalmente que não perdi essa excelente oportunidade de ir visitar o velho amigo e de conhecer a sua obra, cujo projecto ele me mostrara com grande entusiasmo durante as minhas férias de 2004/2005.

Quatro horas da manhã e estávamos de partida para uma viagem que, não sendo longa para os parâmetros africanos (cerca de 200 Km via Matola, Boane, Porto Henrique, Matutuine, Reserva do Maputo e Zitundo), foi demorada e desgastante face ao mau piso da estrada, nomeadamente nos últimos 50Km do percurso.


Pelas 9,30 da manhã lá chegamos e não sendo surpresa para mim a beleza da região e até do local, pois que durante a minha actividade profissional percorri todos estes recantos, sobretudo quando fiscalizava a área da Reserva do Maputo, não deixei de ficar admirado pelo estado de conservação da floresta, sabendo que até bem perto dali a acção dos negociantes de lenha e carvão foi bem cruel na destruição implacável de tudo o que era material lenhoso!

Sei bem que este milagre de conservação se deve à vigilância dos guardas da Reserva, que ali ao lado é administrada com grande rigor e com resultados surpreendentes na recuperação da sua fauna, nomeadamente dos elefantes.

Abismado fiquei foi com a qualidade e grandeza das construções do complexo, onde a madeira e o cimento se fundem e bem se enquadram no ambiente da maravilhosa floresta que cobre praticamente toda a faixa costeira desta região!



Nenhuma empresa construtora ou simples mestre de obras ali foram envolvidos. Tudo foi e continua a ser feito sob a batuta deste arquitecto ad-hoc, também ele autor do projecto das confortáveis casas, piscina e do grandioso pavilhão multi-usos que à distância faz lembrar um navio em construção envolvido numa complicada teia de andaimes de madeira tratada!

Ele e esposa, com mais cerca de quarenta moçambicanos, trabalham ali afincadamente há cerca de dois anos a esta parte e espera que dentro de seis meses o complexo fique concluído.

Para quem conhece o Manuel Rodrigues, o seu dinamismo, a sua formação na área industrial e pintura, o gosto pela escultura e artes decorativas, o seu apurado sentido conservacionista e as suas tendências para tudo o que é diferente (alguns lhe chamam de louco), até compreende que se tenha envolvido em semelhante projecto, que diz ser diferente de tudo o que se tem feito no país!

De facto, não conheço obra semelhante, que no dizer do Manel não vai ficar por ali, pois a seguir vai erguer novo complexo na concessão contígua de mais de vinte hectares que o governo provincial lhe concedeu recentemente, do qual faz parte um conjunto de vinte bungalows, campo de golfe, piscina, etc., projecto este que já se encontra em fase de aprovação. Quando concluído, será explorado em regime de TimeSharing, uma modalidade muito em voga na vizinha África do Sul e que em Moçambique parece ter despertado já a atenção dos empresários da área do turismo.

O dia passado em Techobanine não deu para ver tudo. Mas o Manel não desperdiçou tempo e levou-me a ver as obras em curso e os locais onde pretende implantar o próximo complexo. Foi incansável na descrição de tudo o que já fez e o que pretende realizar, satisfazendo assim a minha curiosidade, inclusivamente quanto ao objectivo das construções (casas) enormes, tipo mansão, que não são muito comuns em Moçambique, mas que actualmente são muito procuradas pelos promotores turísticos para albergar famílias grandes ou grupos de amigos que gostam de passar férias juntos, com grande comodidade e segurança.

Deu ainda para refrescar nas águas do Índico, antes do belo almoço que a Mina entretanto confeccionou e nos serviu na varanda de uma das oito casas do complexo, que serve já de habitação do casal e dos amigos que o visitam!

Fiquei extasiado por tudo o que observei e senti-me feliz por ver a alegria deste homem, que aos 65 anos conserva ainda toda a genica que o conduziu a muitos outros sucessos empresariais e continua a sonhar com mais e mais empreendimentos!

A viagem de regresso, ao fim da tarde, agora na companhia do Zé Pescador (a Nocas viajou noutra viatura na companhia de um amigo francês residente em Maputo – o Pierre -, que ali esteve acampado com dois filhos pequenos), foi ainda mais atribulada, pois que a meio caminho fomos apanhados pelo temporal que viria a atingir a capital e a deixar sem abrigo muitas centenas de famílias, tal a violência dos ventos e a quantidade de chuvas caídas sucessivamente durante a noite e dia seguinte, um autêntico dilúvio que há vários anos não acontecia aqui na região sul do país!

Como muito boa gente desta cidade, também andei de rabo para o ar a tirar água da casa que entrou através das varandas da sala e da cozinha que ficam viradas para a Catembe, de onde vinha a chuva tocada pela forte ventania!


Nesse dia – feriado nacional do 3 de Fevereiro em memória de Eduardo Mondlane -, o termómetro atingiu 43 graus à sombra na cidade de Maputo!

Isto é África, meus amigos!





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(1) – Com a devida vénia, reproduzo aqui a reportagem com o título “KALAHARI - GEMS & CURIOS”, feita em 1982 em Durban e publicada no livro “Portugal no Mundo”, de Carlos Bártolo (edição de 1985), onde foram realçados os sucessos empresariais do Manuel Rodrigues na África do Sul.

A propósito desta mesma reportagem, o Manel segredou-nos: Nessa altura já estava muito bem financeiramente, mas nos anos seguintes ganhei muito dinheiro!








REPORTAGEM FOTOGRÁFICA








Praia e Ponta Techobanine




Outro aspecto da praia, lado norte





As dunas bem revestidas de vegetação





Comendo uma bucha na praia!





Dando um volta pela concessão


Descendo a caminho da praia



O Rodrigues mostrando pegadas recentes de elefantes
que atravessaram a sua concessão



Uma águia guia marcial perto do acampamento


Uma pose na floresta



O acampamento já tem coqueiros vindos do norte


Uma das casas em construção em Techomanine


Uma pose com os anfitriões nas escadas de uma das casas já construídas



Outra residência em construção


Residência em fase de acabamentos





Saudações amigas, aqui da beira do Índico!

Maputo, Fevereiro de 2009

Celestino Gonçalves

27 January 2009

50 - CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO



CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO

(11)

FÉRIAS EM MOÇAMBIQUE

(2008/2009)


ENCONTROS COM VELHOS AMIGOS



Hoje vivi um dia excepcional aqui em Maputo, visitando e convivendo com alguns velhos amigos!
Apesar do calor que já se fazia sentir saí de casa pelas dez horas já com o termómetro nos 35 graus!

Rumei para a baixa da cidade, pelo percurso habitual da avenida Lenine (antiga Elias Garcia), que da Coop à Capitania (cerca de 4 Km) levou mais de meia hora a percorrer por causa do trânsito sempre complicado nesta movimentada artéria.


O dia fora destinado a visitar e conviver com alguns amigos, dois dos quais ainda não tinha visto desde que cheguei. Comecei pelo prédio 33 andares, situado como se sabe em frente à Imprensa Nacional, onde contava encontrar um deles - o Medina -, mas bati com o nariz na porta já que o mesmo se mudara dali nos últimos dias para novo escritório na avenida Karl Marx (antiga Manuel de Arriaga). O telemóvel desde logo ajudou a resolver o problema e em poucos minutos este velho amigo (antigo professor em Inhambane e agora contabilista), veio ao meu encontro.

O lugar escolhido - o café no corredor central do prédio – não foi dos melhores porque sendo o Medina ali muito conhecido fomos interrompidos a cada passo pelas muitas pessoas que o quiseram saudar. Uma delas abancou mesmo à nossa mesa para participar na cavaqueira e assim a privacidade do nosso encontro acabou por ali.
Como se tratava de uma figura pública que todo o mundo aqui conhece, - o poeta Eduardo Wite – o encontro acabou em jeito de tertúlia com a paragem e intervenção de quem passava para saudar os meus companheiros!

Acabou por ser uma manhã muito divertida!

Como o programa do dia incluía um almoço fora de portas com outros dois velhos amigos – o Remane, outro manhambana de gema e actual director bancário e o José Parente, “rapaz” do meu tempo que foi funcionário da Geologia e Minas, radicado em Portugal e agora de visita a Moçambique e África do Sul onde tem familiares e muitos amigos -, fui ao encontro destes pelo meio dia e abalamos para a Matola.

Escolhido o restaurante, um complexo novo na avenida Abel Batista , com piscinas, esplanadas sob frondosas árvores e muita música, deparamos com um desusado movimento de grupos de clientes e desistimos de ali almoçar.

O rumo seguinte foi a carreira de tiro, no prolongamento da mesma avenida, onde o restaurante “O Manel” se encontrava encerrado!

As horas avançavam e a decisão foi regressarmos à capital. Pelo caminho decidimos ir ao restaurante do Clube Marítimo, entre a cidade e a Costa do Sol. Também ali não fomos bem sucedidos porque era dia de folga do pessoal!

A solução foi encontrada no velho e famoso restaurante da Costa do Sol, sempre abarrotado de pessoas na sua varanda fronteira à praia onde sempre corre uma brisa fresquinha!

Havia uma mesa vaga!

Finalmente, pelas quinze horas, estávamos a saborear um belo almoço (caril de camarão e peixe serra grelhado) e a beber a saborosa 2M bem gelada!

A cavaqueira prolongou-se até às cinco da tarde e para finalizar o programa fomos visitar - eu e o tio Parente – o nosso querido amigo Ricardo Rangel, que felizmente está de novo a atravessar um bom período na recuperação da operação a que recentemente foi sujeito!

O velho leopardo, que vem travando nos últimos anos uma luta sem tréguas contra a doença que o privou já de uma perna, fica sempre muito feliz quando tem amigos à sua volta e desta vez


surpreendeu-nos com a sua boa disposição, contando-nos inclusivamente aquela anedota inspirada no uso dos primeiros telemóveis, em que um infiel marido quando estava com a sua amante recebeu uma chamada da esposa a perguntar-lhe: onde é que estás? E ele responde inadvertidamente: como é que sabes que estou aqui?...


Um dia que terminou em beleza na companhia destes bons e velhos amigos – Ricardo Rangel e a sua querida Beatriz -, e também dos seus simpáticos




netos Ricardo e Khiusha, naquele décimo primeiro andar do prédio da avenida Július Nhyerere (antiga António Enes) de onde se vislumbra o fabuloso cenário da baía com as ilhas da Xefina, dos Portugueses e da Inhaca bem destacadas no horizonte!




FOTOS DOS ENCONTROS



Eduardo Wite, Medina e Celestino, no café do 33 andares



Tio Parente, Remane e Celestino, no restaurante da Costa do Sol



Ricardo Rangel e Celestino




Com o casal Rangel, seu neto Ricardo e Tio Parente




Com o casal Rangel, sua neta Khiusha e Tio Parente


Saudações amigas, aqui da beira do Índico!


Maputo, 27 de Janeiro de 2009

Celestino Gonçalves

22 January 2009

49 - CARTA Nº 16 DE 2005



CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO


(16)



ENCONTRO COM O MESTRE MALANGATANA


(Março de 2005)



O Mestre como era há uns bons anos atrás!

Moçambique teve sempre personalidades de renome mundial, nomeadamente no desporto onde se destacaram nomes como Eusébio e Coluna e mais recentemente Lurdes Mutola campeã mundial e olímpica de atletismo.

Após a independência, em 1975, destacaram-se no mundo das artes e das letras duas outras personagens que são hoje a coqueluche deste jovem país: Malangatana e Mia Couto. Eles são as figuras de topo de uma vasta plêiade de pessoas ligadas à cultura de Moçambique, justamente porque as suas obras se tornaram muito conhecidas e atingiram grande fama praticamente em todo o mundo.

Como pessoas célebres que são, ganharam o estatuto de figuras públicas muito estimadas por toda a gente. Ambos foram dotados, para além das suas capacidades artísticas e intelectuais, do dom da simplicidade que o povo tanto aprecia. Numa palavra, eles são o orgulho dos moçambicanos!

Curiosamente, eles têm excelente relacionamento entre si e, para minha felicidade, ambos fazem parte do número dos meus bons amigos moçambicanos, conforme tive já a oportunidade de aflorar no meu site pessoal e em trabalhos anteriores inseridos em várias comunidades com sites na Internet. Eles se cruzaram na minha vida em situações diferentes, mas tão marcantes que me dão o direito de lhes reclamar alguns momentos de cavaqueira nem que para isso tenha de invadir os portões de acesso às suas casas!

Só que, em relação a Malangatana, as coisas não têm sido fáceis pois que não o encontrava a jeito há mais de quinze anos. Os seus afazeres e constantes viagens pelo estrangeiro não me proporcionaram uma única aproximação durante todo este longo tempo, apesar de várias tentativas que sempre fiz durante as minhas regulares estadias em Moçambique!

Sendo originário do povo humilde, Malangatana prima por ser um homem simples e modesto. Contudo, não é muito fácil encontrá-lo disponível uma vez que a sua ocupação profissional lhe absorve todo o tempo, quer no atelier a pintar e gravar, quer a viajar por esse mundo fora envolvido nas suas exposições pessoais ou a participar em congressos e colóquios do seu ramo. É ainda membro da Assembleia Municipal de Maputo, um cargo político que lhe trouxe imensas responsabilidades nomeadamente na recepção de delegações estrangeiras ou individualidades que se deslocam a Moçambique e cujo estatuto implica atenções especiais da parte do Governo. Ele é um digno anfitrião e um autêntico ex-libris da cidade capital e do próprio país!



O DESEJADO ENCONTRO


Finalmente, o tão desejado encontro aconteceu no passado dia 21 na sua casa atelier do bairro do Aeroporto, em Maputo, tendo para tal recorrido à intervenção do Mia que contactou o Mestre acabado de regressar de mais uma viagem a Portugal.

Como minha filha Paula também tem certo à-vontade junto deste ilustre personagem, foi ela quem completou os acertos finais para o encontro e fez questão de me acompanhar munida da “Olympus” para registar e colher imagens do consagrado artista e do seu magnífico museu.

Antes de tomarmos o caminho para aquele bairro tive ainda a oportunidade de reler as partes mais significativas dos textos do seu Livro-Álbum “Malangatana”, editado em 1998 e que felizmente me fora oferecido no último Natal pelo mano mais velho do meu genro Armando Couto. Isto para reavivar a memória em relação ao fabuloso palmarés deste ilustre moçambicano e ficar mais preparado para o visitar no seu habitat.


O Livro "Malangatana"


A rica biografia deste homem e as considerações sobre a pessoa e sua obra, feitas por consagrados críticos das artes e das letras, quer nacionais quer estrangeiros, expressas naquela excelente obra, deixaram-me francamente confuso sobre o sucesso do encontro que estava prestes a ter com o famoso pintor, sendo que ele agora é um ídolo de reputação nacional e internacional. Interrogava-me se ele me iria reconhecer e se não me dispensava mais que algumas palavras de circunstância para além dos cumprimentos da praxe!

Lá fui a meditar nas minhas dúvidas, confiante apenas nas faculdades persuasivas para dar a volta a eventuais dificuldades e evitar que o desejado encontro com o velho amigo acabasse numa frustrante jornada sentimental!

Ando na tua trás há mais de quinze anos!

Foram estas as primeiras palavras que dirigi ao velho amigo que nos aguardava no atelier de trabalho do rés do chão da sua grande residência, usando assim uma expressão popular muito em voga em Moçambique.

A sua reacção não se fez esperar com um “Bayete Gonçalves” e uma palmada na mão à boa maneira do cumprimento entre os jovens actuais, seguida de um prolongado abraço.


Bayete Gonçalves!


Afinal fui reconhecido e o à-vontade do nosso anfitrião foi tão manifesto que a breves momentos a descontracção era recíproca.

Que alívio!

O que se seguiu durante toda a tarde daquele dia memorável, foi para mim e para a Paula um autêntico deslumbramento! Um desfiar de recordações de um passado já com mais de meio século, desde que nos conhecemos em Marracuene, sede administrativa da sua terra Natal onde iniciei a minha carreira em Moçambique no longínquo ano de 1952. Ele tinha nessa altura 16 anos e eu 20!

Durante os anos que precederam a sua ida para Lourenço Marques, em 1956, Malangatana fez-se notar na vila pela sua participação em várias actividades culturais (música, danças tradicionais, artesanato) e desportivas. Naturalmente que os nossos encontros se sucederam nomeadamente no futebol que ambos praticamos e também na Administração onde ia com frequência tratar de assuntos pessoais ou visitar um seu parente próximo que ali trabalhava comigo. Depois de reavivarmos a memória citando factos e pessoas desses velhos tempos, nomeadamente dos administradores mais marcantes dessa época (Marques da Cunha e Granjo Pires), do padre Lourenço (que nos casou), dos Panguenes, dos Andrades, dos Lopes de Castro, dos Verdes, dos Bourlótos, dos Figueiredos (meus sogros), do velho Nunes (do Pavilhão de Chá), dos Faria Lopes e Lopes Marques (chefes de estação dos Caminhos de Ferro), dos Parentes, do Mendes (das excursões fluvias) e de outras figuras daquela bonita vila à beira do Incomáti, alargamos as nossas recordações ao período do pós independência quando ele era responsável do Departamento de Cultura do Ministério do Trabalho e eu adjunto da direcção dos Serviços de Fauna Bravia do Ministério da Agricultura, altura em que os nossos contactos foram mais frequentes pois estes Serviços forneciam o marfim de elefante para o sector de artesanato do mesmo Departamento.


Com a Paula numa das salas onde estão belos quadros e esculturas


A partir de 1990, data do meu afastamento de Moçambique para me fixar em Portugal, limitei-me a acompanhar, de longe, as notícias sobre a carreira fabulosa deste homem, que se tornou um dos pintores mundiais de vanguarda na actualidade, assim como escultor de grande mérito. A sua fama o tornou uma figura de grande prestígio, acumulando prémios e condecorações, incluindo a de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal. A sua vastíssima obra (Pintura, Desenho, Aguarela, Gravura, Cerâmica, Tapeçaria e Escultura), encontra-se em vários museus e galerias públicas, bem como em colecções privadas, espalhadas por inúmeras partes do Mundo. Tem ainda pintados ou gravados imensos murais não só em Moçambique como noutros países africanos, da Europa e do continente americano. O seu espólio pessoal, de valor incalculável, enche literalmente toda a sua grande casa-atelier de Maputo, aguardando o seu próximo destino que será o Museu da “Fundação Malangatana”.


Aspecto parcial do atelier


Toda a actividade artística e social deste grande senhor não o afastou, contudo, dos contactos com o povo humilde e sobretudo das crianças. Na sua terra natal ele impulsionou um importante projecto cultural – Associação do Centro Cultural de Matalana – de cuja direcção é presidente. No seu bairro criou uma escolinha para as crianças aprenderem a pintar. Tem sido membro de Júris de vários eventos nacionais e internacionais das Artes Plásticas, mantendo a ligação à UNICEF relativamente ao Júri para os Cartões de Boas-Festas.

A sua próxima obra, que será a maior, é a sua própria “Fundação Malangatana”, que será erguida também na sua terra natal e para a qual já conta com o respectivo projecto do seu grande amigo, o arquitecto e pintor português Miranda Guedes (Pancho), um dos grandes impulsionadores da carreira deste artista na sua fase inicial quando era ainda um modesto empregado de bar e da cozinha do velho Grémio (o Clube de Lourenço Marques), de parceria com o Dr. Augusto Cabral, actual director do Museu de História Natural.


Crianças angustiadas

As ligações de Malangatana a Portugal são muito estreitas, quer no âmbito institucional quer no relacionamento com as pessoas que o acarinharam nos tempos do seu lançamento na vida artística. Aqui tem feito muitas exposições individuais e elaborou, no Pavilhão de Moçambique da Expo-98 de que foi Vice-Comissário Nacional para a área da Cultura, uma escultura móvel, bem como um bonito painel-mural.

O seu Livro/Álbum “Malangatana” é uma encantadora obra por onde perpassa toda a magia e esplendor de uma vasta colecção das suas pinturas, desenhos e esculturas. Foi numa das páginas brancas deste Livro que o Mestre pintou uma bonita aguarela assinalando a visita que lhe fiz e que simboliza a nossa velha amizade. A todo o tamanho da página do lado esquerdo escreveu uma mensagem que muito nos sensibilizou e que é uma evocação especial dos velhos tempos de Marracuene (ex-Vila Luisa), com especial destaque para as suas belezas naturais, para os hipopótamos e crocodilos do grande rio Incomáti e para as actividades turísticas da vila. Escreveu ainda, numa outra página, uma dedicatória para as comunidades de Maputo, Inhambane, Beira e outras, que aqui deixo reproduzida, como se impõe.


Na fase inicial da pintura


A Paula observando o Mestre quando executava a pintura e dedicatória no Livro


Dedicatória e quadro concluídos


A Mensagem para as Comunidades


Agradecendo ao Mestre


Antes de deixar a casa-atelier de Malangatana, percorremos todas as salas onde se encontram expostos muitos dos seus quadros e esculturas, obras estas que executou ao longo da sua carreira e que foi seleccionando para fazerem parte do seu espólio inegociável.


Subindo para o 1º andar da maravilhosa casa-atelier


A visita acabaria pelas cinco da tarde porque Malangatana tinha tarefas na Assembleia Municipal, até onde o acompanhámos a seu pedido. Antes de nos despedirmos dirigiu-se à Paula e repetiu o que já nos havia dito no seu atelier: não te esqueças que quero fazer uma festa convosco e restante família em Marracuene, na próxima vinda de teu pai a Moçambique!


A despedida junto do Município


Nas horas que se seguiram a este encontro meditei profundamente sobre aquela figura imponente e bonacheirona, na sua simplicidade e delicadeza de trato, na sua sabedoria, na sua obra que os críticos tanto elogiam, na aura que o envolve e como conserva tanto vigor e alegria de viver apesar de rondar os 70 anos e ultimamente ter sido sujeito a delicadas intervenções cirúrgicas!

Quando deixei este ilustre personagem à porta do Município de Maputo, naquela tarde inesquecível, sentia-me imensamente feliz e, tal como Mia Couto escreveu em 1986 a propósito de mais uma exposição do Mestre - “Sai-se de uma exposição de Malangatana com a sensação de que já não somos os mesmos que éramos quando entrámos”- , também fiquei com a sensação de que já não era o mesmo!

A bordo do avião da TAP, 24 de Março de 2005

Celestino Gonçalves



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NOTA FINAL

Esta “Carta” foi alinhavada a bordo do avião da TAP durante a viagem de regresso a Portugal, três dias depois do encontro com Malangatana. Só hoje, porém, é publicada devido a dificuldades que surgiram com o restabelecimento da minha conta Internet, entretanto interrompida durante as férias em Moçambique.

Ela é a última da série de 16 modestas crónicas que ao longo dos mais de cinco meses de permanência em Moçambique tive o prazer de escrever para as Comunidades onde muito me orgulho de participar.

Prometo voltar com outras notícias e imagens que trouxe na minha bagagem!

Um abraço do tamanho de Moçambique para todos os que tiveram a paciência de ver e ler estes escritos!


Amor - Leiria, 10 de Abril de 2005

Celestino


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NOTA ACTUAL


A repetição agora da publicação desta Carta nos meus Blogs (Blogger e Multiply) tem por objectivo facilitar a sua reprodução aos amigos que manifestaram o desejo de preservar os meus trabalhos de 2004/2005 nos seus arquivos pessoais ou mesmo nos novos blogs do Multiply de cuja administração fazem parte.

Maputo, Janeiro de 2009

Celestino Gonçalves