CARTAS DA BEIRA DO ÍNDICO
(16)
ENCONTRO COM O MESTRE MALANGATANA
(Março de 2005)
O Mestre como era há uns bons anos atrás! Moçambique teve sempre personalidades de renome mundial, nomeadamente no desporto onde se destacaram nomes como Eusébio e Coluna e mais recentemente Lurdes Mutola campeã mundial e olímpica de atletismo.
Após a independência, em 1975, destacaram-se no mundo das artes e das letras duas outras personagens que são hoje a coqueluche deste jovem país: Malangatana e Mia Couto. Eles são as figuras de topo de uma vasta plêiade de pessoas ligadas à cultura de Moçambique, justamente porque as suas obras se tornaram muito conhecidas e atingiram grande fama praticamente em todo o mundo.
Como pessoas célebres que são, ganharam o estatuto de figuras públicas muito estimadas por toda a gente. Ambos foram dotados, para além das suas capacidades artísticas e intelectuais, do dom da simplicidade que o povo tanto aprecia. Numa palavra, eles são o orgulho dos moçambicanos!
Curiosamente, eles têm excelente relacionamento entre si e, para minha felicidade, ambos fazem parte do número dos meus bons amigos moçambicanos, conforme tive já a oportunidade de aflorar no meu site pessoal e em trabalhos anteriores inseridos em várias comunidades com sites na Internet. Eles se cruzaram na minha vida em situações diferentes, mas tão marcantes que me dão o direito de lhes reclamar alguns momentos de cavaqueira nem que para isso tenha de invadir os portões de acesso às suas casas!
Só que, em relação a Malangatana, as coisas não têm sido fáceis pois que não o encontrava a jeito há mais de quinze anos. Os seus afazeres e constantes viagens pelo estrangeiro não me proporcionaram uma única aproximação durante todo este longo tempo, apesar de várias tentativas que sempre fiz durante as minhas regulares estadias em Moçambique!
Sendo originário do povo humilde, Malangatana prima por ser um homem simples e modesto. Contudo, não é muito fácil encontrá-lo disponível uma vez que a sua ocupação profissional lhe absorve todo o tempo, quer no atelier a pintar e gravar, quer a viajar por esse mundo fora envolvido nas suas exposições pessoais ou a participar em congressos e colóquios do seu ramo. É ainda membro da Assembleia Municipal de Maputo, um cargo político que lhe trouxe imensas responsabilidades nomeadamente na recepção de delegações estrangeiras ou individualidades que se deslocam a Moçambique e cujo estatuto implica atenções especiais da parte do Governo. Ele é um digno anfitrião e um autêntico ex-libris da cidade capital e do próprio país!
O DESEJADO ENCONTRO
Finalmente, o tão desejado encontro aconteceu no passado dia 21 na sua casa atelier do bairro do Aeroporto, em Maputo, tendo para tal recorrido à intervenção do Mia que contactou o Mestre acabado de regressar de mais uma viagem a Portugal.
Como minha filha Paula também tem certo à-vontade junto deste ilustre personagem, foi ela quem completou os acertos finais para o encontro e fez questão de me acompanhar munida da “Olympus” para registar e colher imagens do consagrado artista e do seu magnífico museu.
Antes de tomarmos o caminho para aquele bairro tive ainda a oportunidade de reler as partes mais significativas dos textos do seu Livro-Álbum “Malangatana”, editado em 1998 e que felizmente me fora oferecido no último Natal pelo mano mais velho do meu genro Armando Couto. Isto para reavivar a memória em relação ao fabuloso palmarés deste ilustre moçambicano e ficar mais preparado para o visitar no seu habitat.
O Livro "Malangatana"
A rica biografia deste homem e as considerações sobre a pessoa e sua obra, feitas por consagrados críticos das artes e das letras, quer nacionais quer estrangeiros, expressas naquela excelente obra, deixaram-me francamente confuso sobre o sucesso do encontro que estava prestes a ter com o famoso pintor, sendo que ele agora é um ídolo de reputação nacional e internacional. Interrogava-me se ele me iria reconhecer e se não me dispensava mais que algumas palavras de circunstância para além dos cumprimentos da praxe!
Lá fui a meditar nas minhas dúvidas, confiante apenas nas faculdades persuasivas para dar a volta a eventuais dificuldades e evitar que o desejado encontro com o velho amigo acabasse numa frustrante jornada sentimental!
Ando na tua trás há mais de quinze anos!
Foram estas as primeiras palavras que dirigi ao velho amigo que nos aguardava no atelier de trabalho do rés do chão da sua grande residência, usando assim uma expressão popular muito em voga em Moçambique.
A sua reacção não se fez esperar com um “Bayete Gonçalves” e uma palmada na mão à boa maneira do cumprimento entre os jovens actuais, seguida de um prolongado abraço.
Bayete Gonçalves!
Afinal fui reconhecido e o à-vontade do nosso anfitrião foi tão manifesto que a breves momentos a descontracção era recíproca.
Que alívio!
O que se seguiu durante toda a tarde daquele dia memorável, foi para mim e para a Paula um autêntico deslumbramento! Um desfiar de recordações de um passado já com mais de meio século, desde que nos conhecemos em Marracuene, sede administrativa da sua terra Natal onde iniciei a minha carreira em Moçambique no longínquo ano de 1952. Ele tinha nessa altura 16 anos e eu 20!
Durante os anos que precederam a sua ida para Lourenço Marques, em 1956, Malangatana fez-se notar na vila pela sua participação em várias actividades culturais (música, danças tradicionais, artesanato) e desportivas. Naturalmente que os nossos encontros se sucederam nomeadamente no futebol que ambos praticamos e também na Administração onde ia com frequência tratar de assuntos pessoais ou visitar um seu parente próximo que ali trabalhava comigo. Depois de reavivarmos a memória citando factos e pessoas desses velhos tempos, nomeadamente dos administradores mais marcantes dessa época (Marques da Cunha e Granjo Pires), do padre Lourenço (que nos casou), dos Panguenes, dos Andrades, dos Lopes de Castro, dos Verdes, dos Bourlótos, dos Figueiredos (meus sogros), do velho Nunes (do Pavilhão de Chá), dos Faria Lopes e Lopes Marques (chefes de estação dos Caminhos de Ferro), dos Parentes, do Mendes (das excursões fluvias) e de outras figuras daquela bonita vila à beira do Incomáti, alargamos as nossas recordações ao período do pós independência quando ele era responsável do Departamento de Cultura do Ministério do Trabalho e eu adjunto da direcção dos Serviços de Fauna Bravia do Ministério da Agricultura, altura em que os nossos contactos foram mais frequentes pois estes Serviços forneciam o marfim de elefante para o sector de artesanato do mesmo Departamento.
Com a Paula numa das salas onde estão belos quadros e esculturas
A partir de 1990, data do meu afastamento de Moçambique para me fixar em Portugal, limitei-me a acompanhar, de longe, as notícias sobre a carreira fabulosa deste homem, que se tornou um dos pintores mundiais de vanguarda na actualidade, assim como escultor de grande mérito. A sua fama o tornou uma figura de grande prestígio, acumulando prémios e condecorações, incluindo a de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, de Portugal. A sua vastíssima obra (Pintura, Desenho, Aguarela, Gravura, Cerâmica, Tapeçaria e Escultura), encontra-se em vários museus e galerias públicas, bem como em colecções privadas, espalhadas por inúmeras partes do Mundo. Tem ainda pintados ou gravados imensos murais não só em Moçambique como noutros países africanos, da Europa e do continente americano. O seu espólio pessoal, de valor incalculável, enche literalmente toda a sua grande casa-atelier de Maputo, aguardando o seu próximo destino que será o Museu da “Fundação Malangatana”.
Aspecto parcial do atelier
Toda a actividade artística e social deste grande senhor não o afastou, contudo, dos contactos com o povo humilde e sobretudo das crianças. Na sua terra natal ele impulsionou um importante projecto cultural – Associação do Centro Cultural de Matalana – de cuja direcção é presidente. No seu bairro criou uma escolinha para as crianças aprenderem a pintar. Tem sido membro de Júris de vários eventos nacionais e internacionais das Artes Plásticas, mantendo a ligação à UNICEF relativamente ao Júri para os Cartões de Boas-Festas.
A sua próxima obra, que será a maior, é a sua própria “Fundação Malangatana”, que será erguida também na sua terra natal e para a qual já conta com o respectivo projecto do seu grande amigo, o arquitecto e pintor português Miranda Guedes (Pancho), um dos grandes impulsionadores da carreira deste artista na sua fase inicial quando era ainda um modesto empregado de bar e da cozinha do velho Grémio (o Clube de Lourenço Marques), de parceria com o Dr. Augusto Cabral, actual director do Museu de História Natural.
Crianças angustiadas As ligações de Malangatana a Portugal são muito estreitas, quer no âmbito institucional quer no relacionamento com as pessoas que o acarinharam nos tempos do seu lançamento na vida artística. Aqui tem feito muitas exposições individuais e elaborou, no Pavilhão de Moçambique da Expo-98 de que foi Vice-Comissário Nacional para a área da Cultura, uma escultura móvel, bem como um bonito painel-mural.
O seu Livro/Álbum “Malangatana” é uma encantadora obra por onde perpassa toda a magia e esplendor de uma vasta colecção das suas pinturas, desenhos e esculturas. Foi numa das páginas brancas deste Livro que o Mestre pintou uma bonita aguarela assinalando a visita que lhe fiz e que simboliza a nossa velha amizade. A todo o tamanho da página do lado esquerdo escreveu uma mensagem que muito nos sensibilizou e que é uma evocação especial dos velhos tempos de Marracuene (ex-Vila Luisa), com especial destaque para as suas belezas naturais, para os hipopótamos e crocodilos do grande rio Incomáti e para as actividades turísticas da vila. Escreveu ainda, numa outra página, uma dedicatória para as comunidades de Maputo, Inhambane, Beira e outras, que aqui deixo reproduzida, como se impõe.
Na fase inicial da pintura
A Paula observando o Mestre quando executava a pintura e dedicatória no Livro
Dedicatória e quadro concluídos
A Mensagem para as Comunidades
Agradecendo ao Mestre
Antes de deixar a casa-atelier de Malangatana, percorremos todas as salas onde se encontram expostos muitos dos seus quadros e esculturas, obras estas que executou ao longo da sua carreira e que foi seleccionando para fazerem parte do seu espólio inegociável.
Subindo para o 1º andar da maravilhosa casa-atelier
A visita acabaria pelas cinco da tarde porque Malangatana tinha tarefas na Assembleia Municipal, até onde o acompanhámos a seu pedido. Antes de nos despedirmos dirigiu-se à Paula e repetiu o que já nos havia dito no seu atelier: não te esqueças que quero fazer uma festa convosco e restante família em Marracuene, na próxima vinda de teu pai a Moçambique!
A despedida junto do Município
Nas horas que se seguiram a este encontro meditei profundamente sobre aquela figura imponente e bonacheirona, na sua simplicidade e delicadeza de trato, na sua sabedoria, na sua obra que os críticos tanto elogiam, na aura que o envolve e como conserva tanto vigor e alegria de viver a pesar de rondar os 70 anos e ultimamente ter sido sujeito a delicadas intervenções cirúrgicas!
Quando deixei este ilustre personagem à porta do Município de Maputo, naquela tarde inesquecível, sentia-me imensamente feliz e, tal como Mia Couto escreveu em 1986 a propósito de mais uma exposição do Mestre - “Sai-se de uma exposição de Malangatana com a sensação de que já não somos os mesmos que éramos quando entrámos”- , também fiquei com a sensação de que já não era o mesmo!
A bordo do avião da TAP, 24 de Março de 2005
Celestino (Marrabenta)
&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&&
NOTA FINAL
Esta “Carta” foi alinhavada a bordo do avião da TAP durante a viagem de regresso a Portugal, três dias depois do encontro com Malangatana. Só hoje, porém, é publicada devido a dificuldades que surgiram com o restabelecimento da minha conta Internet, entretanto interrompida durante as férias em Moçambique.
Ela é a última da série de 16 modestas crónicas que ao longo dos mais de cinco meses de permanência em Moçambique tive o prazer de escrever para as Comunidades onde muito me orgulho de participar.
Prometo voltar com outras notícias e imagens que trouxe na minha bagagem!
Um abraço do tamanho de Moçambique para todos os que tiveram a paciência de ver e ler estes escritos!
Amor - Leiria, 10 de Abril de 2005
Celestino (Marrabenta)
5 comments:
Nesta data tão triste para a nação moçambicana,recordamos já com saudade,de um dos maiores vultos da cultura lusófona,de um Grande e Bom Homem que será difícil senão impossível alguma vez esquecê-lo.
Oxalá a edilidade local consagre a sua memória,entre outras realiza-ções,atribuindo o seu nome a uma avenida importante da capital de Moçambique,substituindo o nome de uma das artérias que ainda ostentam nomes de personagens que nada tiveram a ver com este país(Lénine,Engels,Marx,etc)pelo seu nome.O mesmo se aplica à memória de Craveirinha,que no meu entender merecia melhor localização da rua(?) a que lhe atribuiram tardiamente o seu nome,esperando que o mesmo não aconteça com o do nosso querido Mestre.
Aguarda-se ainda à altura de escrever estas linhas pelo decretar de luto nacional de uma semana,no mínimo.
ATÉ SEMPRE GRANDE MESTRE!!
Manuel A. Santos Silva
Maputo
Nesta data tão triste para a nação moçambicana,recordamos já com saudade,de um dos maiores vultos da cultura lusófona,de um Grande e Bom Homem que será difícil senão impossível alguma vez esquecê-lo.
Oxalá a edilidade local consagre a sua memória,entre outras realiza-ções,atribuindo o seu nome a uma avenida importante da capital de Moçambique,substituindo o nome de uma das artérias que ainda ostentam nomes de personagens que nada tiveram a ver com este país(Lénine,Engels,Marx,etc)pelo seu nome.O mesmo se aplica à memória de Craveirinha,que no meu entender merecia melhor localização da rua(?) a que lhe atribuiram tardiamente o seu nome,esperando que o mesmo não aconteça com o do nosso querido Mestre.
Aguarda-se ainda à altura de escrever estas linhas pelo decretar de luto nacional de uma semana,no mínimo.
ATÉ SEMPRE GRANDE MESTRE!!
Manuel A. Santos Silva
Maputo
Pude, por uma vez, partilhar com Malangatana alguns aspectos sociais, culturais e politicos. Que simplicidade, que nobreza de caracter. Sinto a partida de mais um simbolo da paz mas também a partida de uma das minhas referências da cultura portuguesa e moçambicana... e do mundo...sim, porque Malangatana era um cidadão do mundo. À familia e amigos, sentidos pêsames pela sua partida.
Depois de ler estes dois excelentes comentários e com o espírito menos abalado, ocorrem-me tantas coisas do "Mestre" que corroboram o que aqui é dito referente à Grandeza e Nobreza de carácter deste Homem. Cito uma em que participei:
Do programa das comemorações da 1ª Semana da Natureza em Moçambique, no início da década de 80,fazia parte um concurso de pintura tendo participado praticamente todos os pintores mais conhecidos.
Como coordenador da "Semana" fui convidar pessoalmente o amigo Malangatana, para também participar e a resposta foi esta: Não participo porque eles (os colegas) precisam mais do que eu de ganhar os prémios! Aceitou fazer parte do Júri e um dos vencedores foi o velho Jacob (Macambaco),que na altura passava grandes dificuldades!
Oportunamente contarei outra bela história que também protagonizei com o "Mestre"!
É triste perder um amigo. Para a arte africana, é triste perder um dos seus maiores símbolos. Malangatana, quando tive oportunidade de o conhecer, eu era uma jovem e entusiasta jornalista, e ele ainda não era "O MESTRE" em que se tornaria, logo depois. Mas a Arte não morre e nem os grandes Homens nos deixam. A arte é ETERNA!! MALANGATANA TAMBÉM!
Até um dia!!!
Dina Maria Marques - Leiria
Post a Comment