24 July 2009

163 - GORONGOSA - PRIMEIRO ENCONTRO COM A FRELIMO EM 1974


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O PRIMEIRO ENCONTRO DE REPRESENTANTES

DO PARQUE E DA FRELIMO



(PRIMEIRA PARTE)



1– O ENCONTRO


A luta armada que a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) desencadeou durante dez anos (1964/1974), com vista à independência de Moçambique, viria a terminar pouco depois do golpe militar em Portugal em 25 de Abril de 1974, mais concretamente depois de assinado o Acordo de Luzaka em 7 de Setembro do mesmo ano entre representantes do governo de Lisboa e a delegação da Frelimo chefiada pelo seu presidente Samora Moisés Machel.Desde 1970 que a guerra iniciada no norte havia atingido o centro de Moçambique e o Parque Nacional da Gorongosa viria a ressentir-se devido a algumas acções da Frelimo, nomeadamente depois de um ataque intimidativo às instalações do acampamento do Chitengo, em 1973, quando o mesmo estava repleto de turistas. Esta situação levou as autoridades coloniais (civis e militares) a colocar no Parque uma Companhia de tropa portuguesa e um grupo equivalente em número de homens armados sob o comando da Organização Provincial de Voluntários – OPV. A situação de guerra favoreceu a acção dos caçadores furtivos, tanto residentes como idos das cidades e vilas, que abatiam indiscriminadamente os grandes animais, sobretudo elefantes. Logo após o “25 de Abril” tudo se agravou devido à indisciplina reinante nos homens da OPV, também eles predadores dos efectivos dos grandes animais, quer para alimentação quer para negócio da carne e marfim. Os próprios guardas e os trabalhadores do Parque em geral, afectados pela confusão reinante, caíram numa total indisciplina e deixaram de cumprir cabalmente as suas tarefas passando os dias a reivindicar condições impossíveis de satisfazer no momento que se atravessava.


A administração do Parque encontrava-se, nessa altura, desfalcada dos principais responsáveis devido ao pedido de demissão, meses antes, do próprio administrador, o veterinário Dr. Albano Cortês e pela ausência de férias em Portugal do respectivo adjunto, o fiscal de caça Luís Lopes Fernandes. O fiscal de caça Justino Matias, que ficou a substituir o adjunto, tal como o seu colega Manuel João Moedas, tiveram entretanto de ser retirados do Parque porque vinham sendo maltratados e ameaçados de morte pelos homens da OPV, justamente por tentarem opor-se às suas actividades ilegais. Ambos foram substituídos no Chitengo pelos fiscais de caça Pedro Manussos e Joaquim Rato Martins, excelentes profissionais conhecedores do Parque, mas impotentes perante tão caótica situação. A primeira medida para acabar com toda aquela anarquia foi a desmobilização e retirada do grupo da OPV . Assim, em fins de Julho (3 meses após o “25 de Abril”), depois de uma autêntica odisseia que eu próprio vivi como enviado especial do serviços centrais para promover essa diligência, foi possível, com o apoio do comandante das tropas portugueses e dos seus homens instalados no Chitengo, desarmar e retirar os 120 homens e enviá-los para Lourenço Marques, onde haviam sido recrutados e preparados para aquela missão no Parque. Um trabalho que se tornou difícil devido ao facto da retirada do grupo não ter sido decidida nem apoiada pelos altos comandos da OPV. Uma história que está enterrada como tantas outras que ocorreram nesse período do fim da chamada “guerra colonial” e na transição até à independência de Moçambique em 25 de Junho de 1975!


Imediatamente após a saída dos “voluntários”, reuni com os responsáveis e representantes dos trabalhadores do Parque baseados no Chitengo, para uma análise da situação e estudo de medidas a tomar com vista ao futuro do mesmo Parque. Foi resolvido contactar o mais breve possível os responsáveis da Frelimo sediados algures na base da Serra da Gorongosa e na margem esquerda do rio Púnguè, com os quais ainda não tinha havido qualquer ligação. Apenas se dispunha de informações que existiam tais bases e que o comandante da região era um guerrilheiro famoso de nome Cara Alegre. Elaborou-se um documento (mensagem) dirigido aos combatentes da Frelimo, exortando-os a defenderem o Parque e darem apoio imediato aos seus responsáveis para resolução de problemas graves que ali decorriam, tais como a caça furtiva e indisciplina entre os trabalhadores.


Apesar de ter sido redigido a 4 de Agosto, somente a 11 do mesmo mês foi possível entregar tal documento ao comandante Cara Alegre, o que aconteceu através de um grupo de representantes do Parque, que o subscreveram, a saber:- Celestino Ferreira Gonçalves, fiscal de caça-chefe; Joaquim Pedro Rato Martins, fiscal de caça de 1ª classe; Pedro David Ernesto Manussos, fiscal de caça de 2ª classe; Chico Natal Alfredo Candeeiro, motorista; Francisco Pranga, servente de 1ª classe (guarda); Castigo Mamunanculo, servente de 1ª classe (guarda).


O encontro com o famoso comandante da Frelimo ocorreu em Vila Paiva, sede da Circunscrição da Gorongosa (actual vila de Gorongosa) depois de contactos prévios através do comerciante Dário Santos Mosca, desta localidade, pessoa muito conceituada na região e cujas relações com os representantes da Frelimo eram cordiais. Foi a primeira vez que este comandante apareceu em público e se encontrou com as forças vivas, civis e militares, da região, um acontecimento que arrastou uma autêntica multidão de elementos das populações da vila e circunvizinhas que ali acorreram para ver esta figura mítica da luta armada, cuja popularidade ficou bem demonstrada pelas aclamações de que foi alvo à chegada e quando percorreu as ruas da vila. Foi uma autêntica festa, toda ela patrocinada e dirigida pelo comerciante Mosca, que inclusivamente ofereceu comidas e bebidas a centenas de pessoas que encheram literalmente as suas instalações comerciais e a rua fronteira, dando largas à sua alegria cantando e aplaudindo a Frelimo e o comandante Cara Alegre.


Após o primeiro contacto com a população que se concentrara em frente do complexo comercial e industrial de Santos Mosca, o comandante Cara Alegre foi convidado para se dirigir ao quartel militar onde o comandante do batalhão português, tenente coronel Cavaco, acompanhado dos representantes das forças vivas locais e do Parque Nacional da Gorongosa, o recebeu no seu gabinete e lhe dirigiu palavras amigas, retribuídas em tom emocionado por este representante máximo da Frelimo na região da Gorongosa.


A nossa representação teve um acolhimento muito especial da parte daquele combatente, que ouviu com muita atenção a leitura que fizemos da nossa mensagem no momento da cerimónia no gabinete do comandante do batalhão português e agradeceu no final afirmando que a faria chegar ao seu chefe máximo, o presidente Samora Machel. Ali mesmo ficou combinada a sua ida ao Chitengo, dias depois, um convite que aceitou prontamente face às preocupações que lhe transmitimos sobre a situação complicada que se vivia no Parque. Regressados ao Chitengo, no dia seguinte ao memorável encontro de Vila Paiva foi-nos entregue pelos guardas do portão de entrada no Parque uma mensagem escrita a lápis, num papel tosco, que dizia: “O responsável vindo de L. Marques deve apresentar-se no Bué Maria, amanhã de manhã, sem armas nem militares”. Esta mensagem, que não estava assinada e tinha em baixo a palavra “Frelimo” em letras gordas, foi analisada e todo o grupo que esteve na Vila acordou que seria prudente comparecermos. O mesmo não opinou o capitão da Companhia da tropa portuguesa, que nos chamou a atenção para o perigo de se tratar de uma cilada, acrescentando que em caso de sermos raptados ele nada faria pois tinha ordens superiores, face a ocorrências recentes, de não se exporem mais a situações de perigo como essa.


Não obstante a opinião do capitão português, seguimos no dia seguinte de manhã para o Bué Maria, agora com o grupo acrescido de mais dois elementos – Manuel Chimoio, motorista e Alberto Matambo, servente de 1ª classe (guarda) -, utilizando uma viatura em cuja caixa aberta nos acomodamos. No trajecto de cerca de 5 Km entre o portão de entrada do Parque e o Bué Maria, na margem esquerda do rio Púnguè, sempre com a viatura em velocidade moderada, nada aconteceu. Nem vivalma e a sensação que tínhamos é que até os animais, mesmo as aves, haviam desaparecido, tal o silêncio da mata! Chegados ao rio e depois de uma pequena pausa, o Castigo Mamunanculo, o carismático e sensato guarda do Parque, observou com grande convicção que no regresso teríamos de certo o encontro. E não se enganou! A cerca de um quilómetro do rio e logo após uma curva, deparamos com um grupo (cerca de meia dúzia) de combatentes armados no meio da picada. Deram-nos ordens para entrar na mata, colocando um guia à frente e os restantes atrás do grupo. Obedecemos sem trocar qualquer palavra e à medida que nos embrenhávamos para o interior, silenciosos como nos foi ordenado, apenas trocávamos olhares entre os companheiros mais próximos e percebíamos que a intranquilidade se instalara em cada um de nós. A incerteza do que nos esperava e o aspecto severo dos “raptores”, sempre com o dedo no gatilho das Kalasches, não dava para melhor disposição! Finalmente, após cerca de um quilómetro de caminhada (que nos pareceu dez), chegamos junto de outro grupo de combatentes, estes chefiados pelo responsável da base de Bué Maria, o comandante Alfredo Maria, que se apresentava bem vestido de camuflado cinzento esverdeado às pintas, a contrastar com a figura desoladora dos seus subalternos, mal vestidos, esfarrapados e quase descalços! Fomos recebidos com alguma rudeza mas após a resposta que demos à pergunta sobre a situação dos “voluntários” da OPV, tudo se desvaneceu. Ao saber que os famigerados “voluntários” já haviam sido desmobilizados e mandados para a capital, o Alfredo Maria mudou de tom e permitiu o diálogo durante o qual lhe demos conta da situação preocupante do Parque e relatamos o encontro dois dias antes com o comandante Cara Alegre, em Vila Paiva. Entregámos-lhe, também, um exemplar da nossa mensagem à Frelimo e convidámo-lo a estar presente no encontro do Chitengo onde o Cara Alegre também estaria, dois dias depois. Ao fim de meia hora tudo estava esclarecido e já tranquilos despedimo-nos com toda a cordialidade, como novos amigos que auguram excelentes relações no futuro! O Alfredo Maria, ao contrário do Cara Alegre, era pouco comunicativo e todas as suas palavras eram pausadas e revelavam grande dose de autoritarismo, mesmo nos pedidos que nos fez para lhe fornecermos alimentação, fardas e calçado para os seus combatentes. Nesse mesmo dia, à tarde, uma viatura partiu do Chitengo carregada de fardas (calças, camisas, botas, cintos e bonés), material que fora retirado aos “voluntários” na sua desmobilização. Enviamos, também, produtos de alimentação e sabão. No regresso veio a resposta positiva ao convite para o encontro no Chitengo, devendo o Parque mandar viatura para o transporte.


2 – A BANJA NO CHITENGO

No dia aprazado, 16 de Agosto, 2 viaturas do Parque partiram ao alvorecer, uma para a Serra da Gorongosa e outra para o Bué Maria e de lá transportaram para o Chitengo aqueles dois comandantes e os elementos da sua segurança pessoal. O grupo do Bué Maria chegaria muito atrasado em relação ao da Serra e praticamente não participou dos momentos mais significativos das cerimónias de recepção. Ambos os comandantes vinham impecáveis nas suas fardas, naturalmente diferenciadas das dos seus subalternos. O Cara Alegre apresentou-se com um visual bem diferente daquele que usou no encontro de 11 de Agosto em Vila Paiva, agora vestido de camuflado de manchas largas, de confecção exclusiva dos comandantes da Frelimo, com o seu inseparável chapéu de abas largas presas de ambos os lados, óculos escuros, pistola à cinta e do lado esquerdo do peito o emblema da Frelimo. Irradiava boa disposição e simpatia e isso ajudou à descontracção de todos. O Alfredo Maria, também garboso e vestido à imagem do seu colega, deu menos nas vistas até pela sua condição de subordinado ao nível de comando da área da Gorongosa. O Chitengo mobilizou toda a sua capacidade organizativa para este encontro, que não obedecendo a nenhum protocolo das partes primou por receber condignamente os convidados da Frelimo, idos ali pela primeira vez numa situação de paz, embora a paz verdadeira só tivesse sido materializada em 7 de Setembro seguinte, em Luzaka. O comandante das tropas portuguesas instaladas no Chitengo, bem como os seus subalternos, aliaram-se aos funcionários e trabalhadores do Parque nesta recepção e convívio, que decorreu em franca camaradagem e sem ressentimentos de ambas as partes. Coube-me a responsabilidade de anfitrião e apoiado pelos restantes elementos dos grupos que se deslocaram a Vila Paiva e Bué Maria, mobilizamos todos os trabalhadores, tanto do Estado como da Safrique, assim como as suas famílias, para participarem na banja de boas vindas aos convidados.


Antes de se dirigir às massas concentradas em frente do edifício da administração do Parque, o comandante Cara Alegre foi elucidado dos problemas que grassavam e que mais preocupavam os responsáveis, nomeadamente a indisciplina dos trabalhadores e a situação da caça furtiva que nos últimos dois meses se tornara incontrolável. Ele abordou estes temas na banja, dando particular ênfase à questão da indisciplina que, salientou com severidade, era intolerável no seio da Frelimo e como tal, também ali, a partir desse momento, seria severamente punida pela própria Frelimo. As promessas feitas publicamente pelo comandante Cara Alegre, de enviar pessoal armado para iniciar uma guerra sem tréguas aos caçadores furtivos, assim como de um secretário político para consciencializar e disciplinar os trabalhadores, foram cumpridas dias depois. A viragem há muito desejada no Parque iniciou-se no próprio dia da banja, tal o impacto da intervenção deste comandante junto dos trabalhadores! Ao fim de uma semana de acção das brigadas e do secretário político da Frelimo no Parque, a situação era outra. Mais de cem furtivos e outras tantas armas ilegais foram aprisionados e os trabalhadores voltaram às suas tarefas normais, ordeira e disciplinadamente. Uma mudança total que relançou o Parque nas suas actividades normais, incluindo a parte turística.



Graças à eficiência sempre patenteada pela Safrique na sua qualidade de concessionária da parte hoteleira do Parque, foi possível oferecer às delegações visitantes um belo almoço no restaurante do Chitengo. Durante o mesmo e por iniciativa do comandante Cara Alegre, cantou-se o “Vila Morena”, cuja letra este sabia de cor e poucos o puderam seguir senão no entoar da música. Foi o ponto alto desta confraternização que a todos emocionou. Soubemos depois que o Cara Alegre era um excelente músico e havia estado meses antes no encontro mundial da juventude comunista e se encontrara com camaradas portugueses aprendendo com eles a célebre canção de Zeca Afonso que assinalou o golpe militar do “25 de Abril”!


3 – IMAGENS PARA A HISTÓRIA

A chegada do comandante Cara Alegre a Vila Paiva. Junto dele o anfitrião e organizador do encontro, Dário Santos Mosca. Mais atrás o chefe da representação do Parque (autor desta crónica).




O comandante Cara Alegre (centro)
é cumprimentado por um militar do batalhão português instalado na Vila.




Na varanda da pousada da Vila o comandante recebe as boas vindas do comerciante e proprietário Santos Mosca perante as forças vivas e uma grande multidão que o aclamou e à Frelimo.


A apoteótica chegada de Cara Alegre e sua comitiva ao Chitengo.




Na varanda do edifício da administração do Parque dou as boas vindas ao comandante da região militar da Frelimo da área da Gorongosa. À sua direita e à civil o capitão comandante da companhia de tropas portuguesa instalada no Chitengo.


Momento da cerimónia de boas vindas em que o funcionário do Parque, Francisco Pranga, traduzia a intervenção de Cara Alegre.


Aspecto da concentração de pessoas no momento da cerimónia de boas vindas aos representantes da Frelimo no Chitengo.


Mesa principal do almoço oferecido pela SAFRIQUE aos convidados, com Cara Alegre ao centro, o capitão português e esposa à direita e à esquerda Celestino Gonçalves e um comandante subalterno de Cara Alegre.



* * *


(SEGUNDA PARTE)



1 - INTRODUÇÃO


Como fiz menção na primeira parte deste trabalho, constituiu-se no Chitengo, em fins do mês de Julho de 1974, logo após a desmobilização do contingente dos 120 homens da OPV, uma comissão de trabalhadores composta por elementos representativos dos diversos sectores da vida do Parque, para se analisar a situação e estudarem-se medidas adequadas para fazer regressar à normalidade as actividades que se encontravam praticamente paralisadas desde o “25 de Abril”. A administração do Parque, que na altura estava desfalcada dos seus habituais responsáveis, nada podia fazer perante a indisciplina que se instalou no seio dos trabalhadores levados por uns quantos agitadores que se aproveitaram da confusão que a mudança política naturalmente provocou. Os caçadores furtivos encontraram o caminho aberto naquele reino sem controle e até no acampamento de Chitengo se ouviam com frequência os tiros que em pleno dia derrubavam os elefantes! A única medida era pedir auxílio e esse só a FRELIMO, através dos seus comandantes militares, podia dar. Os voluntários da OPV, que ali foram instalados para garantir a actividade turística no Parque e o funcionamentos dos postos de fiscalização, tiveram o pior dos comportamentos ao transformarem-se eles próprios em caçadores furtivos e, pior ainda, hostilizando e agredindo os responsáveis do Parque que os pretendiam impedir de cometer semelhantes transgressões. A companhia da tropa portuguesa, instalada no Chitengo com a finalidade de garantir a segurança dos funcionários e dos turistas visitantes, recolheu os seus homens à caserna e deixou de operar, esperando apenas e ansiosamente, ordens para o seu regresso a Portugal. Vivia-se no Chitengo um clima de incertezas até pela táctica da Frelimo que na região demorou em sair da mata com a desconfiança natural de quem manteve uma guerra tantos anos sem tentativas credíveis para um acordo final em consonância com os seus objectivos. Ficar de braços cruzados a ver os efectivos dos animais mais representativos a diminuírem dia após dia, era uma situação incomportável para um punhado de fieis guardiães do Parque, precisamente aqueles que formaram a comissão e deram a sua contribuição para as medidas a tomar. E estas eram de contactar rapidamente os responsáveis das bases da FRELIMO, que se constava estarem algures na Serra da Gorongosa e na região de Bué Maria. Receava-se contudo que qualquer iniciativa nossa, sem contactos prévios, viesse a ser mal sucedida, pelo que resolvemos procurar a pessoa mais indicada, o conceituado comerciante de Vila Paiva, Dário Mosca. Ele nos disse que iria mandar um emissário à Serra e logo obtivesse resposta do comandante da Base nos contactava. Entretanto amadurecemos a ideia de preparar uma mensagem para mandarmos pessoalmente, por um ou dois trabalhadores que eventualmente se dispusessem a tal missão. Tal documento ficou concluído em 4 de Agosto e dele se fizeram várias cópias, mas voluntários para a arriscada tarefa de entrega não surgiram. Consultados os mais maduros e sensatos, todos estavam muito cépticos quanto à reacção dos combatentes e não aceitaram tal missão. Cerca de uma semana depois do apelo que fizemos ao Mosca recebemos deste, no dia 10, o recado que muito desejávamos. Tinha a promessa do comandante Cara Alegre de visitar a Vila no dia seguinte! E lá estivemos no memorável encontro! Como chefe da delegação e depois de apresentar ao comandante Cara Alegre os companheiros ali presentes, li em voz alta e com a emoção que me acompanhou desde o início da missão no Parque, a mensagem que ele e os presentes escutaram com grande atenção e aplaudiram no final. Este responsável da FRELIMO, que ali prometeu enviar esta mensagem ao seu comandante máximo, Samora Machel, garantiu-me, mais tarde e já em Maputo, que este a recebeu quando estava em Luzaka com a delegação da FRELIMO para a assinatura do acordo com os representantes do governo português – 7 de Setembro de 1974 –, que conduziu Moçambique à independência. Esse documento, que felizmente faz parte do meu arquivo e já resistiu 33 anos por ter sido batido em stencil e copiado com tintas e em papel de pouca qualidade, está mal conservado e não dá reprodução fiel, pelo que a sua cópia foi a solução. Aqui fica, tal como o seu anexo.


2 – A MENSAGEM ENTREGUE À FRELIMO


MENSAGEM DOS TRABALHADORES DO PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA AOS COMBATENTES DA FRELIMO


Prezados camaradas!


Chegou a hora de darmos as mãos para a construção do Moçambique Novo, pelo qual vós lutais há tantos anos de armas na mão! Chegou a hora de reconstruir esta Terra, tão abalada por treze anos de uma guerra contra os governantes colonialistas! O novo governo português, depois de ter demitido aqueles governantes no histórico golpe de Estado de 25 de Abril, abriu já o caminho para a total independência de Moçambique. O General Spínola – novo Presidente de Portugal – no seu memorável discurso de 27 de Julho findo, proclamou o direito dos povos africanos de Moçambique, Angola e Guiné à total independência. Nessa proclamação, disse solenemente:“…………PODEM AGORA OS SOLDADOS DE AMBOS OS LADOS ARRUMAR AS ARMAS E DAREM AS MÃOS PARA EM PAZ CONSTRUIREM UM PAÍS NOVO…..”. Logo após aquela data, em todo o Moçambique, se tem festejado a vitória do seu Povo, conduzido pela FRELIMO ao longo destes anos de luta! O cessar fogo é uma realidade em muitos pontos do território, havendo em muitos lados uma leal colaboração entre as tropas da Frelimo e os soldados portugueses, que retiram as minas das estradas e confraternizam nas próprias bases e aquartelamentos. A guerra acabou finalmente, para bem de todos, porque redundou na mais justa das vitórias: a independência do Povo de Moçambique. Só quem não recebe notícias pode ignorar o que se passa. É preciso que todos saibam: Moçambique é uma Nação Livre! Nesta hora de alegria para o povo moçambicano, todos os trabalhadores do Parque Nacional da Gorongosa, reunidos especialmente para elaboração desta mensagem, vêm manifestar o seu regozijo por ter acabado a guerra e declararem o seu firme desejo de colaborar com o futuro governo moçambicano na reconstrução desta próspera Terra por forma a nela ser erguida a Nação que todos ambicionam.Nesta tarefa, que só é possível na paz, todos nós temos um papel importante. Nós, os homens e mulheres que trabalham no Parque Nacional da Gorongosa, queremos ardentemente participar na obra que vai seguir-se. Dentro da missão que nos compete – zelar pelo património faunístico da Nação – solicitamos a melhor compreensão de todos, camaradas da Frelimo e residentes na região do Parque. Às pessoas menos esclarecidas sobre a verdadeira razão da existência do Parque da Gorongosa, desejamos informar que ele representa uma riqueza da Nação Moçambicana; que essa riqueza pertence ao povo moçambicano em geral e não aos que aqui trabalham; que os animais que aqui protegemos constituem o símbolo dessa riqueza; que é dever de todos nós conservar na Terra os Parques Nacionais onde esteja garantida a continuidade dos representantes de todos os seres vivos, para os legarmos às gerações vindouras; que o Parque da Gorongosa é e será sempre o melhor reduto da fauna em Moçambique; que este Parque, como “Sala de Visitas”, há-de ser motivo de orgulho de todos os moçambicanos quando utilizado na sua verdadeira finalidade (recepção de amigos, exploração turística a nível internacional, manifestações de carácter turístico, cultural e científico, etc.); que o Parque bem organizado, como estão os famosos Parques da Tanzânia, Kénia, Uganda e outros países independentes de África, muito contribuirá para que Moçambique acarrete com preciosas divisas estrangeiras para os seus cofres, como sucede naqueles países, nomeadamente no Kénia onde o turismo deste género fornece uma das principais receitas ao Estado.Também o futuro governo de Moçambique independente há-de conservar e desenvolver este maravilhoso Parque, construindo nele as necessárias estruturas com vista ao progresso que em todos os sectores se irá verificar em todo o território. Repetimos: O Parque Nacional da Gorongosa será um dos motivos de orgulho do povo moçambicano e as próprias populações vizinhas, que naturalmente serão respeitadas nos seus direitos, muito virão a beneficiar dele. Lembra-se aqui, com muita satisfação, que numa das recentes emissões da “Voz da Frelimo”, foi feita referência ao Parque da Gorongosa como sendo “uma mina de Moçambique”. Isto dá-nos a consoladora certeza de que os responsáveis pela futura administração estão absolutamente informados sobre o valor deste Parque e que para o mesmo reservam já um plano de conservação adequado. É apoiados neste conceito que nós, trabalhadores do Parque, sentimos ânimo e confiança nos futuros governantes e nos propomos dar todo o esforço na tarefa que vai seguir-se. Pedimos pois a melhor compreensão para o nosso trabalho e o respeito pelas funções que nos atribuíram, sobretudo nesta fase de transição, pois temos a certeza que no futuro não nos faltará uma directriz orientada segundo os melhores interesses da Nação. Neste momento, em que muitos – ou quase todos – habitantes da região ignoram o valor e a finalidade deste Parque, podem existir alguns ressentimentos contra os nossos guardas e fiscais, por proibirem a caça. Pois ninguém, depois de esclarecido, poderá levar a mal termos cumprido as nossas obrigações. Fazemo-lo pensando sempre no futuro, podendo nesta altura constituir um motivo de orgulho para todos quantos, de uma forma ou outra, contribuíram para legar ao Moçambique Independente tão valioso património, hoje em dia tão importante como os restantes que constituem a riqueza desta Terra. Queremos prestar este esclarecimento aos nobres soldados da Frente de Libertação de Moçambique, nesta hora do “apertar de mãos”, para que fique inequívocamente conhecida a posição que todos os trabalhadores do Parque Nacional da Gorongosa têm assumido na defesa dos interesses comuns e o seu propósito de continuarem a pugnar pelo património da Nação Moçambicana. Desfeitas possíveis más interpretações que porventura se tenham arreigado em consequência da falta de esclarecimento sobre a orientação do pessoal ao serviço no Parque Nacional da Gorongosa, todos nós pedimos que seja feita a aproximação. Necessitamos dela para solucionar problemas que presentemente ameaçam a vida do Parque, tais como os relacionados com a repressão à caça dos elefantes praticada por furtivos vindos das cidades, que aproveitando-se da situação confusa praticam as maiores barbaridades para obterem lucros fáceis.É preciso salvarmos o Parque desses furtivos. É preciso reestruturar rapidamente a fiscalização nos postos ora abandonados por motivos que neste momento já não têm razão de existir. Para tanto precisamos do auxílio da FRELIMO, a exemplo do que sucede noutros pontos de Moçambique. Quanto mais tarde entrarmos no bom caminho, da paz e da fraternidade, maiores serão os prejuízos para o património que aqui estamos a defender e consequentemente para a economia da Nação Moçambicana.

CAMARADAS !

A vossa colaboração é urgente. Ajudem-nos a proteger o Parque dos reaccionários, que aproveitando-se da presente situação não só abatem a caça para negócio como ameaçam destruir os nossos acampamentos.Temos instalações a defender desses “furtivos”, como seja a Bela-Vista, onde há casas que custaram muito dinheiro e muito trabalho a todos nós. Pretendemos que todos os acampamentos voltem a ser ocupados tranquilamente por nós próprios, na proporção que era hábito para assegurar a fiscalização das respectivas áreas. Sem a vossa ajuda, porém, a tarefa é não só difícil como mal interpretada. Não queremos pegar em armas – as nossas armas habituais são as que utilizamos na defesa contra eventuais ataques de animais – para defender este valioso património. Queremos sim o entendimento, nesta hora de transição, que é a hora em que os homens terão de se conhecer. Venham pois, camaradas, dialogar sobre a melhor forma de todos unidos garantirmos a continuidade da riqueza e a construção de um Moçambique Novo. De agora em diante aguardamos a vossa vinda, as vossas mensagens de amizade, os vossos encontros fraternos, para juntos confraternizarmos na paz e traçarmos um novo rumo, uma vida melhor. Julgamos não terem qualquer dúvida na nossa honestidade e o facto de nunca termos sido guerrilheiros bem atesta a melhor das nossas intenções, embora também estes já tenham deposto as armas e aguardem a união total. A nossa missão não pode ser confundida e nunca se emiscuiu em problemas da guerra. Servimos sempre a causa da fauna e queremos continuar fieis à mesma. Apelamos para a vossa compreensão, pois estamos numa luta de interesses paralela à vossa: a luta por Moçambique livre, independente e próspero. A História há-de registar toda a epopeia destes treze anos de luta heróica para tornar Moçambique independente. Estamos todos crentes que os vindouros acrescentarão nela um capítulo próprio em homenagem aos bravos soldados que ajudaram a salvar o mais belo santuário de caça de todo o Mundo, que é esta nossa – de todos – GORONGOSA. Aqui os esperamos, camaradas da FRELIMO, no Chitengo ou em qualquer outro ponto do Parque, na certeza que virão na paz, para “darmos as mãos” e resolvermos os nossos problemas. Assim, todos os trabalhadores do Parque Nacional da Gorongosa vos saúdam e gritam bem alto:

VIVA MOÇAMBIQUE LIVRE!

VIVA A FRELIMO!

VIVA A PAZ E A FRATERNIDADE!


Chitengo, 4 de Agosto de 1974

A COMISSÃO DE TRABALHADORES - Assinados: 1 – Celestino Ferreira Gonçalves, fiscal de caça-chefe; 2 – Joaquim Pedro Rato Martins, fiscal de caça de 1ª classe; 3 – Pedro David Ernesto Manussos, fiscal de caça de 2ª classe; 4 – Lourenço Rodrigues, guarda de Parques, Reservas e Coutadas; 5 – Chico Natal Alfredo Candeeiro, motorista; 6 – Manuel Chimoio, motorista; 7 – Batage Vasco, operador de máquinas; 8 – Castigo Mamunanculo, servente de 1ª classe (guarda); 9 – Francisco Pranga, servente de 1ªclasse (guarda); 10 – Alberto Matambo, servente de 1ª classe (guarda).




3 – O ANEXO DA MENSAGEM



O QUE É O PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA E AS RAZÕES DA SUA EXISTÊNCIA


- Criado há cerca de 40 anos – primeiro como Reserva de Caça – tem o seu coração no vale do rio Urema e alonga-se às terras vizinhas de Cheringoma e Gorongosa, ocupando uma área de cerca de 4.000 Km2.- É povoado de uma abundante fauna, onde se destaca uma elevada representação de Elefantes, Hipopótamos, Búfalos, Inhacosos, Zebras, Bois-cavalos, Leões, Impalas, etc..- É mundialmente conhecido e tornou-se famoso pela beleza natural que encerra e variadíssima fauna que alberga. Os seus Leões constituem autêntico “ex-libris” de Moçambique, pois deixam-se fotografar a escassos metros das viaturas.- No campo turístico é de longe o principal cartaz de Moçambique.- No campo científico serve os vários ramos ligados à zoologia, biologia, ecologia, botânica, etc..- No campo cultural proporciona a divulgação da vida selvagem às camadas estudantis e de todos que nutrem interesse pelos problemas da natureza.- No campo económico representa uma fonte de receitas em divisas estrangeiras, através da exploração turística e futuramente na venda de animais para jardins zoológicos de todo o mundo.- É servido por um acampamento central – CHITENGO – onde existem instalações para cerca de 150 turistas.- Tem diversos outros acampamentos na sua periferia, destinados essencialmente a fiscalização.- Trabalham no Parque cerca de 130 empregados, entre brancos, mistos e negros (estes em maior número), que executam as diversas tarefas de administração, fiscalização, oficinas, obras, maquinaria e viaturas, arranjo de picadas, manutenção de acampamentos, etc..- Nos últimos anos de normal funcionamento recebeu em média 26 mil visitantes por ano.- Tem uma rede interna de picadas com cerca de 500 Km.- É servido por uma pista para aviões do tipo “táxi aéreo”.- A ligação rodoviária para o exterior é feita por um ramal de 11 Km. a partir do portão de entrada até à estrada asfaltada Centro-Norte.- No acampamento do Chitengo existe luz eléctrica fornecida pela rede exterior da SHER.- No mesmo acampamento há uma estação telégrafo-postal dos CTT, com telefones para o exterior tipo VHF.- Há uma Escola Primária, Posto de Socorros , Campos de Jogos e duas Piscinas.


Chitengo, 4 de Agosto de 1974


DISTRIBUIÇÃO:Comandantes e outras autoridades da FRELIMO da região da Gorongosa e Cheringoma.



4 - IMAGENS HISTÓRICAS




Visita do Governador Geral Arantes e Oliveira em 1964.
A receber a comitiva o Dr. Armando Rosinha e Celestino Gonçalves (atrás à esquerda)




Joaquim Rato Martins (fiscal de caça) e esposa Inês (professora no Chitengo).
Ambos viveram intensamente os problemas de 1974 no Parque.


Castigo Mamunanculo e Batage Vasco, em 2000,
quando visitei o Parque ao fim de 19 anos de ausência. Dois
resistentes de 1974, infelizmente já falecidos.




Jantar de despedida do Luís Fernandes (adjunto do administrador do Parque) e Esposa, Zilda (professora do Chitengo) quando foram de férias à Metrópole em Janeiro de 1974, antes do "25 de Abril".




As célebres presas de elefante que em 1977 foram transferidas do Parque para o Palácio da Presidência em Maputo e depois para o Museu de História Natural, onde se encontram. Na imagem pode ver-se outro dos resistentes de 1974, Pedro Manussos, também já falecido.


* * *
Novembro, 2007
Celestino Gonçalves


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NOTA FINAL
Esta crónica foi publicada em 2007 nos sites:
Voltamos a publicar este trabalho uma vez que o anterior se perdeu nos fundos destes Blogues e ficaram despojados das respectivas fotografias.


Novembro de 2009

Celestino Gonçalves


1 comment:

Unknown said...

Eu tenho um manuscrito do comandante cara alegre exactamente desse agosto relatado. Um pequeno bilhete manuscrito e assinado pelo cara alegre.