O PAI COSSA
ARMANDO MUNDAU COSSA
O primeiro fiscal de caça negro de Moçambique
O primeiro fiscal de caça negro de Moçambique
O Armando Cossa no quintal da residência da Matola,
em Janeiro de 2000.
1 – ANTECEDENTES
O governo português exerceu nas suas colónias de África uma política de segregação em relação aos negros, que não sendo igual ao desumano apartheid dos vizinhos sul africanos não deixava de ser condenável.
Quando cheguei a Moçambique, em 1952, era confrangedora a situação dos negros, que habituados a essa política de quase cinco séculos de colonização, viviam numa letargia profunda, sem reacções que demonstrassem o seu verdadeiro estado de espírito. Contudo, noutros pontos de África, já se fazia sentir, nessa altura, a revolta dos povos igualmente sujeitos à colonização por parte de outros países ocidentais e não se esperou muito pelas primeiras independências dos respectivos territórios.
Desconhecendo antes a situação que se vivia nas colónias portuguesas, logo me apercebi que entre os brancos e os negros havia diferenças abismais. Aliás, eram bem visíveis essas diferenças pois bastava observar quem frequentava as escolas, os liceus e os cinemas, que eram os espelhos dessa segregação, tal como a diferença de habitação, que no caso dos negros se limitava aos bairros pobres dos subúrbios da cidade.
Apenas um ou outro negro podia ser visto no meio das muitas centenas de brancos que frequentavam os estabelecimentos de ensino e os vários cinemas da capital, e esses mesmos eram filhos de “assimilados”, que era um estatuto especial que o governo concedia somente a alguns cidadãos que tivessem evoluído para os padrões da cultura ocidental e demonstrassem ter atingido um nível social e económico compatíveis com o dos brancos.
Os negros que atingiam esse estatuto provinham quase todos da periferia das cidades ou mesmo do interior, onde as missões católicas e outras ministravam o ensino primário e davam preparação profissional em várias artes e ofícios, essencialmente aos indígenas.
Dali saíram muitos pedreiros, carpinteiros, sapateiros, serralheiros, mecânicos, e outros profissionais que eram absorvidos nas actividades económicas das cidades e também a maioria dos trabalhadores dos serviços públicos com funções de auxiliares (enfermeiros, serventes, contínuos, intérpretes, amanuenses, etc,). Aliás, eram estas as únicas funções a que os negros tiveram acesso nos organismos do Estado até meados da década de 60.
Foi também das escolas dessas missões que saiu a maioria dos moçambicanos que no início da década de 60 criaram o movimento de libertação que conduziria, mais tarde, em 1975, à independência do território.
Entretanto, a situação política em África evoluiu vertiginosamente no sentido das independências dos territórios colonizados. Com o virar da história já nos horizontes, o governo português, numa tentativa de prolongar o seu domínio, alterou ou aboliu mesmo algumas das mais aberrantes leis que nas suas colónias condicionavam a vida dos negros, nomeadamente aquela que dizia respeito à sua cidadania.
Em Moçambique, onde já eram evidentes os efeitos do movimento de libertação (Frente de Libertação de Moçambique - FRELIMO) quando essas mudanças políticas surgiram, foram muitos os negros que reclamaram e reivindicaram direitos que lhes foram negados durante muitos anos, nomeadamente nomeações e promoções para cargos públicos com vínculo superior ao dos quadros de auxiliares.
Muitos desses negros, já com preparação académica acima da instrução primária, acorreram a todos os concursos onde as suas habilitações davam acesso e, rapidamente, a função pública ficou lotada a todos os níveis. Só que havia alguns cargos para os quais o governo dificultou, nos primeiros tempos, a entrada de negros, que eram todos aqueles com funções de autoridade, nomeadamente funcionários do quadro administrativo, da polícia de segurança pública, da guarda fiscal e de outros serviços cujos agentes asseguravam o cumprimento das leis e da ordem.
Um dos serviços do Estado que mais tempo retardou a entrada de negros, foi a Fauna Bravia, cujos quadros de fiscalização eram dotados por fiscais de caça e guardas de parques, reservas e coutadas. Estes agentes eram ajuramentados, precisamente para poderem fazer cumprir as leis da caça, proceder ao levantamento de autos e, por vezes até, a detenção de transgressores.
2 - O PAI COSSA
O primeiro negro a vencer a barreira da segregação racial nos quadros de fiscalização da fauna foi Armando Mundau Cossa, no ano de 1967.
Nascido em 1935, na povoação de Taninga, Palmeira, distrito da Manhiça (sul de Moçambique), o Armando Cossa estudara nas missões católicas da região e depois de ter passado por vários empregos na agricultura fora para a capital onde trabalhou no comércio dos indianos. Ali se manteve até às mudanças políticas da década de 60, tendo entretanto aumentado os seus estudos na escola comercial.
A primeira oportunidade que lhe surgiu para entrar num cargo público foi na Polícia de Segurança Pública, em fins de 1964, quando tinha 29 anos. Ele e mais dois outros seus conterrâneos foram os primeiros negros a tornar-se agentes desta corporação, onde, apesar de terem enfrentado algumas dificuldades na entrada, conseguiram a nomeação. Todavia, não se fizeram esperar as reacções dos colegas brancos, de alguns chefes e, até, da população que não viu com bons olhos os primeiros polícias negros. Os problemas disciplinares acabaram por surgir face às suas reacções perante as humilhações e perseguições de que eram vítimas e isso levou o Armando Cossa a pedir a demissão pouco mais de um ano após a entrada.
O fracasso da primeira experiência não o desencorajou em concorrer a outro cargo de agente de autoridade, que foi o de fiscal de caça. Só que aqui encontrou sérias dificuldades porque na Fauna Bravia ainda prevaleciam os preconceitos antigos na selecção dos agentes para os seus quadros.
Começaram por admiti-lo nas funções de ajudante de pecuária, onde ficou um ano e três meses. Finalmente, após mais de um ano de persistente luta para demover os responsáveis que entretanto se foram rendendo à evolução dos tempos, através de requerimentos e exposições que entregava mensalmente na direcção dos serviços que tutelavam a Repartição da Fauna Bravia (1), acabaria por atingir o seu objectivo. Em Abril de 1967 foi nomeado fiscal de caça.
Depois de ter feito um estágio de oito meses no Posto de Fiscalização da Matola, sob a égide do fiscal de caça António Madureira, foi colocado no distrito de Tete onde trabalhou nos anos de 1968 e 1969. Posteriormente teve colocações em Marromeu, distrito de Manica e Sofala (1970/1974), em Pemba, província de Cabo Delgado (1975/1994) e na Matola, província de Maputo (1995/2002).
Uma carreira de 35 anos de serviço, que só terminou com o seu falecimento em Novembro de 2002.
Uma carreira de 35 anos de serviço, que só terminou com o seu falecimento em Novembro de 2002.
O autor (esqª), com o Pai Cossa e o nosso colega Ernesto Chale (dirtª)
Em Janeiro de 2000 visitei o Armando Cossa no posto da Matola, onde se encontrava, mas incapacitado de trabalhar devido a doença grave, incluindo cegueira total. Enquanto não o reformavam, conforme já requerera, deixavam-no permanecer ali graças à solidariedade de duas senhoras: a directora dos recursos humanos do Ministério da Agricultura, engenheira Rukai e a chefe do departamento de florestas e fauna bravia da direcção provincial de agricultura de Maputo, Esmeraldina Salomão Cuco.
Não via o Armando Cossa há vários anos e este encontro (que seria o último), chocou-me bastante por o ver num tão precário estado de saúde. Ele reconheceu-me pela voz e mesmo debilitado como estava não se cansou de conversar, evocando o passado e os episódios que mais profundamente o marcaram como eram todos aqueles que feriram a sua dignidade de cidadão. Curiosamente, muitos desses casos passaram-se já depois da independência de Moçambique.
Em tom emocionado e por vezes exaltado, com frequentes repetições das sílabas devido à sua acentuada gaguez, narrou-me algumas das mais amargas e humilhantes situações por que passou. Duas delas são suficientemente esclarecedoras dos sentimentos de revolta de que nunca conseguiu libertar-se.
Quando chegou a Tete, em Janeiro de 1968, instalou-se numa pensão porque a casa que lhe era destinada estava ocupada. Quando colocou as malas no quarto verificou a existência ali de uma ventoinha de pé alto, só que à noite, quando voltou para dormir, já não encontrou a dita. Porque se estava no pino da época mais quente, que em Tete ultrapassa os 45 graus, reclamou, mas a senhora da pensão não o atendeu, alegando que a ventoínha estava avariada. Uma semana depois deixou a pensão e só na despedida é que a senhora ficou a saber que ele era o novo fiscal de caça de Tete, tendo desabafado: coitado, se eu soubesse não tinha passado tanto calor!
Não conseguia dormir com tanto calor, disse-nos o Cossa, também em tom de desabafo durante a nossa conversa!
No ano seguinte, quando estava de passagem por Vila Pery (actual Chimoio), foi preso por ter reclamado veementemente num restaurante onde lhe recusaram servir uma refeição. Indicaram-lhe uma placa que dizia: “reservado o direito de admissão”.
Ficou uma noite nos calabouços degradados da Administração, sem prévia identificação nem levantamento de auto. No dia seguinte libertaram-no porque souberam, através do colega do Chimoio, Fernando Dias, que acorreu em sua defesa junto do respectivo administrador, tratar-se do fiscal de caça de Tete que transitava em serviço por aquela cidade.
O Armando Cossa, após uma pausa, concluiu, à laia de consolação: “ O ga-ga-ga-jo-jo- li-li-li-xou-xou-xou-se!...”
O “gajo” era o Administrador que o mandara prender. Conforme explicou, acabaria por ser transferido de Vila Pery para um dos locais mais isolados de Moçambique, depois de um processo contra ele movido e que teve o apoio do médico veterinário seu chefe, em Tete, e pelo delegado do ministério público da mesma cidade.
Desinibido da sua condição de negro, o Armando Cossa conseguiu manter-se todos esses anos (bateu todos os recordes) como fiscal de caça, não propriamente por ser um apaixonado pela vida animal selvagem, acerca da qual os seus conhecimentos eram limitados quando entrou nos quadros da Fauna e pouco os desenvolveu ao longo da sua carreira (ele chegou a desistir de um concurso de promoção na carreira, por, segundo afirmou, não se sentir preparado), mas pela liberdade que estas funções lhe proporcionava. Dizia que não suportava a rigidez e disciplina dos horários de trabalho a que esteve sujeito em todos os empregos antes de se tornar fiscal de caça!
Não sendo um paradigma nesta actividade, ele tornou-se muito estimado por todos os colegas negros que a partir de 1968 entraram nos mesmos serviços, muitos deles excelentes profissionais que actualmente são o garante da conservação e preservação da vida animal selvagem. O respeito por este homem provem do facto de ter sido o primeiro negro que venceu a barreira da segregação nos serviços da fauna e teve a coragem de seguir uma carreira que na época era das mais difíceis, porque obrigava a enfrentar não só os animais selvagens, mas, sobretudo, pessoas ainda imbuídas do espírito colonial e que dificilmente aceitavam a igualdade de direitos e deveres dos cidadãos.
Ele era tratado muito carinhosamente de “pai Cossa” por todos os colegas, negros e brancos, mas foi esquecido pelos dirigentes que não valorizaram a sua condição de primeiro negro que vencera a barreira de entrada numa actividade do Estado até então reservada a brancos. Foi para a sua última morada no completo esquecimento, sem a presença de qualquer representante do respectivo ministério. Merecia o respeito devido aos heróis e até umas palavras finais de circunstância a que todos os heróis têm direito. Sim, porque este filho do povo foi um verdadeiro herói mesmo sem ter participado na luta armada de libertação nacional. Eu próprio assisti, em Maputo, a vários funerais de cidadãos que, tal como o Armando Cossa, não participaram na luta armada, mas na rectaguarda tiveram esse comportamento e foram homenageados na derradeira despedida. O pai Cossa não era um desconhecido dentro do seu ministério. Até ao mais alto nível ele deu nas vistas, quando durante os 19 anos que permaneceu em Cabo Delgado soube enfrentar situações de segregação que mereceram despachos finais a seu favor do próprio Ministro, na altura o Engº Agónomo João Ferreira.
O pai Cossa, afinal nem pai biológico chegou a ser, porque a sua condição de celibatário crónico o deixou ficar sem descendentes.
No encontro da Matola esteve também presente outro dos primeiros fiscais de caça negros de Moçambique, o Ernesto Domingos Chale, um excelente profissional que em 1977 optou pela carreira administrativa e actualmente é o administrador do Centro de Formação Agrária em Maputo, lugar que eu próprio ocupei de 1983 a 1990.
A razão por que recordo aqui o colega e amigo Armando Mundau Cossa, reside no meu profundo respeito e admiração pelos moçambicanos que sofreram na pele graves vicissitudes devido à sua condição de colonizados.
É uma homenagem simples, que procurarei fazer também em relação a outros, incluindo aqueles que, não tendo sido pioneiros de nada, foram os meus grandes mestres e excelentes companheiros ao longo da minha carreira, justamente para que não sejam esquecidos.
Fevereiro de 2004
Celestino Gonçalves
(Fiscal de caça chefe, reformado)
(Fiscal de caça chefe, reformado)
(1) A Repartição Técnica da Fauna era chefiada, na altura, pelo Dr. Alexandre de Sousa Dias, um médico veterinário algo polémico pelas suas posições, por vezes radicais, na gestão do sector. Ele protagonizou, anos antes, dois episódios que o autor descreve em "Crónicas & Narrativas", que ajudam a compreender a sua atitude para com o Armando Cossa (Ver Memórias - Capº III - FEIRAS DE GADO)
Junho de 2008
Celestino Gonçalves
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