15 January 2008

33 - LIVROS SOBRE FAUNA BRAVIA, CAÇA E CAÇADORES DE MOÇAMBIQUE


(11)


Título

AFRICAN TRAILS

Autor

FRANCISCO MAGALHÃES

(XICO)


(Caçador desportista)

Ano: 1996 (Edição em inglês, esgotada)
Edição em português: no prelo (Brasil)






1 - BREVES NOTAS SOBRE O LIVRO



Este interessante livro relata a experiência do autor como caçador desportista em Moçambique durante os últimos quinze anos da administração colonial portuguesa (1960/1975). Trata-se de uma obra cuja edição foi feita em Inglaterra em circunstâncias que prejudicaram os direitos do autor, levando-o a processar a editora e em consequência disso encontram-se suspensas as vendas e as reedições em língua inglesa. Entretanto e dado o sucesso alcançado no Brasil, o autor tem já no prelo a reedição (melhorada) em português, esperando-se que sai-a em breve.


Alguns dos relatos das caçadas referem a participação do autor nos trabalhos das brigadas de controle dos animais, sobretudo elefantes, que estavam a meu cargo na província de Manica e Sofala, alguns deles na área do Parque Nacional da Gorongosa. Também revela a sua grande paixão pelo mesmo Parque com cuja administração colaborou tanto em trabalhos da sua profissão, que foram as instalações eléctricas em alguns edifícios do Chitengo e nos da Bela-Vista, como na elaboração dos mapas das picadas com desenhos dos animais mais representativos. Esses mapas, tal como um outro abrangendo toda a província, foram oficializados e vigoraram até muito recentemente.


A descrição pormenorizada que ali se faz das regiões de caça frequentadas pelo autor e do seu potencial faunístico, são um excelente contributo para os estudos que se venham a fazer nessas mesmas áreas, sobretudo para localização de algumas espécies raras que sofreram elevado desbaste durante a guerra civil que grassou no país desde 1977 a 1992.




2 - O QUE ESCREVI ACERCA DO XICO NO ANO 2000 (*)


ÁLBUM DE RECORDAÇÕES
- 1 -
FRANCISCO MAGALHÃES
(XICO) 


  Francisco Magalhães, (Xico), com um belo exemplar de Palapala (Hippotragus niger), abatido em 1965 no tando do Suzano, 
perto do rio Tôa, afluente do Revuè, na Província de Manica e Sofala – Moçambique.


Nascido em Moçambique, em 1936, desde criança que o Xico se habituou a conviver com a natureza e logo se apaixonou pela caça. Seu pai foi chefe de posto administrativo e viveu em regiões das mais famosas em fauna bravia, como Marromeu, Lacerdónia, Inhaminga, Gorongosa, Vila Machado e por último Vila Pery, actual Chimoio.


Caçador desportista por excelência, estudioso e apaixonado pelos problemas da fauna bravia, depressa despertou a minha atenção após a chegada a Vila Pery no início de 1963. Para além da caça tinha ainda outra grande paixão: a fotografia ! Raramente se encontravam, no seio dos caçadores, indivíduos com estes atributos !


O Xico era um profissional do ramo da electricidade, com formação superior obtida na África do Sul. Esta sua actividade contribuiu também para a nossa aproximação: elaborou e executou projectos de electrificação para o Parque Nacional da Gorongosa, - a cuja administração estive ligado nessa altura - e também para o Posto de Fiscalização de Caça de Vila Pery.

Conhecedor das áreas de caça da região e do seu potencial faunístico, foi o meu melhor colaborador na identificação das mesmas, quer elaborando mapas e gráficos, quer acompanhando-me nas deslocações, sobretudo quando havia operações de controle de animais em defesa de pessoas e bens, muito frequentes naquela zona central de Moçambique.


No escritório-laboratório da residência da família Magalhães – uma das melhores da cidade - passámos muitas horas ao serão, revelando filmes e fazendo fotos e mapas ilustrados com desenhos dos animais típicos das respectivas áreas. Muitos destes trabalhos foram oficializados e alguns deles ainda estão em uso, nomeadamente os respeitantes aos Parques Nacionais, Reservas e Coutadas. O Xico era perito nestes trabalhos e executava-os com grande satisfação, nunca tendo cobrado por eles qualquer importância !


Dizia-me que a melhor recompensa que podia receber era a nossa confiança e o reconhecimento das suas virtudes como caçador desportista, respeitador das leis da caça e simultaneamente como conservador da fauna bravia. Não tive pois qualquer dúvida em lhe facultar a realização de alguns dos seus sonhos, integrando-o muitas vezes nos meus trabalhos de controle de animais de grande porte, nomeadamente de elefantes, quando em defesa de pessoas e bens. Foi um dos raros caçadores estranhos aos Serviços da Fauna a quem facultei semelhante participação, durante a minha actividade e a sua preciosa ajuda revelou-se sempre muito útil e confirmou o seu valor como caçador.


O  Xico com o autor junto de um elefante problemático abatido durante uma 
operação de protecção  às culturas dos naturais das povoações a 
Noroeste do Parque Nacional da Gorongosa, na década de 60 
(foto extraída do livro “African Trails”)

Publicou em 1996 um interessante livro, em inglês, sobre as suas aventuras como caçador, com o título “African Trails”, descrevendo ali algumas experiências sobre a sua participação naquelas brigadas. Está a preparar a edição em português.


Saiu de Moçambique em 1976, em circunstâncias que muito o traumatizaram e que deixou transparecer naquele mesmo livro.


 Imagem da capa do livro “AFRICAN TRAILS”

Vive há largos anos no Brasil, provavelmente sonhando com a sua terra natal e com os belos momentos que ali passou nas caçadas que tanto o emocionavam! Pela admiração e respeito que sempre me mereceu e pela amizade recíproca que ao longo dos anos temos mantido, o primeiro lugar neste álbum dificilmente poderia ser ocupado por outro !


Voltarei, em local diferente, a falar do Xico e de seus saudosos pais !

(*) - Álbum nº 1 da série "ÁLBUM DE RECORDAÇÕES" do meu site
www.geocities.com/Vila_Luisa

NOTA A POSTERIORI
O servidor "Geocities" deixou de estar activo a partir de 2008, tendo sido republicados todos os trabalhos ali inseridos no meu Blog http://faunabraviademocambique.blogspot.pt/ 




3 - VOLTANDO A FALAR DO XICO E DA FAMÍLIA


Volvidos oito anos após aquela publicação, a promessa de voltar a falar do Xico e de seus saudosos pais cumpre-se agora. Faço-o com satisfação redobrada porque ao longo destes anos recebi imensas mensagens de amigos comuns para saberem notícias dele, alguns antigos colegas de escola que sem dúvida vão gostar de ter mais informações. E porque já visitei o Xico na sua terra de adopção, o Brasil, em 2006, em retribuição de três visitas que dele recebi aqui em Portugal, tenho motivos adicionais para enriquecer a pequena biografia que abriu os "Álbuns de Recordações" do meu site no ano 2000.


Voltando aos tempos de Vila Pery para descrever a família Magalhães (casal e dois filhos), queria dizer que este clã desfrutava de grande simpatia da parte da população da bela cidade do planalto de Chimoio, em cujo meio se encontrava radicado desde o início da década de 30 (o Xico nasceu lá em 1936).


O patriarca, António Correia de Sousa Magalhães (conhecido por "Magalhães Careca"), descendente de uma antiga família cuja árvore genealógica revela ligação à irmã do navegador português Fernão de Magalhães, foi para Moçambique depois de ter feito os seus estudos para oficial da Marinha nos anos em que algumas figuras conhecidas, como o antigo presidente da república Almirante Américo Tomaz, igualmente fizeram tal formação. Seguiu contudo a carreira administrativa como chefe de posto da Companhia de Moçambique, mas quando esta majestática foi integrada no Estado, em 1941, ele abandonou a carreira e fixou-se em Vila Pery (então uma pequena vila) para se dedicar à indústria de madeiras, construção civil e outras actividades imobiliárias. Um dos seus melhores negócios (assim o dizia), foi a compra da fazenda "Mandigos", que inicialmente pertencera aos caminhos de ferro de Moçambique e depois aos irmãos Fernandes até chegar às suas mãos. Uma propriedade de grandes dimensões situada na parte sul da vila e dividida desta apenas pela estrada Beira-Rodésia, que adquiriu justamente por antever o desenvolvimento da futura cidade capital do Chimoio e a sua importância como área de expansão da mesma.


O sucesso das suas empresas depressa o tornaram uma figura bem conhecida e admirada não só na vila mas ao nível da província de Manica e Sofala que abrangia praticamente todo o centro de Moçambique (entre os rios Save e Zambeze), cuja capital era a cidade da Beira, a segunda maior do território. O desenvolvimento da pequena vila dos anos 40, transformada numa airosa e bonita cidade nos anos 50, muito se ficou a dever ao dinamismo e colaboração deste velho colono, que através de parcelamentos sucessivos e adequados permitiu a criação da zona industrial, aerodromo, campo de futebol, feira de exposições agro-pecuárias, laboratório de investigação veterinária e pequenas quintas para agricultura e habitação. Parte dessas parcelas, nomeadamente as de benefício público como o aeródromo, feira, campo de futebol e laboratório veterinário, foram por ele oferecidas ao Estado.



O maior e mais belo conjunto arquitectónico da cidade, constituído pelo prédio e cinema Montalto, construído no centro e com frente para as duas principais avenidas, integrou, para além de uma moderna sala de espectáculos, um espaçoso café, lojas, escritórios e apartamentos de habitação. Foi um dos mais arrojados projectos por si encabeçados, de parceria com outros dois bem conhecidos empresários da época, Engº Jaime Guedes (construtor civil e empreiteiro de estradas) e Jorge de Abreu (da Somocine e Hoteis Tivoli e Turismo de Lourenço Marques). A empresa que formaram - Sociedade de Construções Montalto - daria assim o nome a este complexo e ao próprio cinema que ainda hoje é a única sala de espectáculos da cidade.


Mas a empresa que lhe terá dado mais sucessos, em termos financeiros, era a LICA - Luso Industrial Comercial e Agrícola, Lda, que comercializava internamente e exportava as ricas madeiras de Moçambique, preparadas nas duas serrações que possuía em Gondola e Inhamacoa. Este negócio, considerado dos mais rendosos no território, levava o velho Magalhães a deslocar-se com frequência ao estrangeiro, o que lhe dava a oportunidade de conhecer muitos países de todos os quadrantes e o tornava uma pessoa bem informada e esclarecida com quem dava gosto conversar.



A matriarca, D. Rosalina Barradas, de uma família com vários elementos igualmente radicados em Vila Pery, há muitos anos, tornara-se uma das principais damas da sociedade local, tanto pelo estatuto do próprio marido como pela simpatia que irradiava e pela sua acção benemérita junto dos mais desfavorecidos.

Boa esposa, boa mãe, boa amiga e maravilhosa anfitriã, D. Rosalina tinha o seu tempo sempre ocupado, quer nas lides da casa quer nos compromissos sociais ou ainda a costurar, um hobby que muito adorava. E porque era um hobby, apenas confeccionava roupas para a família e amigas e nunca cobrava por isso qualquer importância!
A casa da família, construída num vasto talhão na parte sul da cidade, não muito longe do centro, era das melhores vivendas de Vila Pery e estava discretamente protegida por muros periféricos com grades metálicas cobertas por espessas sebes de buganvílias e lantanas sempre bem aparadas. De piso térreo e arquitectura moderna ao estilo das moradias dos bairros chiques das cidades da África do Sul e da Rodésia, compunha-se de dois corpos unidos e em sentidos opostos. O interior, de divisões espaçosas e bem arejadas, era dotado de amplas portadas e janelas envidraçadas. No exterior e ao fundo do quintal, alinhavam-se os anexos de apoio constituídos por uma ampla garagem, escritório, dependência de empregados e estúdio fotográfico. Na parte da frente e à direita da casa estava um pequeno e airoso challet destinado aos trabalhos de costura de D. Rosalina, uma autêntica sala de visitas onde ela recebia e tomava chá com as amigas. Mais tarde o Xico construiu um pavilhão anexo à garagem onde instalou uma escola de judo, outra das suas grandes paixões e que alcançou grande sucesso na cidade, chegando a ter mais de três dezenas de praticantes!


Tudo naquela casa espelhava o bom gosto de D. Rosalina! A sala comum, requintadamente equipada com móveis das melhores madeiras, onde se destacava uma enorme mesa para as refeições (nota evidente do espírito de bem receber desta família), era o espaço onde os Magalhães se orgulhavam de receber as suas inúmeras visitas, muitas delas partilhavam das suas refeições mesmo que chegassem em cima da hora. Contígua a esta sala, entre a cozinha e a ala dos quartos, havia a sala de música onde o Xico muitas vezes ao serão deliciava a família e os amigos tocando ao piano as músicas mais em voga na época e também alguns clássicos que bem dominava. Ele ainda agora recorda com muito orgulho que foi o primeiro pianista do conjunto dos irmãos Muge, célebre em Moçambique na década de 60!


Os quadros, as molduras com fotos de família, os bibelôs, a tapeçaria e os arranjos de flores sempre viçosas, tudo disposto nos lugares adequados, condiziam igualmente com o ambiente sóbrio e funcional da casa. Na grande cozinha, as flores eram substituídas por vários cestos repletos de boa fruta tropical da região do planalto, dispostos ao longo das bancadas de mármores que ladeavam as paredes.


O quarto do Xico, o terceiro do fim da ala respectiva, era uma autêntica suite, espaçoso, com banheiro privativo e uma salinha de entrada, tornando-o assim independente mesmo para receber visitas. Estava decorado discretamente com motivos de caça, fotografias artísticas, quadros e outros objectos da sua autoria. Numa vitrine encontravam-se dos melhores livros e álbuns sobre a caça, vida selvagem, fotografia, judo e música, as suas paixões e hobbys predilectos. E num armeiro especial, a um canto da salinha, estava o património pessoal de que mais se orgulhava, que era o arsenal de armas de caça próprias para abate de todo o tipo de animais, incluindo elefantes, bem polidas e oleadas e que faziam inveja a qualquer caçador profissional afamado. Cada uma destas espingardas tinha a sua história, que ele contava com o entusiasmo próprio dos caçadores, sobretudo quando referia os seus sucessos nas caçadas aos búfalos, a espécie que o fez viver emocionantes aventuras e que tão bem relatou no seu livro "Afican Trails".


Aquele belo apartamento integrado na casa dos Magalhães fora concebido e mobilado para os dois filhos do casal, mas o João, o mais novo, só o utilizava quando ali ia de férias, visto que, ao contrário do Xico que regressou da África do Sul após os estudos, ficou em Johannesburg a trabalhar na IBM depois de concluída a formação em engenharia de sistemas de computadores. O John, como era (e ainda é) conhecido, viria a adquirir uma elevada craveira técnica dentro da IBM, acabando por ser requisitado pelas grandes empresas deste grupo sedeadas no Canadá, onde se radicou há mais de vinte anos e desempenha altos cargos como conselheiro, gerente de sistemas, vice presidente e consultor sénior da Logitek (Toronto) e director do grupo DMR (Ottawa).


Durante os seis anos que residi em Vila Pery (1963/1968), fui frequentador assíduo da casa dos Magalhães, graças à amizade enraizada com o Xico que me facultava o seu pequeno mundo onde me sentia bem justamente pelo muito de comum que tínhamos, nomeadamente na área da fotografia que ele tão bem dominava e que também era um dos meus hobbys preferidos. No seu bem apetrechado estúdio passámos imensos serões, revelando filmes, fazendo fotos e trabalhando-as nas mais diversas formas, o que me permitiu aumentar os conhecimentos que já tinha nesta matéria.

Mas o calor humano que ali se respirava era sem dúvida o factor máximo que me dava o à-vontade e o prazer de conviver com esta família, cujo patriarca me tratava carinhosamente por poeta (alusão ao facto de usar o cabelo comprido) e com quem muito aprendi porque era um bom conversador, senhor de uma invulgar bagagem geral de conhecimentos e com grande experiência de vida em Moçambique. Era também um acérrimo crítico à governação colonial e um fervoroso adepto de uma independência baseada nos princípios democráticos, sem quaisquer barreiras de caris rácico ou religioso.


O Xico, que entretanto (1973) constituíra família casando com a simpática Fernanda, filha de um funcionário da Textáfrica (a grande fábrica de tecidos instalada no início da década de 60 nos subúrbios de Vila Pery e que muito contribuiu para o grande desenvolvimento da cidade), mudara-se para uma casa que o pai lhe oferecera como prenda da casamento, situada junto das pistas do aeródromo e integrada numa parcela de terreno com 14 hectares. Ali iniciou um projecto agro-pecuário (cultivo de forragens e criação de ovelhas), mais um dos seus planos para rentabilizar os vastos terrenos da família.


Os sonhos desta família começaram a desvanecer-se com o falecimento súbito, em 1973, do pai Magalhães e ruíram completamente com as transformações políticas operadas em Moçambique após a independência, em 1975.

Tudo se complicou com as medidas tomadas pelas novas autoridades, que decretaram, em 2 de Fevereiro de 1976, a nacionalização dos bens de rendimento como prédios, terrenos, ou qualquer bem imóvel com excepção da própria casa de habitação. A família Magalhães perdeu praticamente tudo, um verdadeiro império comercial, industrial, agrícola e imobiliário!

Entretanto o Xico já havia sido privado de todas as suas espingardas de caça, recolhidas pela polícia como medida de segurança própria de quem vinha de uma guerra e receava complicações que alterassem o processo de descolonização em curso. Uma medida que foi acompanhada com a proibição do exercício da caça, aquilo que ele mais gostava fazer nos tempos livres!


A população portuguesa, desprotegida face à retirada das tropas e de todas as forças de segurança do regime colonial, iniciou a debandada logo após o acordo de Luzaka ente a Frelimo e o governo português, em 7 de Setembro de 1974. Muitos daqueles que insistiram manter-se após a independência em 25 de Junho do ano seguinte, viram-se a braços com imensas dificuldades, muitas vezes pelo exagero na actuação dos agentes de autoridade do novo poder da Frelimo. Um pequeno problema era transformado em grande conflito lesa pátria e o Xico acabou por ter o primeiro, relacionado com duas granadas que a polícia portuguesa lhe entregou anos antes, destinadas ao encarregado de uma das serrações da família para defesa das instalações que já haviam sido atacadas por grupos de guerrilheiros. O Xico nunca entregou essas granadas e guardou-as na sua casa acabando por se esquecer delas até que uma busca inesperada da polícia as detectou. Foi preso e viu-se envolvido num processo que acabou por ter um desfecho feliz graças à boa reputação que desfrutava entre a população negra local. Esteve eminente a sua expulsão de Moçambique com a aplicação da célebre sentença conhecida pelo 24/20, que era aplicada a torto e a direito e que dava aos "réus" 24 horas para sair de Moçambique e o direito a levar 20 quilos de bagagem!

Um novo caso surgiu, tempos depois e ditou o fim das suas aspirações e do resto da família, incluindo da mãe que, na altura, Fevereiro de 1976, se preparava para regressar da África do Sul onde fora visitar o John.
Uma velha espingarda de 1840, da antiga colecção do Xico, legalizada como arma de panóplia, incapaz de dar tiros há mais de cem anos e que ficara na casa dos pais dependurada na parede do escritório junto de alguns troféus de caça, foi o objecto do "crime" que levou ao novo conflito com as autoridades.




A feliz coincidência da ida do Xico com a família (esposa e o filho, Rui, de 2 anos) à Rodésia, para receber a mãe no aeroporto de Salisbury, evitou a sua prisão que esteve eminente poucas horas depois de ter saído de Vila Pery. Uma denúncia de que ele mantinha armas em casa levou a polícia da Frelimo a fazer uma busca ao local certo, onde recolheram a velha espingarda. De seguida dirigiram-se à sua residência para o deterem e como não estava foram ao cinema onde normalmente trabalhava como encarregado da cabine de projecção. Interromperam a sessão que estava a decorrer, num aparato como se procurassem um perigoso bandido. Vasculharam praticamente todos os locais da cidade que ele habitualmente frequentava e no hotel Atlântida chegaram a fazer buscas no interior do forno industrial da respectiva cozinha!



A cunhada Edite (irmã da esposa), ainda a residir em Vila Pery, avisou-o por telefone do que se estava a passar. O Xico e família não voltaram à sua terra abdicando assim de todos os seus bens em troca de liberdade. Ficaram na Rodésia, acolhidos pela cunhada Filomena (outra irmã da Fernanda) e marido que na altura trabalhava em Salisbury. A D. Rosalina, também avisada a tempo, já não viajou e disse adeus, para sempre, à sua bela casa, aos seus bens, à sua querida terra de Moçambique!


O casal ficou cerca de um ano e meio na Rodésia, onde a situação era crítica dado que o governo de Ian Smith, que anos antes declarara independência unilateral desligando-se da Inglaterra, era alvo não só de fortes sanções económicas como de resistência armada por parte do movimento de Robert Mugabe, o nacionalista que levou o território à independência em 1980 com o nome de Zimbabwe e que ainda hoje é o presidente do país, não obstante a pressão que está a sofrer pela oposição através de eleições que decorrem no momento em que escrevo este texto.



Durante esse tempo o Xico trabalhou primeiro nos caminhos de ferro rodesianos, em Bulawayo, operando no ramo da electricidade e depois na polícia de reserva. Esta última actividade foi-lhe imposta pelas forças armadas e era uma obrigação que abrangia todos os estrangeiros ali residentes precisamente para participarem no combate à guerrilha. Andou sete meses a expor-se aos perigos que eram cada vez maiores à medida que o tempo passava e isso o levou a deixarem a Rodésia em Julho de 1978. Entretanto, em 1977, a família ficou aumentada com o nascimento do segundo filho, o João Carlos!



Depois de uma breve estadia em Portugal, seguiram para o Brasil onde já se encontravam há mais de um ano, na cidade de Recife, a cunhada Filomena e marido que também haviam deixado a Rodésia pouco depois da chegada ali do Xico e família. E foi este casal que lhes deu apoio nos primeiros tempos, inclusive para o primeiro emprego do Xico numa fábrica de linhas como responsável de manutenção de máquinas.



Finalmente encontraram a paz e estabilidade naquele admirável país que tão bem soube acolher muitos milhares de portugueses regressados das colónias portuguesas que se tornam independentes em 1975, nomeadamente Angola e Moçambique.




Entretanto, D. Rosalina fixara-se com o John no Canadá, onde veio a falecer em 1987 após doença prolongada, o que constituiu mais um acontecimento que abalou profundamente os seus dois filhos.

D. Rosalina com os seus dois filhos Francisco (Xico) e João (John), junto das cataratas de Niagara - Canadá, em 1986, cerca de um ano antes do seu falecimento.








4 - O XICO NO BRASIL




Já ali radicado há cerca de dez anos, só em 1988 tive notícias dele através de uma prima, a Ana Maria, que também nascera e vivera em Vila Pery e partira com os pais para o Brasil, em 1975. A Ana Maria regressou em meados da década de oitenta a Moçambique, indo trabalhar no Ministério da Agricultura como secretária da direcção de recursos humanos do MONAP, um projecto nórdico onde curiosamente eu também estava integrado.
Foram boas as notícias sobre o Xico, que davam conta ter-se inserido e progredido no mercado de trabalho brasileiro, primeiro na cidade de Recife, até finais da década de 70 e depois em Fortaleza onde se fixou em definitivo e ainda vive actualmente num confortável e bem localizado apartamento em condomínio fechado que ali adquiriu. Reatamos assim os nossos contactos, trocando correspondência que avivou a velha amizade e conduziu ao nosso reencontro quando nos visitou com a família na nossa casa de Amor, em 1994! Posteriormente, em 1996, voltou a visitar-nos ainda acompanhado da família, mas esta seria a última com a sua adorada esposa, visto que a Fernanda falecera em fins de 1999, vítima de grave e incurável doença. Mais uma tragédia na vida do Xico, que só chegou ao meu conhecimento depois da publicação do Álbum de Recordações do meu site, em Fevereiro de 2000. Não foi, por isso mesmo, referenciado este infeliz acontecimento na breve biografia que sobre ele ali publiquei.

Tal desenlace mudou radicalmente a vida do Xico, que ao longo de vinte anos havia reconstruído o seu lar em terras do Brasil e de algum modo atenuado o desgosto pelo que passaram e perderam em Moçambique. A perda da esposa abalou-o profundamente e só recentemente, graças ao seu abnegado espírito de luta contra as adversidades, conseguiu recuperar a moral que ficara profundamente abalada. Contou com a ajuda dos filhos e da Teresa, uma simpática cearense que tem um monte de virtudes que o encantaram para sua companheira.

Também se reabilitou profissionalmente já que na fase crítica da doença da Fernanda se viu forçado a suspender o seu emprego. Começou por concluir os estudos na área de engenharia industrial, obtendo a respectiva licenciatura, o que lhe permitiu actuar individualmente executando projectos de formação profissional desta mesma área. Por outro lado, obteve do Estado brasileiro a aposentação relativa aos vinte anos de trabalho em Recife e Fortaleza.
Entretanto, no Verão de 2003 , visitou-nos de novo, agora sozinho, aproveitando uma das suas habituais visitas que faz aos tios e primos que vivem no Porto. Proporcionei-lhe aqui o encontro com outro velho e comum amigo, o Dr. Armando Rosinha, antigo director dos serviços de fauna bravia de Moçambique e que também foi administrador (por acumulação) do Parque Nacional da Gorongosa nos tempos em que o Xico ali colaborava.

Finalmente, concretizei a promessa que há vários anos vinha fazendo ao Xico de o visitar na sua nova terra. Esta decisão foi encorajada também porque quis fazer uma surpresa a minha mulher que era festejarmos as nossas bodas de ouro de casados no Brasil!

Arrumei com antecedência as passagens e anunciei ao Xico as datas de chegada e regresso e confidenciei-lhe os planos. Em casa deixei correr o tempo e obtive a cumplicidade de uma sobrinha, por sinal costureira, que convenceu a tia a renovar o seu guarda-roupa já a pensar na próxima viagem a Moçambique, programada para o fim do Verão. Quase em cima da data de embarque entreguei-lhe um embrulho muito bonito com os bilhetes!

Chegamos a Fortaleza ao fim da tarde do dia 10 de Março de 2006, viajando através de um pacote turístico de uma semana, com instalação num hotel situado na avenida marginal onde se realiza a célebre feira de artesanato nocturna durante todos os dias do ano.

Penso que a reacção que tivemos ao pisar terra brasileira não foi muito diferente da de todos os portugueses que visitam este maravilhoso país! De tanto ouvirmos falar dele, de tantas telenovelas que ao longo de décadas nos entraram em casa e de conhecermos a sua história como colónia portuguesa, até parece que estamos em casa. Ficámos extasiados perante a beleza daquela cidade, a quinta maior do Brasil em termos de população!

O casal (Xico e Teresa) lá estava no aeroporto e foi no seu carro que seguimos para o Hotel, um percurso de dezassete quilómetros sempre dentro da cidade e a uma hora de ponta que ali, naquele burgo de quase três milhões de habitantes, é coisa séria face ao mar de carros que circulam nas ruas e avenidas a perder de vista!

Impunha-se, à chegada ao hotel, um banho reparador para aliviar do cansaço da viagem e a troca de roupa por coisas mais leves visto que estávamos num clima tropical que é bem agressivo durante o dia (a média anual é de vinte e seis graus mas estávamos no período mais quente do ano, acima dos trinta) e que à noite raramente baixa dos vinte! E já mais descontraídos, tiramos a primeira foto com os nossos amigos e começamos a saborear a visita com um breve passeio ali mesmo em frente do hotel, no chamado calçadão da avenida Beira Mar, onde apreciamos a famosa feira de artesanato e nos refrescamos com uns apetitosos sumos de frutos naturais!

A estadia em Fortaleza ultrapassou as nossas expectativas, não obstante a prévia preparação que fizemos lendo os sites sobre a cidade e as informações recebidas do próprio Xico. A grandiosidade e beleza arquitectónica da cidade, as imaculadas praias da região, o bom hotel onde nos instalámos, o clima quentinho tão do nosso agrado, a simpatia dos habitantes, os sabores da culinária, os bons frutos tropicais, o artesanato genuíno, etc., foram factores que tornaram a nossa estadia muito agradável e francamente inesquecível!


Mas sem o apoio e acompanhamento do casal, que todas as manhãs nos ia buscar ao hotel e nos levava a visitar os lugares mais significativos da cidade (exceptuando apenas o dia em que nos integramos no programa do pacote turístico de visita à praia de Cumbuco, situada a cerca de 40 Km), aquelas "férias" não teriam atingido tal plenitude! O Xico e a Teresa foram inexcedíveis levando-nos a conhecer não só os lugares onde o turista comum normalmente vai, mas outros mais recatados e sobretudo alguns pouco recomendados por questões de segurança como dois mercados rurais e uma favela onde melhor pudemos observar e contactar com o povo e a sua cultura. Felizmente nada nos aconteceu, talvez pela descontracção, pouca exposição e aparência de pobretanas com que nos apresentávamos!

Limitados ao tempo do pacote da viagem (8 dias e 7 noites), naturalmente que não pudemos visitar todos os pólos turísticos da cidade e arredores, como desejaríamos. Eram precisos muitos mais dias. Mesmo assim, aproveitamos bem esse tempo graças aos conhecimentos e eficácia dos nossos cicerones e ao genuíno Chevrollet do Xico, que só fracassou por momentos quando desabou sobre Fortaleza uma daquelas chuvadas tropicais que nós bem conhecemos de Moçambique e que afectou a parte eléctrica!





Visitamos locais típicos da cidade , como o Porto de Mar de Mucuripe; o mercado dos pescadores onde se vende o peixe e mariscos frescos vindos diariamente do mar; o mercado central da cidade, de quatro pisos, onde fervilha uma enorme multidão de gente ; o rio e parque do Cocó, muito belos; alguns bares e restaurantes da cidade e da avenida Beira Mar, onde saboreamos a boa comida nordestina: as praias de Meireles e Iracema, que são a bandeira da cidade; o novo e mega centro comercial onde os restaurantes fornecem a comida mais barata da cidade (que bela feijoada lá comi!); a zona colonial, toda ela bem conservada e vocacionada para o comércio em pequenas lojas muito frequentadas pela população e turistas; o castiço bar do capitão Mostarda, onde se bebe cerveja a rodos; o famoso Pirata, na praia de Iracema, onde passamos uma maravilhosa noite assistindo ao maior espectáculo de forró do Brasil; a praia de Cumbuco, uma das mais belas da região, onde comemos a melhor picanha na aldeia Brasil; a catedral de S. José; etc., etc.




Esta foto, tirada com o Pirata na sua famosa casa de Forró de Fortaleza, deveu-se ao facto do Xico e os filhos terem relações de amizade com este português de sucesso!


A excursão à praia de Cumbuco foi muito curiosa porque nos permitiu observar ao longo dos 40 Km do percurso uma paisagem muito igual à do litoral do norte de Moçambique e toda uma sequência de aglomerados populacionais onde é bem notória, pelo aspecto das construções, a diferença de nível de vida dos brasileiros: belos challets, isolados mas bem protegidos com muros altos e com grades electrificadas, misturam-se com pequenas e modestas casas! Aqui e ali aparecem urbanizações onde prevalecem os condomínios fechados, igualmente protegidos com muros e redes electrificadas!

Não obstante a roda viva em que os nossos amigos andaram para nos mostrarem o mais possível da sua cidade, eles excederam-se como anfitriães recebendo-nos e oferecendo-nos na sua casa excelentes refeições tipicamente nordestinas!



A primeira vez coube ao Xico a confecção da refeição, uma novidade para nós: badejo no forno, um belo manjar que muito apreciamos! A segunda foi a Teresa a cozinheira: um belíssimo caril (lá não chamam caril) de camarão, que não ficou a trás do melhor da tradição moçambicana!





O calor humano não se esgotou no Xico, Teresa e João. Os simpáticos cunhados do Xico, a Edite e o António, que igualmente vivem e estão solidamente enraizados em Fortaleza, também nos acolheram na sua casa, um belo apartamento num moderno edifício em condomínio fechado no centro da cidade, obsequiando-nos com um requintado e apetitoso almoço!






Mas o ponto alto da estadia foi o momento em que, com os nossos amigos, na catedral de S. José e junto do altar do respectivo patrono, eu e a Lurdes nos congratulamos e agradecemos o percurso de 50 anos atingido nesse dia 17 de Março! Uma breve e singela cerimónia que foi seguida de um almoço num modelar restaurante, a última e apetitosa refeição nordestina antes do regresso a Lisboa ao fim da tarde desse dia.

Lá deixámos mais uma amiga, a Teresa, a simpática cearense que nos cativou pelo carinho que nos dedicou e também pela forma como tem contribuído, como companheira do Xico, para a estabilidade emocional deste grande amigo que tem vivido um dos dramas mais intensos entre as famílias que tudo perderam na antiga colónia de Moçambique, por razões que só podem ser atribuídas aos responsáveis do governo português que aprovaram a independência de forma leviana não acautelando no respectivo Acordo (Luzaka, Setembro 1974) os interesses e a própria segurança dos portugueses lá estabelecidos!

O Xico já está curado da nostalgia e saudosismo que o perseguiram durante os primeiros anos de estadia no Brasil. Apenas mantém o sentimento de revolta contra as autoridades que o perseguiram e forçaram a sair de Moçambique pois não compreende porque razão o fizeram quando ele era uma pessoa com um passado limpo, muito estimado pela população e se considerava um elemento útil ao país, tanto para fazer formação profissional na área da sua especialidade, como para dar aulas nas escolas secundárias e institutos, ensinar música, treinar desportistas, ou, simplesmente, deixarem-no prosseguir com o seu projecto agro-pecuário que tanto o fascinava!

O Brasil conquistou-o, soube aproveitá-lo e ele agora ama-o tão intensamente como amava a sua terra natal - Vila Pery, Moçambique!



O almoço de despedida




As belas frutas brasileiras!


O simpático João, que muito colaborou na nossa visita!
O irmão mais velho, o Rui, já casado, vivia na altura em S. Paulo.


Na praia de Iracema


A Teresa e o Xico, descontraídos à boa maneira afro-brasileira!


* * *
Marrabenta, Abril de 2008

Celestino Gonçalves



03 December 2007

32 - LIVROS SOBRE FAUNA BRAVIA, CAÇA E CAÇADORES DE MOÇAMBIQUE

(Capa da encadernação do livro)

(Capa protectora)
(10)


Título


SANTUÁRIO BRAVIO


Sub-Título


MOÇAMBIQUE - GORONGOSA - SAFARIS



Autor e Editor

José Maria d'Eça de Queiroz

Ano: 1964


Distribuidora

EMPRESA NACIONAL DE PUBLICIDADE

Avenida da Liberdade, 266 - LISBOA (*)



1 - BREVE APONTAMENTO SOBRE O AUTOR



Confessando a minha ignorância devo dizer que não conhecia este escritor que ostenta o pomposo nome daquele que foi um dos mais consagrados escritores portugueses de todos os tempos! E porque nenhum dado biográfico do autor consta do livro pouco mais posso adiantar nesta apresentação.


O que apurei é que, de facto, José Maria D'Eça de Queiroz é parente (não sei em que grau) do autor do "Crime do Padre Amaro" e de tantas obras famosas da literatura portuguesa! Este facto, só por si, justifica a admiração e atenções de que o mesmo foi alvo em Moçambique, nomeadamente no Parque Nacional da Gorongosa onde permaneceu algumas semanas e nas coutadas oficias.

Conheci-o pessoalmente, em 1963, quando ele e a sua equipa (esposa Maria Tereza e o fotógrafo Ludwig Wagner) arribaram ao Parque onde eu já trabalhava como colaborador directo do respectivo administrador, Dr. Amadeu Silva e Costa.
Um ano antes já o autor havia estado na Gorongosa, onde se entusiasmou com tudo o que viu e programou uma visita mais demorada e apetrechada para observar e colher material para a obra que acabaria por publicar em 1964.


Como se tratava de personalidade credenciada ao mais alto nível do Ministério do Ultramar, em Moçambique teve as portas abertas e com estatuto VIP em todos os pontos da sua estadia. A administração do Parque Nacional da Gorongosa colocou-lhe à disposição, inclusivè, viatura com motorista e um guarda acompanhante para as suas incursões diárias ao interior e zonas periféricas onde observou a mais fabulosa fauna bravia de Moçambique e colheu o material que faz parte do capítulo principal deste livro.

2 - SOBRE O LIVRO

Trata-se de um livro-álbum, bilingue (portugês e inglês), de 351 páginas. Contém 270 fotografias, 100 das quais a cores e também alguns desenhos e vinhetas. Tem uma encadernação de excelente qualidade, com capa rígida forrada a tecido de cor beje, com título e desenho de uma impala gravados a cor de vinho. Está protegido com sobrecapa de brochura a cores com foto de um leão. Tem o formato de 0,29x0,22 e todos os exemplares foram numerados e assinados pelo autor.

Pode considerar-se uma obra de luxo.

O livro, todo ele escrito no estilo romântico que caracterizou muitos escritores que descreveram a África como local de deleite de aventureiros, caçadores, fazendeiros e exploradores, surge numa fase em que Moçambique atravessa um notável desenvolvimento no domínio do turismo ligado à fauna bravia, com destaque para o Parque Nacional da Gorongosa e coutadas de caça.

O autor aproveita essa circunstância e descreve de uma forma singular o panorama e as actividades desde sector, focalizando as narrativas nas actividades e no potencial faunístico nos locais que visitou, nomeadamente a Gorongosa e as coutadas oficiais 1 (Kanga N´Thole) e 16 (Chicualacuala).

É sem dúvida uma obra que encanta os apaixonados pela vida animal e caçadores que encontram nas excelentes narrativas e nas muitas fotografias de rara beleza um incentivo para visitarem aqueles locais maravilhosos.

Esta obra, que é das melhores que se escreveram no século passado enaltecendo o potencial turístico de Moçambique, particularmente do Parque Nacional da Gorongosa, está ainda mais valorizada pelas fotos e referências a outros locais que o autor visitou, como a capital Lourenço Marques (actual Maputo), a cidade da Beira e as ilhas de Moçambique, Santa Carolina e Bazaruto.

Das muitas descrições que enaltecem aquele que foi considerado o mais importante santuário da fauna bravia de África, escolhemos esta (Pág. 65):


"A Gorongosa é como o mar: sempre igual e sempre diferente. O mar tem mil mares.
Na Gorongosa, o tando tem mil tandos - a savana tem mil savanas."


3 - ALGUMAS FOTOS DO LIVRO


Palapalas no tando



Os leões (ex-libris do Parque)



Um elefante na pista de Chitengo



Travessia do rio Púnguè em Buè Maria e imagens do Chitengo

O autor (à esquerda) e esposa (centro)
jantando com o comandante do paquete "Moçambique"
na viagem que os levou de Lisboa até à Ilha de Moçambique, em 1963
(*) - Alguns alfarrabistas portugueses com site na Google têm à venda este livro
que ronda os € 100,00.

27 November 2007

31 - LIVROS SOBRE FAUNA BRAVIA, CAÇA E CAÇADORES DE MOÇAMBIQUE



(9)

FAUNA SELVAGEM
E
PROTECÇÃO DA NATUREZA

EDITOR
AGÊNCIA GERAL DO ULTRAMAR
L I S B O A
Ano: 1973

1 - NOTA PRÉVIA DO LIVRO
"Realizou-se no Estado Português de Angola, de 17 de Novembro a 2 de Dezembro de 1972, a primeira reunião, a nível nacional, para o estudo dos problemas das da fauna selvagem e protecção da Natureza no ultramar português.
A sessão inaugural teve lugar em Luanda e os trabalhos da Reunião decorreram na cidade de Sá da Bandeira, com larga participação de individualidades - cerca de uma centena - em representação dos sectores público e privado da metrópole, de Angola e de Moçambique.

Por determinação do Ministro do Ultramar recaiu sobre o Gupo de Trabalho para o Estudo do Fomento Pecuário no Ultramar, o encargo da preparação, a nível central, desta Reunião. Simultâneamente nos Estados de Angola e de Moçambique funcionaram comissões provinciais que se ocuparam das tarefas relacionadas com a Reunião nos referidos territórios.
A agenda da Reunião era constituída por sete temas, conforme a seguir se discrimina:
1. - "Zonas de Protecção da Fauna Selvagem", seus aspectos gerais e especiais no domínio da conservação, melhoria, ampliação e constituição em função dos seus fins técnicos, sócio-económicos e turísticos.
2. - Patologia animal relacionada com a fauna selvagem.
3. - Valor económico da fauna selvagem - criação e aproveitamento racional como fonte de proteínas e outros produtos, subprodutos, troféus e despojos -. Repovoamento e introdução de novas espécies.
4. - Turismo e Protecção da Natureza:
- Turismo cinegético, de foto-safaris e de contemplação;
- em Coutadas;
- em terrenos abertos (áreas livres);
- em Zonas de Protecção;

- inter-relações entre o turismo cinegético, o de foto-safaris e o contemplativo e o turismo em praias de certos litorais e ilhas adjacentes;
- colaboração, ao nivel da África Austral, na realização de circuitos turísticos numa política de grandes espaços; harmonia nas legislações e eliminação de onstáculos de natureza burocrática.


5. - Legislação de base da "Protecção da Natureza no Ultramar Português" - Decreto nº 40 040, de 20 de Janeiro de 1955 -, e regulamentos consequentes, estabelecidos por outros diplomas legais.

Propostas de actualização ou alteração das disposições legais em vigor. Sua fundamentação.

6. - Mentalização das populações a todos os níveis - em especial as camadas dirigentes e escolares - no sentido de uma melhor compreensão e interesse pela fauna selvagem nos seus aspectos polivalentes (protecção, conservação, exploração, etc.).

7. - Política e estruturas científicas. Investigação e experimentação.

A discussão dos problemas abordados concretizou-se em conclusões e recomendações votadas em plenário final da Reunião.

Por iniciativa do Grupo de Trabalho para o Estudo do Fomento Pecuário no Ultramar e com a colaboração da Agência-Geral do Ultramar publicam-se neste volume os relatórios apresentados nas sessões de trabalho, bem como as conclusões e recomendações votadas no final. Estas conclusões e recomendações foram oportunamente homologadas pelo Ministro do Ultramar, constituindo assim base para o prosseguimento da meritória tarefa do estudo dos problemas da fauna selvagem e protecção da Natureza no ultramar português."







2 - A PARTICIPAÇÃO DE MOÇAMBIQUE

A Comissão representativa de Moçambique foi constituída pelos sete elementos que estão em primeiro plano na foto acima, tirada durante uma sessão de trabalhos em Sá da Bandeira, a saber: Em primeiro plano: Engº José Martins Santareno, secretário provincial de terras e povoamento e presidente da Comissão; Em segundo plano da esquerda para a direita: Jorge Abreu, industrial de turismo (Hoteis Tivoli e Turismo e Moçambique Safarilândia); Dr. Armando Rosinha, chefe da repartição técnica da fauna; Dr. Eduardo de Castro Amaro, inspector provincial de veterinária; Engº Videira e Castro, director dos serviços de agricultura e florestas; Prof. Doutor Jaime Travassos Dias, director da faculdade de veterinária e do Museu Álvaro de Castro (actual Museu de História Natural); e Dr. Fernando Paisana, director dos serviços de veterinária.
(foto gentilmente cedida pelo Dr. Armando Rosinha)


Coube à representação moçambicana elaborar os trabalhos relacionados com os temas:

- VALOR ECONÓMICO DA FAUNA SELVAGEM
(relator o Dr. Eduardo de Castro Amaro);
- LEGISLAÇÃO BASE DA "PROTECÇÃO DA NATUREZA NO ULTRAMAR PORTUGUÊS"
(relator o Dr. Armando Rosinha);

- POLÍTICA E ESTRUTURAS CIENTÍFICAS - INVESTIGAÇÃO E EXPERIMENTAÇÃO
(relator o Prof. Doutor Jaime Travassos Dias).
Os restantes 4 temas foram apresentados pelos representantes da Angola: Prof. Doutor Carlos Neves, Prof. Doutor Aires Gonçalves, A. Leite de Magalhães e S. Newton da Silva.


3 - BREVE COMENTÁRIO

Contém este livro, de 305 páginas, a mais importante e esclarecedora matéria jamais produzida pela administração colonial relativamente ao estudo de medidas de protecção e exploração da fauna bravia nos territórios de Angola e Moçambique.
As experiências colhidas antes e depois da publicação do célebre Decreto Lei nº 40 040, de 20 de Janeiro de 1955 e a pressão internacional para que se cumprissem em Angola e Moçambique os tratados a que Portugal tinha aderido, nomeadamente os de Londes de 1933 (Conferência para a Protecção da Fauna e da Flora Africanas) e de Nova Delhi de 1969 (Xª Assembleia Geral da União Internacional para a Conservação da Natureza - UICN), levaram as autoridades coloniais a dispensar alguma atenção a estes problemas. A Reunião de Sá da Bandeira foi não só o corolário dessa atitude como também da persistente acção de um punhado de devotados defensores da fauna bravia e da Natureza em geral, entre os quais os que ali estiveram presentes.
As conclusões e recomendações ali produzidas constituem um verdadeiro tratado cuja validade não tem prazo. As gerações de técnicos e governantes, actuais e seguintes, encontrarão nestas mesmas conclusões e recomendações directrizes importantes para o sector, cuja implementação, aliás, já se vem verificando em algumas situações pontuais em Moçambique, desde 1994, como é o caso dos Parques da Gorongosa e Limpopo e Reserva do Niassa, para não citar outros projectos de menor envergadura.
A propósito do que acima refiro, recordo aqui um trecho do trabalho do Dr. Armando Rosinha (Tema 5, página189) onde este conceituado técnico que dirigiu o Parque Nacional da Gorongosa e os Serviços de Protecção da Fauna Bravia, antes e depois da independência de Moçambique, deixa uma mensagem à população e governantes deste país relativamente à importância destes recursos naturais:

"Pessoalmente, estamos sincera e decididamente convencidos de que Moçambique - se a sua população e os seus dirigentes assim o entenderem -, tem neste sector de actividade uma sólida alavanca em que pode assentar o seu desenvolvimento económico, contribuindo-se ao mesmo tempo para manter, desenvolver e legar aos vindouros um ambiente natural equilibrado e são onde a vida humana seja um prazer, e não, como vem sucedendo em muitos locais, infelizmente, um pesado fardo que milhares de seres arrastam penosamente."

Por último salienta-se a importancia que representou o Parque Nacional da Gorongosa nos estudos relacionados com as zonas de protecção da fauna selvagem e desenvolvimento do turismo. Foram apresentadas estatísticas sobre o seu movimento e receitas desde 1952 a 1971 e publicadas no livro excelentes fotos da sua fauna. O relator do Tema 4 - Turismo e Protecção da Natureza -, o angolano A. Leite de Magalhães, ao referir-se a este Parque disse ser "a galinha de ovos de ouro, o maior espectáculo do mundo e legítimo orgulho de competentes serviços do Estado de Moçambique"!
Este livro não esteve à venda por se tratar de uma edição para uso interno dos organismos estatais e privados ligados à protecção e exploração da fauna bravia.
A biblioteca do Ministério da Agricultura e Pescas de Moçambique conserva este precioso documento, que tem sido fonte de consulta de muitos estudantes e técnicos e continuará, em muitos aspectos, a ser um guia dos legisladores sobre as matérias ali recomendadas.

4 - ALGUMAS FOTOS DO LIVRO



Zebras do Parque Nacional da Gorongosa - Moçambique

As célebres e raras Palancas Reais endémicas de Angola

Aspecto parcial de uma grande manada de Búfalos -Marromeu, Moçambique



Hipopótamos do P.N.G.
Elefantes da Reserva do Maputo - Moçambique





Leões do P.N.G.


Novembro, 2007
Celestino Gonçalves


19 November 2007

30 - O PRIMEIRO ENCONTRO DE REPRESENTANTES DO PARQUE E DA FRELIMO



1 9 7 4

O PRIMEIRO ENCONTRO
DE REPRESENTANTES DO PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA
 E DA FRELIMO



(SEGUNDA PARTE)

1 - INTRODUÇÃO

Como fiz menção na primeira parte desta crónica, constituiu-se no Chitengo, em fins do mês de Julho de 1974, logo após a desmobilização do contingente de 120 homens da OPV, uma comissão de trabalhadores composta por elementos representativos dos diversos sectores da vida do Parque, para se analisar a situação e estudarem-se medidas adequadas para fazer regressar à normalidade as actividades que se encontravam praticamente paralisadas desde o “25 de Abril”.

A administração do Parque, que na altura estava desfalcada dos seus habituais responsáveis, nada podia fazer perante a indisciplina que se instalou no seio dos trabalhadores levados por uns quantos agitadores que se aproveitaram da confusão que a mudança política naturalmente provocou. Os caçadores furtivos encontraram o caminho aberto naquele reino sem controle e até no acampamento de Chitengo se ouviam com frequência os tiros que em pleno dia derrubavam os elefantes!

A única medida era pedir auxílio  à FRELIMO, através dos comandantes militares da região, pois só esses podiam ajudar a resolver semelhante situação. Os voluntários da OPV, que ali foram instalados para garantir a continuação do turismo no Parque e o funcionamentos dos postos de fiscalização, tiveram o pior dos comportamentos ao transformarem-se, eles próprios, em caçadores furtivos. Pior ainda, hostilizavam e até  agrediam  os responsáveis do Parque que os pretendiam impedir de cometer semelhantes transgressões.

A companhia de
 tropa portuguesa, instalada no Chitengo com a finalidade de garantir a segurança na região do Parque, recolheu os seus homens à caserna e deixou de operar, esperando apenas e ansiosamente, ordens para o seu regresso a Portugal.

Vivia-se no Chitengo um clima de incertezas, até pela táctica da Frelimo que na região demorou em sair da mata, talvez com a desconfiança natural de quem manteve uma guerra tantos anos à espera de atingir os seus objectivos, que agora mesmo ainda não estavam definidos por falta do acordo final que só a 7 de Setembro seguinte veio a ser assinado entre as partes, em Luzaca - Zambia.

Ficar de braços cruzados a ver os efectivos dos animais mais representativos a diminuírem dia após dia, era uma situação incomportável a um punhado de fieis guardiões do Parque, precisamente aqueles que formaram a  dita comissão que, comigo à cabeça,  decidiu tomar medidas.  E estas eram de contactar rapidamente  os responsáveis das bases da FRELIMO,  sediadas algures na Serra da Gorongosa e na região de Bué Maria.

Receava-se, contudo. que qualquer iniciativa nossa, sem contactos prévios, viesse a ser mal sucedida, pelo que resolvemos procurar a pessoa mais indicada, o Dário Mosca, abastado comerciante e industrial da vila da Gorongosa, pessoa muito estimada na região. Ele nos disse que estava já a preparar a vinda à vila do comandante da base da Serra. para haver ali um encontro com as tropas portuguesas e a própria população da vila. Era uma boa altura para que uma delegação do Parque  estivesse também presente neste acontecimento histórico.

Enquanto aguardamos a resposta, amadurecemos a ideia de preparar uma mensagem para entregar ao comandante da Frelimo. A ideia inicial era de enviarmos dois estafetas à Serra para entregar directamente a mensagem, que, entretanto, a 4 de Agosto, ficou concluída. Mas voluntários para a arriscada tarefa de entrega não surgiram. Os próprios anciãos da comissão,  estavam muito cépticos quanto à reacção dos combatentes  e nenhum aceitou a arriscada missão.

Cerca de uma semana depois do apelo que fizemos ao Mosca, recebemos deste o recado que muito desejávamos. Tinha a promessa do comandante Cara Alegre de visitar a Vila no dia seguinte, dia 11 de Agosto. 

E lá estivemos no memorável encontro! Como chefe da delegação e depois de apresentar ao comandante Cara Alegre os companheiros da comissão, li a seguir e em voz alta a mensagem, com a emoção que o momento obrigava a sentir.  de entre os quais  e aplaudiram no final.
 As minhas palavras foram escutadas em silêncio pelos presentes, no interior de das instalações hoteleiras do Dário Mosca,  se encontravam, para além do comandante da Frelimo e membros da sua delegação,  do comandante o comandante do batalhão portuguê e alguns dos seus oficiaiss, o Este responsável da FRELIMO, que ali prometeu enviar esta mensagem ao seu comandante máximo, Samora Machel, garantiu-me, mais tarde e já em Maputo, que este a recebeu quando estava em Luzaka com a delegação da FRELIMO para a assinatura do acordo com os representantes do governo português – 7 de Setembro de 1974 –, que conduziu Moçambique à independência.

Esse documento, que felizmente faz parte do meu arquivo e já resistiu 33 anos, por ter sido batido em stencil e copiado com tintas e em papel de pouca qualidade, está mal conservado e não dá reprodução fiel, pelo que a sua cópia foi a solução. Aqui fica, tal como o seu anexo.



2 – A MENSAGEM ENTREGUE À FRELIMO


MENSAGEM DOS TRABALHADORES DO
PARQUE NACIONAL DA GORNGOSA
AOS COMBATENTES DA FRELIMO


Prezados camaradas!

Chegou a hora de darmos as mãos para a construção do Moçambique Novo, pelo qual vós lutais há tantos anos de armas na mão!
Chegou a hora de reconstruir esta Terra, tão abalada por treze anos de uma guerra contra os governantes colonialistas!
O novo governo português, depois de ter demitido aqueles governantes no histórico golpe de Estado de 25 de Abril, abriu já o caminho para a total independência de Moçambique.
O General Spínola – novo Presidente de Portugal – no seu memorável discurso de 27 de Julho findo, proclamou o direito dos povos africanos de Moçambique, Angola e Guiné à total independência.
Nessa proclamação disse solenemente:

“…………PODEM AGORA OS SOLDADOS DE AMBOS OS LADOS ARRUMAR
AS ARMAS E DAREM AS MÃOS PARA EM PAZ CONSTRUIREM UM PAÍS
NOVO…..”

Logo após aquela data, em todo o Moçambique se tem festejado a vitória do seu Povo, conduzido pela FRELIMO ao longo destes anos de luta!
O cessar fogo é uma realidade em muitos pontos do território, havendo em muitos lados uma leal colaboração entre as tropas da Frelimo e os soldados portugueses, que retiram as minas das estradas e confraternizam nas próprias bases e aquartelamentos.
A guerra acabou finalmente, para bem de todos, porque redundou na mais justa das vitórias: a independência do Povo de Moçambique.
Só quem não recebe notícias pode ignorar o que se passa. É preciso que todos saibam: Moçambique é uma Nação Livre!
Nesta hora de alegria para o povo moçambicano, todos os trabalhadores do Parque Nacional da Gorongosa, reunidos especialmente para elaboração desta mensagem, vêm manifestar o seu regozijo por ter acabado a guerra e declararem o seu firme desejo de colaborar com o futuro governo moçambicano na reconstrução desta próspera Terra por forma a nela SER ERGUIDA A Nação que todos ambicionam.
Nesta tarefa, que só é possível na paz, todos nós temos um papel importante.
Nós, os homens e mulheres que trabalham no Parque Nacional da Gorongosa, queremos ardentemente participar na obra que vai seguir-se.
Dentro da missão que nos compete – zelar pelo património faunístico da Nação – solicitamos a melhor compreensão de todos, camaradas da Frelimo e residentes na região do Parque.
Às pessoas menos esclarecidas sobre a verdadeira razão da existência do Parque da Gorongosa, desejamos informar que ele representa uma riqueza da Nação Moçambicana; que essa riqueza pertence ao povo moçambicano em geral e não aos que aqui trabalham; que os animais que aqui protegemos constituem o símbolo dessa riqueza; que é dever de todos nós conservar na Terra os Parques Nacionais onde esteja garantida a continuidade dos representantes de todos os seres vivos, para os legarmos às gerações vindouras; que o Parque da Gorongosa é e será sempre o melhor reduto da fauna em Moçambique; que este Parque, como “Sala de Visitas”, há-de ser motivo de orgulho de todos os moçambicanos quando utilizado na sua verdadeira finalidade (recepção de amigos, exploração turística a nível internacional, manifestações de carácter turístico, cultural e científico, etc.); que o Parque bem organizado, como estão os famosos Parques da Tanzânia, Kénia, Uganda e outros países independentes de África, muito contribuirá para que Moçambique acarrete com preciosas divisas estrangeiras para os seus cofres, como sucede naqueles países, nomeadamente no Kénia onde o turismo deste género fornece uma das principais receitas ao Estado.
Também o futuro governo de Moçambique independente há-de conservar e desenvolver este maravilhoso Parque, construindo nele as necessárias estruturas com vista ao progresso que em todos os sectores se irá verificar em todo o território.
Repetimos: O Parque Nacional da Gorongosa será um dos motivos de orgulho do povo moçambicano e as próprias populações vizinhas, que naturalmente serão respeitadas nos seus direitos, muito virão a beneficiar dele.
Lembra-se aqui, com muita satisfação, que numa das recentes emissões da “Voz da Frelimo”, foi feita referência ao Parque da Gorongosa como sendo “uma mina de Moçambique”. Isto dá-nos a consoladora certeza de que os responsáveis pela futura administração estão absolutamente informados sobre o valor deste Parque e que para o mesmo reservam já um plano de conservação adequado.
É apoiados neste conceito que nós, trabalhadores do Parque, sentimos ânimo e confiança nos futuros governantes e nos propomos dar todo o esforço na tarefa que vai seguir-se.
Pedimos pois a melhor compreensão para o nosso trabalho e o respeito pelas funções que nos atribuíram, sobretudo nesta fase de transição, pois temos a certeza que no futuro não nos faltará uma directriz orientada segundo os melhores interesses da Nação.
Neste momento, em que muitos – ou quase todos – habitantes da região ignoram o valor e a finalidade deste Parque, podem existir alguns ressentimentos contra os nossos guardas e fiscais, por proibirem a caça. Pois ninguém, depois de esclarecido, poderá levar a mal termos cumprido as nossas obrigações. Fazemo-lo pensando sempre no futuro, podendo nesta altura constituir um motivo de orgulho para todos quantos, de uma forma ou outra, contribuíram para legar ao Moçambique Independente tão valioso património, hoje em dia tão importante como os restantes que constituem a riqueza desta Terra.
Queremos prestar este esclarecimento aos nobres soldados da Frente de Libertação de Moçambique, nesta hora do “apertar de mãos”, para que fique inequivocamente conhecida a posição que todos os trabalhadores do Parque Nacional da Gorongosa têm assumido na defesa dos interesses comuns e o seu propósito de continuarem a pugnar pelo património da Nação Moçambicana.
Desfeitas possíveis más interpretações que porventura se tenham arreigado em consequência da falta de esclarecimento sobre a orientação do pessoal ao serviço no Parque Nacional da Gorongosa, todos nós pedimos que seja feita a aproximação. Necessitamos dela para solucionar problemas que presentemente ameaçam a vida do Parque, tais como os relacionados com a repressão à caça dos elefantes praticada por furtivos vindos das cidades, que aproveitando-se da situação confusa praticam as maiores barbaridades para obterem lucros fáceis.
É preciso salvarmos o Parque desses furtivos. É preciso reestruturar rapidamente a fiscalização nos postos ora abandonados por motivos que neste momento já não têm razão de existir.
Para tanto precisamos do auxílio da FRELIMO, a exemplo do que sucede noutros pontos de Moçambique.
Quanto mais tarde entrarmos no bom caminho, da paz e da fraternidade, maiores serão os prejuízos para o património que aqui estamos a defender e consequentemente para a economia da Nação Moçambicana.

CAMARADAS !
A vossa colaboração é urgente. Ajudem-nos a proteger o Parque dos reaccionários, que Aproveitando-se da presente situação não só abatem a caça para negócio como ameaçam destruir os nossos acampamentos.
Temos instalações a defender desses “furtivos”, como seja a Bela-Vista, onde há casas que custaram muito dinheiro e muito trabalho a todos nós.
Pretendemos que todos os acampamentos voltem a ser ocupados tranquilamente por nós próprios, na proporção que era hábito para assegurar a fiscalização das respectivas áreas.
Sem a vossa ajuda, porém, a tarefa é não só difícil como mal interpretada.
Não queremos pegar em armas – as nossas armas habituais são as que utilizamos na defesa contra eventuais ataques de animais – para defender este valioso património. Queremos sim o entendimento, nesta hora de transição, que é a hora em que os homens terão de se conhecer.
Venham pois, camaradas, dialogar sobre a melhor forma de todos unidos garantirmos a continuidade da riqueza e a construção de um Moçambique Novo.
De agora em diante aguardamos a vossa vinda, as vossas mensagens de amizade, os vossos encontros fraternos, para juntos confraternizarmos na paz e traçarmos um novo rumo, uma vida melhor.
Julgamos não terem qualquer dúvida na nossa honestidade e o facto de nunca termos sido guerrilheiros bem atesta a melhor das nossas intenções, embora também estes já tenham deposto as armas e aguardem a união total.
A nossa missão não pode ser confundida e nunca se emiscuiu em problemas da guerra. Servimos sempre a causa da fauna e queremos continuar fieis à mesma.
Apelamos para a vossa compreensão, pois estamos numa luta de interesses paralela à vossa: a luta por Moçambique livre, independente e próspero.
A História há-de registar toda a epopeia destes treze anos de luta heróica para tornar Moçambique independente. Estamos todos crentes que os vindouros acrescentarão nela um capítulo próprio em homenagem aos bravos soldados que ajudaram a salvar o mais belo santuário de caça de todo o Mundo, que é esta nossa – de todos – GORONGOSA.
Aqui os esperamos, camaradas da FRELIMO, no Chitengo ou em qualquer outro ponto do Parque, na certeza que virão na paz, para “darmos as mãos” e resolvermos os nossos problemas.
Assim, todos os trabalhadores do Parque Nacional da Gorongosa vos saúdam e gritam bem alto:

VIVA MOÇAMBIQUE LIVRE!
VIVA A FRELIMO!
VIVA A PAZ E A FRATERNIDADE!

Chitengo, 4 de Agosto de 1974

A COMISSÃO DE TRABALHADORES

Assinados:
1 – Celestino Ferreira Gonçalves, fiscal de caça-chefe
2 – Joaquim Pedro Rato Martins, fiscal de caça de 1ª classe
3 – Pedro David Ernesto Manussos, fiscal de caça de 2ª classe
4 – Lourenço Rodrigues, guarda de Parques, Reservas e Coutadas
5 – Chico Natal Alfredo Candeeiro, motorista
6 – Manuel Chimoio, motorista
7 – Batage Vasco, operador de máquinas
8 – Castigo Mamunanculo, servente de 1ª classe (guarda)
9 – Francisco Pranga, servente de 1ªclasse (guarda)
10 – Alberto Matambo, servente de 1ª classe (guarda)


3 – O ANEXO DA MENSAGEM
O QUE É O PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA
E AS RAZÕES DA SUA EXISTÊNCIA

- Criado há cerca de 40 anos – primeiro como Reserva de Caça – tem o seu coração no vale do rio Urema e Alonga-se às terras vizinhas de Cheringoma e Gorongosa, ocupando uma área de cerca de 4.000 Km2.
- É povoado de uma abundante fauna, onde se destaca uma elevada representação de Elefantes, Hipopótamos, Búfalos, Inhacosos, Zebras, Bois-cavalos, Leões, Impalas, etc..
- É mundialmente conhecido e tornou-se famoso pela beleza natural que encerra e variadíssima fauna que alberga. Os seus Leões constituem autêntico “ex-libris” de Moçambique, pois deixam-se fotografar a escassos metros das viaturas.
- No campo turístico é de longe o principal cartaz de Moçambique.
- No campo científico serve os vários ramos ligados à zoologia, biologia, ecologia, botânica, etc..
- No campo cultural proporciona a divulgação da vida selvagem às camadas estudantis e de todos que nutrem interesse pelos problemas da natureza.
- No campo económico representa uma fonte de receitas em divisas estrangeiras, através da exploração turística e futuramente na venda de animais para jardins zoológicos de todo o mundo.
- É servido por um acampamento central – CHITENGO – onde existem instalações para cerca de 150 turistas.
- Tem diversos outros acampamentos na sua periferia, destinados essencialmente a fiscalização.
- Trabalham no Parque cerca de 130 empregados, entre brancos, mistos e negros (estes em maior número), que executam as diversas tarefas de administração, fiscalização, oficinas, obras, maquinaria e viaturas, arranjo de picadas, manutenção de acampamentos, etc..
- Nos últimos anos de normal funcionamento recebeu em média 26 mil visitantes por ano.
- Tem uma rede interna de picadas com cerca de 500 Km.
- É servido por uma pista para aviões do tipo “táxi aéreo”.
- A ligação rodoviária para o exterior é feita por um ramal de 11 Km. A partir do portão de entrada até à estrada asfaltada Centro-Norte.
- No acampamento do Chitengo existe luz eléctrica fornecida pela rede exterior da SHER.
- No mesmo acampamento há uma estação telégrafo-postal dos CTT, com telefones para o exterior tipo VHF.
- Há uma Escola Primária, Posto de Socorros , Campos de Jogos e duas Piscinas.

Chitengo, 4 de Agosto de 1974

DISTRIBUIÇÃO:
Comandantes e outras autoridades da FRELIMO
da região da Gorongosa e Cheringom
a



4 - IMAGENS HISTÓRICAS



Visita do Governador Geral Arantes e Oliveira em 1964.
A receber a comitiva o Dr. Armando Rosinha e Celestino Gonçalves (atrás à esquerda)



Joaquim Rato Martins (fiscal de caça) e esposa Inês (professora no Chitengo).
Ambos viveram intensamente os problemas de 1974 no Parque.

Castigo Mamunanculo e Batage Vasco, em 2000,
quando visitei o Parque ao fim de 19 anos de ausência. Dois
resistentes de 1974, infelizmente já falecidos.


Jantar de despedida do Luís Fernandes (adjunto do administrador do Parque) e Esposa, Zilda (professora do Chitengo) quando foram de férias em 1974, antes do "25 de Abril". Eles voltariam depois mas por pouco tempo.
As célebres presas de elefante que em 1977 foram transferidas do Parque para o Palácio da Presidência em Maputo e depois para o Museu de História Natural, onde se encontram. Na imagem pode ver-se outro dos resistentes de 1974, Pedro Manussos, também já falecido.
* * *
Novembro, 2007
Celestino Gonçalves