25 July 2007

24 - RECORDANDO OS CAÇADORES GUIAS DA ÉPOCA DE OURO DOS SAFARIS EM MOÇAMBIQUE


HARRY MANNERS
Caçador Guia e um dos mais famosos caçadores de elefantes de Moçambique

(10)

HARRY MANNERS terá sido o melhor caçador de elefantes de Moçambique de todos os tempos! Muitos observadores assim o afirmaram, mas eu prefiro classificá-lo como um dos melhores. Aliás, é assim que penso em relação a todos os outros dos chamados “grandes” que conheci pessoalmente ou de quem ouvi falar e, tal como o Harry Manners, foram extraordinários caçadores não só de elefantes como de toda a chamada caça grossa. Este princípio de não alinhar na definição de “melhor caçador” assenta no facto de se tratar de um juízo de valor com elevado risco de erro, já que tal designação por norma surge de fama propagada a partir do próprio, de amigos, ou de pessoas que ouvem as histórias por vezes mirabolantes das caçadas quase sempre associadas a actos de valentia ou a grande número de animais abatidos pelo caçador, com destaque para elefantes, leões e búfalos. Por outro lado, também coloco reticências em certos livros, nomeadamente os de cariz autobiográfico onde os autores se colocam como arautos da modalidade, menosprezando ou simplesmente esquecendo os outros que fizeram o mesmo ou melhor que eles.

Houve sem dúvida em África caçadores famosos, conhecidos por “White Hunters”, muitos deles biografados em livros de memórias. Nomes como Frederick Selous, John Hunter, Allan Black, Bill Judd, Fritz Schindelar, Leslie Simpson e Karamojo Bell, são referências lendárias que actuaram em finais do século dezanove e princípio do século vinte nos territórios sob domínio inglês e alemão e cujas histórias continuam a fascinar qualquer pessoa que gosta da caça grossa africana. Em Moçambique houve também nomes que se notabilizaram para além do Harry Manners, como o famoso John Taylor (Pondoro), Gustave Guex, Wally Johonson, Werner Alvensleben, Pierre Maia, Manuel Nunes, José Afonso Ruiz, Virgílio Garcia, Daniel Roxo, etc.

A actividade de caça em África, como profissão, não era propriamente um acto de desporto como muitos pretendiam fazer crer. Era sim um trabalho muito duro e arriscado que não envolvia qualquer tipo de competição. O caçador actuava normalmente longe das vistas de outros concorrentes e a sua equipa limitava-se ao pessoal auxiliar (pisteiros e carregadores), pelo que toda a sua actividade raramente era conhecida por estranhos. Em Moçambique – e julgo que no resto do continente africano - jamais algum caçador, profissional ou amador, foi avaliado através de parâmetros ou escalas de valor apropriados. Quando muito – e isso era também uma tarefa nossa, da fiscalização - ajuizava-se o valor de cada um em função dos resultados das suas campanhas de caça, do respeito que tinham pelas leis da caça, pela forma como colaboravam na luta contra a caça furtiva e pelo apoio que davam às populações nativas defendendo-as dos animais perigosos ou daninhos quando invadiam as suas culturas alimentares ou atacavam as pessoas.

O Harry Manners foi, sem dúvida, um dos caçadores mais conhecidos em Moçambique, durante mais de três décadas (1940/1975) e ninguém duvida que foi dos mais consagrados que actuou neste país. Foi ele quem abateu, na década de 40, o elefante com as maiores presas registadas no território, com cerca de 80 Kg cada e que são as terceiras maiores a nível mundial. A história dessas célebres presas é muito curiosa e teve ao longo de vários anos algumas versões contraditórias depois que foram localizadas na cidade da Beira em 1964. Não havia, na altura, qualquer referência sobre a sua origem, mas porque se tratava de troféus de grandes proporções que excediam todos os que eram conhecidos, os Serviços da Fauna Bravia, através do Dr. Armando Rosinha, então chefe da Repartição de Veterinária de Sofala (Beira), evitaram que o seu destino fosse a exportação para Hong Kong, o caminho de todo o marfim de Moçambique. Do armazém do comerciante Serra Campos, que era fiel depositário das presas por fazerem parte de um processo de falência que corria no tribunal contra um outro comerciante (indiano) da Beira, este valioso espólio foi transferido para o Museu da Beira a cargo da Câmara Municipal. Nesse mesmo ano (1964) foram levadas à Exposição Mundial de Caça em Itália onde foram muito admiradas no pavilhão de Moçambique. Regressadas desta exposição o então director do Parque Nacional da Gorongosa, Dr. Silva e Costa, que fora o responsável da representação moçambicana, obteve a permissão de tais presas ficarem no recém criado Museu do mesmo Parque e ali permaneceram até 1977, altura em que o arquitecto responsável pela decoração do Palácio da Presidência da República (Moçambique era já independente desde 1975) procurou junto dos Serviços da Fauna (curiosamente chefiados na altura pelo Dr. Armando Rosinha) um par de presas de elefante com dimensões e beleza significativas para serem colocadas em lugar de destaque na residência oficial do presidente Samora Machel. Pela segunda vez o Dr. Rosinha foi protagonista no destino das presas mandando transferi-las da Gorongosa para Maputo. Chegadas ao Palácio o arquitecto julgou-as incompatíveis com a decoração pretendida devido ao seu grande tamanho e, de novo, recorreu aos Serviços da Fauna para uma outra alternativa. Solucionado o problema com um par de presas mais adequadas e que já existiam nos Serviços em Maputo, mais uma vez (a terceira) o Dr. Rosinha interveio no destino das grandes presas sugerindo ao presidente Samora Machel que as mesmas fossem entregues ao Museu de História Natural.

A controvérsia sobre a origem destas presas manteve-se até finais dos anos 90, altura em que, pela última vez, o Harry Manners visitou Maputo e confirmou, junto do director do Museu, Dr. Augusto Cabral, que aquelas eram as pontas do elefante que abatera no norte de Moçambique na década de 40 e depois vendera a um comerciante da Beira. Na altura o autor do abate do grande elefante exibiu uma fotografia tirada junto das presas pouco antes da sua venda, ajudando assim à sua identificação e ao desvanecimento das dúvidas que ainda pudessem existir.

Quando visito o Museu de História Natural em Maputo e admiro aqueles dois preciosos troféus, sinto que também eu participei no seu destino pois na altura em que os mesmos foram levados à exposição de Itália, em 1964, encontrava-me a coadjuvar o director do Parque Nacional da Gorongosa e participei na organização e envio dos troféus representativos de Moçambique. Tive a feliz ideia de fazer um seguro especial para as presas de elefante e isso valeu a sua protecção por parte da seguradora internacional, à chegada, durante a permanência na exposição e no reenvio a Moçambique. O Dr. Silva e Costa louvou esta minha iniciativa quando no regresso de Itália me disse que não fora a protecção dada pela seguradora e provavelmente as presas teriam sido roubadas, tal a cobiça de que foram alvo na exposição!



O Harry Manners com o seu amigo e também caçador profissional Werner Alvensleben, junto do célebre elefante abatido em Moçambique na década de 40 e cujas presas, de grandes proporções, se encontram no Museu de História Natural de Moçambique, em Maputo.

O célebre par de presas de elefante antes da sua transferência do Museu do Parque Nacional da Gorongosa em 1977, para o seu primeiro destino depois da independência de Moçambique

Em finais dos anos 90, pouco antes do seu falecimento na África do Sul, o Harry Manners tirou esta foto em Maputo ao lado do caçador guia Sérgio Veiga. A foto que ele exibe mostra as famosas presas pouco antes de as ter vendido a um comerciante da Beira, nos anos 40.

O destino final dos preciosos troféus - o Museu de História Natural de Moçambique.
O director do Museu, Dr. Augusto Cabral (à esquerda com o autor nesta foto tirada em Março de 2005), projectou e executou este belo trabalho de enquadramento na parede frontal de acesso ao primeiro andar do
Museu.

* * *


NOTA: Texto e fotos extraídos do Álbum 14 publicado em Setembro de 2005 na Website www.geocities.com/Vila_Luisa, onde constam mais elementos biográficos sobre o H. Manners. Pede ser visto AQUI:

Marrabenta, Julho de 2007

Celestino Gonçalves


16 July 2007

23 - RECORDANDO OS CAÇADORES GUIAS DA ÉPOCA DE OURO DOS SAFARIS EM MOÇAMBIQUE





AUGUSTO LUIS DOS SANTOS
(Caçador Guia)

e
MARIA ISABEL SANTOS
(Caçadora Desportista)



Na foto o casal Santos, em 1968, junto de um búfalo abatido pela Maria Isabel na região do Guro



1 – UMA ACTIVIDADE ALICIANTE


O continente africano - o berço da humanidade - sempre foi a região do globo mais fértil em animais selvagens, muitos deles cobiçados pelo valor dos seus troféus, das suas peles e da sua carne.
Com a colonização dos territórios de África por parte dos europeus, sobretudo a partir do século dezanove quando surgiram as primeiras armas adequadas ao abate dos grandes animais, apareceram os chamados aventureiros que se dedicaram exclusivamente à caça, atraídos nomeadamente pelo valor do marfim de elefante, na época uma espécie muito abundante praticamente em todo o continente.
Ficaram na história nomes de caçadores famosos que foram motivo de inspiração de sucessivas gerações de praticantes desta arrojada e apaixonante profissão. Eles eram conhecidos por “White Hunters” (caçadores brancos), designação que chegou aos nossos dias mas que acabaria por cair em desuso devido às mudanças políticas entretanto surgidas com a independência dos países africanos. A palavra “White” foi abolida passando os caçadores a ser genericamente designados por “Professional Hunters”, não obstante serem ainda, na actualidade, de raça branca a esmagadora maioria dos caçadores guias que conduzem os safaris de caça em África. Uma situação bem enganadora da real capacidade dos negros como caçadores, mas justificada pelo facto de se tratar de uma profissão tradicionalmente exercida por brancos e que ainda hoje conserva o mito deixado pelos tais famosos “White Hunters”, à volta do qual os clientes se inspiram e encontram a confiança para enfrentar os grandes e perigosos animais da selva africana.
Esta realidade, aliás, tem sido aceite com alguma naturalidade pelos países africanos onde a indústria do turismo cinegético continua a ser praticada, destacando-se de entre eles a Tanzania, onde várias organizações se dedicam aos safaris de caça. Muito recentemente, uma das maiores empresas ali radicadas – a Tanganyika Wildlife Safari – divulgou no seu panfleto anual de promoção de safaris os nomes e fotografias dos seus caçadores guias, em número de vinte, e, todos eles, eram brancos, quase todos famosos no ranking mundial da caça em África, destacando-se o conhecido português nascido em Moçambique, Luís Pedro de Sá e Mello (1), designado pelo International Safari Clube, na época venatória de 2003, um dos melhores “Professional Hunters” deste continente.
Na primeira metade do século vinte muitos desses aventureiros afluíram ao território de Moçambique onde encontraram condições extraordinárias para exercerem a caça ao elefante, uma actividade que até era facilitada pelas próprias autoridades coloniais pelo facto destes animais serem considerados daninhos, havendo inclusivamente leis que estabeleciam prémios pelo seu abate em determinadas zonas do território.
Nas décadas de quarenta e cinquenta, esta actividade estendia-se praticamente a todo o território da colónia, contando-se por alguns milhares as licenças que nos últimos anos deste período eram emitidas pelos serviços do Estado que controlavam a fauna bravia, no caso Comissões Provincial e Distritais de Caça.
Atraídos pelo lucro fácil e, também, em muitos casos, movidos pelo espírito de aventura, muitos jovens abandonaram por essa altura as suas carreiras para se dedicarem a esta profissão. Alguns deles, quando a chamada caça profissional foi abolida e foi criada a caça turística, em 1960, acabaram por se tornar caçadores-guias, conduzindo safaris de caça nas coutadas oficiais então criadas. Foi uma alternativa que abrangeu apenas um limitado número de caçadores, tanto pela reduzida capacidade das novas empresas operadoras de safaris, mas também pelo rigor do estatuto desta profissão (Regulamento do Caçador-Guia) que continha um conjunto de exigências, sobretudo do ponto de vista técnico e físico, assim como falar línguas estrangeiras e ter conhecimentos de enfermagem e de pronto socorro.



2 – O PERCURSO DO LUÍS SANTOS


Nascido na cidade da Beira a 6 de Outubro de 1932, o LUIS SANTOS passou a sua juventude na propriedade agrícola que seus pais possuíam em pleno coração do planalto de Chimoio, província de Manica, centro/oeste de Moçambique, uma fazenda de grandes dimensões circundada de florestas e savanas ricas em animais selvagens de pequeno, médio e grande porte, com destaque para os antílopes (elandes, cudos, palapalas e changos), para os dois grandes felinos (leões e leopardos) e outra fauna menor como facoceros, cabritos, lebres, hienas, babuínos, macacos, perdizes, etc,. Não muito longe, nas margens do rio Púnguè, para além destas espécies abundavam ainda outras comuns da região centro de Moçambique, como elefantes, búfalos, zebras, impalas, bois-cavalo, inhacosos, inhalas e, até, rinocerontes. O próprio rio Púnguè era fértil em hipopótamos e crocodilos.
Dividindo o tempo nas lides agrícolas com o pai e nos estudos no colégio de Nª Srª dos Anjos, na Beira, onde fez os estudos primários e secundários, ele aproveitava todos os momentos livres para caçar, tendo-se iniciado nestas lides muito jovem ainda. Começou pelos pequenos animais (galinhas, lebres, pombos verdes, rolas, perdizes, cabritos, etc,) que facilmente se encontravam a escassas centenas de metros da sua casa e à medida que avançava na idade e podia utilizar as armas mais potentes que faziam parte do armeiro do pai foi-se aventurando em incursões venatórias pelas áreas limítrofes e progressivamente foi abatendo exemplares de praticamente todas as espécies de caça grossa, à excepção do rinoceronte.
Foi seu mestre e companheiro inseparável um dos trabalhadores da fazenda, de nome Jambo, um negro que lhe ensinou não só as artes de caça como os segredos de sobrevivência na selva face às privações ocasionais como a fome e a sede e até como recorrer a certas raízes e folhas de plantas para tratamentos de emergência em casos de indisposições repentinas, febres, ferimentos e mordeduras de cobras. Ao longo da sua carreira o Jambo acompanhou-o sempre como pisteiro, uma das principais tarefas de que depende o sucesso das caçadas.

Quando atingiu os 18 anos, o Luís Santos tirou a sua primeira licença de caça de 1ª classe, o “passaporte” que lhe permitiu conhecer novos horizontes. A partir daí todo o tempo livre durante o período venatório era passado na caça em áreas como Marromeu, Chemba, Sena, Dombe, Chibabava e outras regiões de Manica e Sofala compreendidas entre os rios Save e Zambeze.
Entretanto, a carreira de topógrafo que seguiu após ter terminado o ensino secundário e que vinha desenvolvendo na Força Aérea (Base nº 10 da Beira), com passagens anteriores pela Brigada de Fomento e Povoamento do Revuè e pelo Colonato do Sussundenga, tornava-se cada vez mais penosa e monótona à medida que as suas experiências de caça aumentavam. Aos 25 anos deixou para trás essa carreira e tornou-se caçador profissional, dedicando-se, numa primeira fase (1957/1958) à caça de crocodilos no rio Zambeze e depois à chamada caça grossa que na altura proporcionava bons rendimentos com a venda da carne, peles e marfim.
Para além dos seus vastos conhecimentos da vida selvagem e de possuir grande experiência como caçador de espécies como leões (abateu o seu primeiro aos 15 anos), leopardos, elefantes, búfalos, hipopótamos, crocodilos e toda a espécie de antílopes, o Luís Santos reunia outras qualidades que tornavam o seu currículo invejável e dos mais ajustados às condições exigidas para caçador guia. Falava duas línguas estrangeiras das mais utilizadas nesta profissão (inglês e espanhol), dominava as línguas locais chissena, chindau, chinyungue e chiraparapa e possuía prática de enfermagem e de primeiros socorros com cursos tirados na Cruz Vermelha, onde trabalhou como voluntário.
Entusiasmado com os sucessos obtidos pelos seus colegas durante os primeiros dois anos de safaris e também pela motivação que lhe foi incutida pelo seu amigo de infância e colega de caça, de nome Janak, filho de gregos também agricultores radicados em Maforga, perto de Vila Pery (actual Chimoio) e um dos primeiros caçadores-guias de Moçambique que iniciaram os safaris nas coutadas oficiais criadas em 1960, o Luís acabou por ingressar, em 1963, na organização Simões Safaris (2), na altura concessionária de três das melhores coutadas da província de Manica e Sofala (nºs 6, 7 e 10).



O Luís Santos com os seus pisteiros junto de um elefante abatido na coutada 1, em 1964.



O Luís posando junto de presas de elefantes abatidos por clientes que ele e outro colega conduziram num safari em Kanga N'Thole, em 1964



Junto de um belo exemplar de Kudu


A Isabel com o produto de uma caçada bem sucedida


NOTA: Texto e fotos extraídos da biografia que publiquei em Outubro de 2004 no Álbum de Recordações do meu site http://www.geocities.com/Vila_Luisa. Pode ser visto directamente e na íntegra AQUI:

Marrabenta, Julho de 2007

Celestino Gonçalves

12 July 2007

22 - RECORDANDO OS CAÇADORES GUIAS DA ÉPOCA DE OURO DOS SAFARIS DE CAÇA EM MOÇAMBIQUE


ADELINO SERRAS PIRES

(Caçador, industrial de turismo e promotor de Safaris)
Aos 75 anos, um semblante marcado por muitas desilusões!


Adelino Serras Pires foi dos caçadores mais polémicos que conheci em Moçambique!
Senhor de uma personalidade invulgar, o seu relacionamento com as pessoas funcionava em função dos pontos de vista que cada um defendia. Ele era ( e ainda é), um homem frontal e cheio de convicções. Exigia de si próprio e dos seus subordinados grande disciplina e rigor no trabalho, criticando sempre aqueles que não cumpriam estes parâmetros. Discordar dos seus pontos de vista era, à partida, um desafio ao desentendimento e isso afastou muita gente do seu caminho, incluindo alguns colegas de profissão.
Também não era fácil o seu relacionamento com as autoridades coloniais, que criticava com frequência a propósito de abusos de poder, favorecimentos e outras injustiças sociais. Isso causava-lhe, como se calcula, muitos dissabores.

Tornou-se muito conhecido não só no mundo da caça como no meio comercial e turístico da região centro de Moçambique. Esteve ligado, entre outras actividades, à empresa familiar que se dedicava ao comércio e agricultura nas regiões de Tete e Guro; era sócio de uma Agência de Turismo na cidade da Beira, que foi uma das pioneiras da indústria do turismo cinegético em Moçambique como concessionária de uma coutada oficial e tinha também a concessão hoteleira do Parque Nacional da Gorongosa. Em meados da década de 60 atingiu o seu ponto alto na indústria dos safaris de caça fazendo parte da direcção técnica e da própria administração da Sociedade de Safaris de Moçambique (SAFRIQUE), cargo que exerceu até fins de 1973, altura em que esta empresa decidiu encerrar as suas coutadas devido à acção das guerrilhas. Em 1974 dirigiu os safaris da Moçambique Safarilândia, outra conceituada empresa do turismo cinegético em Moçambique que tinha a concessão da Coutada oficial nº 5 e do Parque Nacional do Zinave, junto das margens do rio Save.

Ele lutou denodadamente pela reactivação das coutadas de Manica e Sofala, após o 25 de Abril de 1974, conseguindo acordos com os comandantes locais da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), mas a política imposta pelos novos governantes relativamente à caça não permitiram continuar os safaris em Moçambique.

Conheci este homem no início da época de caça de 1963, quando fui designado para supervisionar o safari oficial dos Marqueses de Villaverde, de Espanha, que foram a Moçambique como convidados do Presidente da República Portuguesa. Este safari decorreu nas Coutadas de Manica e Sofala e teve início na Coutada 9 que estava concessionada precisamente à Agência de Turismo da Beira, de que o Adelino era sócio gerente. Esta Coutada situa-se na região do Guro, a cerca de 450 quilómetros da Beira, onde a família Serras Pires possuía uma quinta agrícola e lojas comerciais.

O Adelino e o José Simões (1) foram os organizadores do safari e guias principais dos quatro elementos da comitiva dos Marqueses, secundados por outros caçadores guias, nomeadamente Carlos Costa Neves, Luís Santos, Mariano Ferreira, Francisco Coimbra e Victor Cabral. O safari foi um sucesso e teve cobertura jornalística especial, sendo por isso muito divulgado no estrangeiro, sobretudo em Espanha.


Os Marqueses de Villaverde e seus acompanhantes (o financeiro Eduardo Aznar e esposa Loli ), voltaram no ano seguinte para novo safari. O Adelino foi novamente um dos guias principais, repetindo-se o sucesso do ano anterior. Fomos de novo companheiros nesta missão e entre nós ficou uma amizade bem sólida!

O sucesso destes safaris, aliado a outros igualmente bem sucedidos noutras coutadas de Manica e Sofala, Inhambane e Gaza, em que participaram individualidades da alta finança, escritores, artistas de cinema e outros famosos coleccionadores de troféus, foi rapidamente conhecido praticamente em todo o mundo. Moçambique passou, em consequência disso, a ser procurado por muitos caçadores turistas, nomeadamente de Espanha e dos Estados Unidos da América. A partir daí os calendários dos promotores de safaris passaram a estar preenchidos, com reservas de um e mais anos de antecedência!




O Adelino (direita), com o astronauto americano Stuart Roosa, comandante da Apollo 14, junto de uma palapala abatida na coutada 6, em 1971

O Adelino (direita) com o astronauta americano Charles Duke Jr., da Apollo 16, numa foto recente na sua casa em Pretória. Este famoso personagem foi um dos 12 homens que pisou a Lua e também ele efectuou um safari de caça com o Adelino, em 1973, em Moçambique.

* * *

NOTA - O texto e as duas primeiras fotos acima constam da primeira parte da pequena biografia do Adelino Serras Pires que publiquei em Outubro de 2003, no Álbum de Recordações do meu site www.geocities.com/Vila_Luisa/. Pode ser vista AQUI: A terceira foto foi publicada por António Pina, em 1 do corrente mês, na beira@groups.msn.com , com a notícia (e mais outra foto) da visita do casal Duke ao casal Serras Pires, em Pretória, em finais de Junho último. VER AQUI:

Marrabenta, Julho de 2007

Celestino Gonçalves

09 July 2007

21 - LIVROS SOBRE FAUNA BRAVIA, CAÇA E CAÇADORES DE MOÇAMBIQUE

(6)
Título

SEM ARMAS NO MEIO DAS FERAS
- A VIDA NA SELVA -

Autor: Felix Bermudes

Editora: Livraria Bertrand - Lisboa
Ano: 1959

O Autor
1 - SOBRE O AUTOR
As gerações dos dois primeiros quarteis do século passado, particularmante as mais atentas ao desporto, conheceram bem este famoso poeta, prosador, comediógrafo, desportista e teósofo, autor de várias obras com destaque para a poesia, a prosa e teatro (escreveu e adaptou 105 peças de teatro).

Mas foi como desportista que Félix Bermudes mais se notabilisou, praticando várias modalidades como hipismo, futebol, remo, ciclismo, ginástica, atletismo, esgrima, ténis, alpinismo e tiro. Foi campeão nacional, por várias vezes, em algumas destas modalidades.

Foi fundador do Sport Lisboa e Benfica, de cuja primeira equipa de futebol foi jogador e capitão. Mais tarde seria, por muitos anos, presidente da direcção deste que é o maior clube português, cargo onde granjeou enorme popularidade.

Efectuou duas viagens a Moçambique, em 1956 e 1957, tendo nessas duas ocasiões permanecido vários dias na Gorongosa, na altura ainda com o estatuto de Reserva de Caça. Este lugar fascinou-o de tal maneira que sobre ele escreveu este precioso livro, um autêntico hino ao famoso santuário de fauna bravia considerado naquela época o melhor de África. As narrativas dessas excursões e as observações ali contidas, constituem um dos melhores documentos elaborados durante a época colonial sobre o Parque Nacional da Gorongosa e que contribui, na actualidade e no futuro, para se conhecer a sua história e naturalmente para se elaborarem e concretizarem projectos de reabilitação que conduzam ao equilíbrio eco-biológico dos ecossistemas ricos que albergavam e sustentavam uma fantástica fauna que foi dizimada devido às guerras que grassaram no país de 1964 a 1992.

Exemplos flagrantes dos importantes dados históricos focados no livro são os respeitantes às grandes manadas de animais que povoavam as savanas e planícies (o autor teve o privilégio de observar uma das maiores, se não a maior, manadas de búfalos de África, com cerca de 5.000 exemplares); fotografou milhares de hipopótamos no rio e lago Urema; presenciou a ocupação do acampamento do Sungué por grupos de leões e fotografou-os dentro, em cima e ao lado do edifício que fora o restaurante (seis deles sobre o telhado).


Ali começava o mar de búfalos...
Hipopótamos que fazem sala de estar...


Seis leões em cima do telhado...


2 - SOBRE O LIVRO

Este pequeno livro, de apenas 91 páginas, constitui, como acima se disse, um valioso documento histórico sobre o Parque Nacional da Gorongosa. Não resistimos em reproduzir o capítulo "O Solar dos Leões", para recordar aquele maravilhoso espectáculo tal como foi visto por este insigne escritor:

"A mais elementar das lógicas parecia aconselhar, na organização de uma Reserva de animais selvagens, que todos os serviços do acampamento fossem instalados no centro do território. Demonstrou, porém, a experiência que a lógica, às vezes, não passa duma batata. O movimento diário das funções administrativas e hoteleiras, agravado com o turismo, acabou por tornar tão familiares as próprias feras, que ameaçavam transformá-las em bichos de capoeira, capazes de vir comer à mão. Era preciso que os animais se deixassem ver a boa distância, mas seria incoerente e decepcionante ter de lhes pedir licença para passar.
Reconheceu-se, portanto, que se tornava imperativo transferir o acampamento para a entrada do território mais próxima da cidade da Beira. Com actividade e zelo, aproveitando os ensinamentos da experiência, foi construído o acampamento actual e abandonado o primeiro. Logo uma família de sete leões tomou posse de todos os recintos, incluindo o terraço do restaurante de que fizeram solário. Aprenderam, não se sabe como, a servir-se da escada exterior. em caracol. Arvoraram o interior das casas em abrigos, alcovas e maternidades e passaram a organizar uma vida citadina. O mercado é ali à beirinha, o próprio "tando", onde dezenas de milhar de antílopes se oferecem à escolha do freguês. Outros leões se foram juntando à primeira família, para usufruirem todo este conforto de civilização, e quando lá fui pela primeira vez já o burgo comportava mais de trinta.
Hoje, o antigo acampamento é um dos atractivos mais aliciantes do programa turístico da Reserva e constitui romagem obrigatória dos visitantes.
As fotografias tomadas neste bairro leonino fornecem-nos as cenas mais inéditas e mais inesperadas: um leão à janela (fig.1); uma leoa com as patas traseiras a sair duma porta e as dianteiras a entrar noutra (fig.2); leões estirados nas soleiras das portas (fig.3). Mas o espectáculo mais inacreditável a que jamais assistimos e àvidamente focámos na câmara, foi o de seis leões em cima do telhado (fig.4).
Como os fotografássemos insistentemente, a uns oito metros, acabaram todos por descer pacatamente a escada de caracol, espalhando-se cá por baixo, onde já se encontrava estirada uma dúzia deles.
Imediatamente ligada à cidade dos leões, estende-se a vasta planura rasa, ocelada aqui e além de charcos que servem de bebedouro e onde se espraiam, a perder de vista, dezenas de milhar de antílopes, gazelas, zebras, bois-cavalos, sem contar os palmípedes que enxameiam os lagos. À hora das refeições, um grupo de dois ou mais senhores da selva, saem as portas da cidade e vão ali, ao açougue, escolher uma rez. A operação é simples e rápida. Um dos felinos agacha-se, cosido à terra, e os outros enxotam-lhe para cima um herbívoro, que é colhido à passagem. Uma patada na nuca ou um estorcegão no pescoço e fica resolvido o problema dos abastecimentos.
Vida simples, fácil, confortável, a dos fidalgos de juba instalados neste solar feudal, cujo brazão é todo carregado de leões."

NOTA: Por feliz coincidência o nosso amigo Fernando Gil acaba de publicar na íntegra, no seu Blog "Moçambique para todos", este livro. Vale a pena ver. AQUI

Marrabenta, Julho de 2007
Celestino Gonçalves

05 July 2007

20 - RECORDANDO OS CAÇADORES GUIAS DA ÉPOCA DE OURO DOS SAFARIS EM MOÇAMBIQUE















RUI QUADROS
CAÇADOR GUIA E CAMPEÃO DE TIRO

Nascido na histórica Ilha de Moçambique, em 1937, RUI QUADROS é o primogénito de uma prole de 9 irmãos, filhos de um casal cujo patriarca - Afonso Quadros - era funcionário do quadro da administração civil da colónia e que se tornou muito conhecido no território precisamente por ser chefe de uma tão grande família, coisa rara entre os brancos. Outra faceta que notabilizou o pai Quadros era a sua grande paixão pela caça, que praticava nas áreas da sua jurisdição administrativa, quando chefe de Posto, a propósito de resolver problemas de alimentação do pessoal sob a sua responsabilidade empregue nas diversas actividades (administrativo, obras, presos, abertura e limpeza de picadas, etc,) ou mesmo para eliminar animais daninhos que invadiam os povoados e suas culturas.






As constantes transferências a que estavam sujeitos os funcionários daquele quadro administrativo levaram o Afonso Quadros e sua família a viverem praticamente em todos os distritos da colónia e em locais dos mais isolados e inóspitos do interior de Moçambique.Dizia-se, não sei se com fundo de verdade, que o pai Quadros pedia para ocupar os Postos Administrativos mais isolados e afastados que normalmente eram recusados por colegas seus, precisamente porque se localizavam nas regiões onde existia maior densidade de animais selvagens. Estiveram na rota de trabalho deste funcionário localidades do interior com tais características, como Lunga, Iutoculo, Matibane, Lalaua, Muite, Mutuali, Malema, Ligonha, Macuzi, Inhassunge, Gilé, Funhalouro e Saúte.






Naturalmente que os filhos, desde pequenos, criaram também a mesma paixão do seu progenitor, sabido que é que a caça é uma atracção muito forte para os jovens que têm o privilégio de viver em contacto com o mato e os animais bravios. O Rui, sendo o mais velho, desde tenra idade que acompanhava o pai nas incursões pelo mato e desde os seis anos que começou a lidar com espingardas. Começou pelas de pressão de ar e depressa passou às de bala de calibre ponto vinte e dois e depois às de calibres maiores. Iniciou-se no abate de aves e roedores e aos oito anos já matava pequenos antílopes. Aos nove abateu o seu primeiro búfalo e aos doze o primeiro elefante, tudo sob a batuta do pai e por vezes dos próprios cipaios do Posto.
Conheci o pai Quadros em meados da década de cinquenta durante as deambulações que também fiz como funcionário do mesmo quadro. Curiosamente, ele chefiou um posto que bem conheci: o de Saúte, localizado na circunscrição do Alto Limpopo, província de Gaza, entre o rio Save e o rio Limpopo. Uma região de clima muito sêco e com pouca população humana mas povoada de muitos milhares de animais bravios. Foi considerada, até à década de oitenta, a melhor área de caça de Moçambique e aquela que albergava mais variedade de espécies, algumas delas raras, como a girafa, a avestruz, a mezanze, a palapala cinzenta, a chita, a lebre saltadora, a raposa orelhuda e o lince. Outras espécies comuns, como elefantes, búfalos, elandes, zebras, gnús, palapalas, gondongas, cudos, leões, leopardos, chacais, hienas, inhalas, inhacosos, hipopótamos, impalas, changos, crocodilos, facoceros e cinco espécies de cabritos, eram muito abundantes. A célebre planície de Banhine era o epicentro desta região tão fértil em fauna selvagem e ficava a dois passos da povoação do Saúte. Um autêntico paraíso para a prática da caça, com destaque para a chamada caça grossa, que ali foi praticada em regime livre até à década de sessenta. Viria, depois, a ser ali criada a coutada oficial nº 17 que mais tarde, em 1973, foi extinta devido à criação do Parque Nacional do Banhine..




Foi nesta e noutras regiões idênticas que o Rui Quadros passou a maior parte da sua juventude e adquiriu uma larga experiência como caçador, tornando-se também um apaixonado pela vida animal. Só depois da instrução primária, que lhe foi ministrada pela mãe, se afastou para continuar os estudos (concluiu aos 17 anos os estudos secundários na África do Sul), mas durante as férias voltava sempre ao seio familiar e todo o seu tempo disponível era ocupado nas caçadas, que praticava à sombra das facilidades concedidas pelo próprio pai na qualidade de representante máximo da autoridade na respectiva área.




Gorados os seus sonhos de se tornar um biólogo virado para o ramo da fauna selvagem, por dificuldades financeiras dos pais para o manterem a estudar na África do Sul, procurou em Lourenço Marques uma actividade que o mantivesse em contacto com os animais bravios e assim começou por estagiar no Museu Álvaro de Castro (actual Museu de História Natural) onde aprendeu a embalsamar pequenas espécies, nomeadamente aves. Rapidamente se interessou pela ornitologia e ao serviço do Instituto de Investigação Científica de Moçambique dedicou-se à captura de pássaros. Percorreu todo o território em busca de espécies raras e ainda não catalogadas obtendo mais de uma centena de espécies novas para a vasta colecção do Museu.
Durante uma dessas campanhas, de mais de seis meses, na região do Lago Niassa, desenvolveu ali o gosto pela caça submarina, uma actividade que, para além de emotiva, lhe dava substanciais proventos pois vendia o pescado capturado, que normalmente atingia algumas dezenas de quilos por dia.


Entretanto a cidade capital também o cativou. O tempo disponível dedicava-o à prática do tiro de stand e ao atletismo. Em ambas as actividades depressa se notabilizou, logo a partir das categorias de júnior. No atletismo foi campeão de 400 e 800 metros. No tiro atingiu o patamar cimeiro em todas as provas, tornando-se campeão de Moçambique tanto na prancha como nos pombos, título que renovou sucessivamente, torneio após torneio, vencendo também inúmeras provas internacionais em que participou. Centenas de taças, medalhas e outros troféus foram-se acumulando na sua casa ao longo dos anos, primeiro em vitrines organizadas e depois a monte sobre os móveis da sala. De entre os melhores atiradores da época só o seu colega e amigo Amadeu Peixe o equiparou em títulos!
Amadeu Peixe e Rui Quadros - a dupla de caçadores guias que se tornou famosa na década de 60
NOTA: Texto e fotos do Álbum de Recordações onde se encontram mais elementos biográficos do caçador Rui Quadros. AQUI:
Marrabenta, Julho de 200
Celestino Gonçalves

28 June 2007

19 - NOVO BLOG SOBRE O PARQUE NACIONAL DA GORONGOSA









Da autoria de António Jorge Pinto da Silva (TóJó para os amigos), foi criado recentemente um novo Blog sobre o Parque Nacional da Gorongosa, o conhecido santuário de fauna Bravia de Moçambique que foi em tempos considerado o melhor de África.

Este excelente trabalho vem enriquecer sobremaneira a informação desenvolvida nos sites oficiais do Parque publicados pela Fundação Carr, instituição que desde 2005 tem a cargo a recuperação e desenvolvimento do mesmo. O autor é das poucas pessoas que conhece em profundidade o Parque e a sua história, visto que trabalhou na empresa SAFRIQUE que tinha a cargo a sua exploração turística durante o período que antecedeu a independência de Moçambique. Por outro lado, a sua formação profissional como jornalista, fotógrafo e técnico de turismo, permitiu-lhe, ao tempo, recolher excelente material, sendo detentor de uma das maiores colecções fotográficas relacionadas com os animais, pessoas e infraestruturas do mesmo Parque e de todas as coutadas de Manica e Sofala onde se praticava o turismo cinegético.

Felicitamos o amigo TóJó por esta iniciativa tão oportuna, que é mais mais uma fonte informativa com relevante interesse sobretudo quanto à história daquele que foi o local de trabalho de eleição durante a nossa carreira de fiscal de caça.

O Blog tem este endereço:http://gorongosa.blogspot.com/

Segue-se uma sequência dos trabalhos recentes publicados no Blog:

* * *

Sexta-feira, 15 de Junho de 2007

PORQUÊ ESTE ESPAÇO
Sempre fui um apaixonado pelos assuntos relacionados com a Natureza. Corre-me no sangue, desde criança, o exotismo das estepes africanas e dos animais selvagens que as habitam. As quentes cores to ocaso africano provocam em mim um poético sentimento misto de perda e de esperança.Assim, este espaço é especialmente dedicado a todos aqueles que, como eu, dão superior importância à problemática relacionada com a Natureza, e à sua preservação, bem como à protecção das espécies selvagens que ainda sobrevivem no imenso continente Africano, com especial interesse e carinho por Moçambique.Por tal motivo, é de toda a justiça dedicar uma parte generosa deste espaço, para enaltecer e dar a conhecer o excelente trabalho que tem vindo a ser levado a cabo na recuperação daquele que, em tempos, foi considerado o melhor e mais diversificado Parque Natural de Caça do planeta. Com efeito, aliado à imensa concentração de espécies em tão pouco espaço, o Parque Nacional da Gorongosa possui um ecossistema único, proveniente da sua magnífica morfologia do terreno e excepcional qualidade e beleza da flora ali existente.Graças à “Carr Foundation”, ao seu presidente Greg Carr e à equipe de profissionais competentes de diversos quadrantes que dirige, o Parque Nacional da Gorongosa está a renascer das cinzas, para bem todos nós, do povo Moçambicano e da sua economia. Por isso, serão aqui bem recebidos todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, são amantes da Natureza e são capazes de olhar o continente Africano de um modo muito especial: com ternura e confiança no futuro. São especialmente bem-vindos todos aqueles que possam contribuir com os seus conhecimentos e/ou experiências, de modo a ser possível enriquecer o conteúdo deste espaço. Aguardo, com alguma expectativa o vosso contributo. O meu sincero agradecimento.
Postado por António Jorge Pinto da Silva às 11:11 2 comentários Links para esta postagem
Sábado, 9 de Junho de 2007

A MAIS BELA CRIAÇÃO DA NATUREZA
Foi em 1921, quando uma áerea de cerca de 1.000 km2 foi delimitada para proteger algumas das espécies mais emblemáticas da fauna bravia ali existentes, que nasceu a área de protecção de caça da Gorongosa.
A sua enorme importância cedo começou a ser entendida.
Com sucessivos aumentos na delimitação da sua área protegida nos anos de 1935, 1960 e 1967, até atingir cerca de 3.000km2, o Parque começou a ganhar forma e inúmeros adeptos, amantes da Natureza.
A área viria a ser convertida em Parque Nacional no ano de 1960.
Os cerca de 5.000km2 de que hoje dispõe, foram oficialmente delimitadas e publicadas em 1967.A partir desse ano, o Parque viria a conhecer profundas melhorias, com a implementação de assinaláveis infra-estruturas tendentes a oferecer aos visitantes condições satisfatórias, no que respeita à sua estadia e circulação no interior do Parque.
Uma rede de picadas estrategicamente desenhada, percorria toda a área, possibilitando aos turistas o fácil acesso à observação de todas as numerosas e ricas espécies, de fauna e flora, de que o Parque dispunha. Das espécies existentes, devem destacar-se as enormes manadas de búfalos, elefantes e gnus.
A graciosidade das impalas, dos oribis, dos changos, e dos inhacosos, seduziam os visitantes.
Os majestosos kudus, as inhalas e as tucas eram espécies abundantes e muito apreciadas. Os numerosos grupos de leões constituiam o auge da visita, não sendo raro poderem ser observados grupos com mais de 30 elementos.
O enquadramento constituído por ricas florestas de palmeiras e de yellow fever tree, era magnífico.
Diversos lagos e lagoas emprestavam ao ambiente um subtil toque de paradisíaco exotismo.
No acampamento do Chitengo foram construídos acolhedores bungalows, dotados de energia electrica e de água corrente, que permitiam a todos os visitantes, que ali desejassem pernoitar, fazê-lo com toda a comodidade e descanso.Um primoroso restaurante, que servia refeições regionais a par de alguns pratos de cozinha internacional, ajudavam os turistas a retemperar forças para dar continuidade à "aventura".
Um bem recheado bar ajudava as gargantas mais sequiosas a combater os efeitos das altas temperaturas que, em certas alturas do ano, ali se faziam sentir. Para isso, existiam também as piscinas, abertas 24 horas por dia.
Uma visita ao Parque Nacional da Gorongosa constituía, em boa verdade, uma explêndida aventura e uma inesquecível experiência.
O parque Nacional da Gorongosa passou a ser conhecido internacionalmete, recebendo turistas de todos os continentes, em quantidades apreciáveis. Nos anos 70, foi atingida a cifra de 20.000 turistas por ano.
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Sexta-feira, 8 de Junho de 2007


AS FUNESTAS CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA CIVIL
O excepcional ecossistema que constitui o Parque Nacional da Gorongosa, bem como a enorme concentração de animais bravios por km2 que detinha, acabou por provocar enorme interesse a nível regional e internacional, tendo contribuído em escala razoável para o desenvolvimento social e económico de toda a região circundante.
Personagens importantes, de vários quadrantes, eram visitas assíduas do Parque contando-se, entre elas, astronautas, estrelas de cinema, etc. Mas, a partir de 1983 e até 1992, o Parque conheceu o mais negro e tenebroso período da sua história. Durante os nove anos que durou a guerra civil em Moçambique, foram infligidas ao Parque feridas profundas que serão difíceis, ou mesmo impossíveis, de cicatrizar.A fauna bravia foi quase completamente dizimada. Certas espécies foram mesmo extintas, deixando de ali serem vistas, até hoje. Outras espécies viram os seus efectivos drasticamente reduzidos, atingindo em certos casos, um desbaste igual ou superior a 90%.
A caça furtiva, a utilização de laços e outras armadilhas, a pesca intensiva, aliados à invasão do perímetro do Parque pelas populações locais, que aí construíram as suas aldeias, procedendo à plantação de espécies nocivas ao frágil equilíbrio do ecossistema existente, provocaram uma verdadeira tragédia difícil de remediar.Várias gerações serão necessárias para que a Natureza se encarregue de minimizar os estragos então provocados.
O acampamento do Chitengo foi parcialmente destruído e completamente saqueado, havendo construções que ficaram reduzidas a montes de escombros, numa acção de vandalismo difícil de entender. Nem mesmo o “Hippo-Bar”, situado junto à lagoa do rio Urema, onde proliferavam os hipopótamos e os crocodilos, foi poupado.Dele, restaram apenas os pilares e algumas paredes.
A paz chegou em 1992, mas só em 1995 se voltou a cuidar do Parque, recorrendo-se a um programa de emergência financiado pela União Europeia que, para além da criação de um grupo de seis dezenas de guardas florestais e da recuperação de algumas construções no acampamento do Chitengo, nada mais digno de nota conseguiu fazer. Foi nesta situação de verdadeira catástrofe que Greg Carr conheceu, e cedo se apaixonou pelo exotismo do Parque Nacional da Gorongosa, bem como pelas suas áreas adjacentes.
Fotografias de Maurice Ronet e Hippo Bar gentilmente cedidas pelo Dr. Albano Cortez.
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Quinta-feira, 7 de Junho de 2007

A FUNDAÇÃO CARR E O RENASCER DA GORONGOSA
GREG CARR
Formado na Universidade de Harvard nos anos 80, Greg Carr desde logo se começou a interessar pelas tecnologias de informação. Em 1987, Greg Carr fundou, em parceria com um Engenheiro formado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), uma empresa ligada à manufactura de equipamento para telecomunicações, a Boston Technology.A partir de 1995, a sua paixão pelos direitos humanos, levou-o a dirigir os benefícios da sua florescente indústria, a favor da implementação de diversos programas relacionados com os direitos humanos, em diversas partes do globo. Greg Carr, presidente da “Prodigy, Inc.”, que adquiriu à IBM e à Sears em 1996 e encabeçou também a “Africa Online”, é um activista convicto em prol dos direitos humanos. No ano de 1998, renunciou a todos os cargos que detinha e vendou mesmo as participações das empresas de que fazia parte.
Para dar corpo às suas generosas e filantrópicas iniciativas, um pouco por todo o mundo, criou em 1999, a “Carr Foundation” que se iria dedicar ao apoio intransigente dos direitos humanos, educação e cultura. Daí até se interessar por Moçambique, foi um passo.Agora, com 46 anos, Greg Carr assinou um memorando de intenções com o Governo Moçambicano. O memorando, assinado em 2004, vai permitir a Greg Carr cuidar da Natureza, promover os direitos humanos, a educação e a cultura.As próprias palavras de Greg Carr, quando afirma: “temos de planear a nossa intervenção em várias fases: conservação, sócio-económica e turística. Este projecto motivou-me porque é uma combinação entre uma acção de protecção da Natureza e um projecto de desenvolvimento económico. Trata-se de usar a beleza do ecossistema para combater a pobreza”, dizem tudo.Em boa verdade, o projecto de Greg Carr não se limita à recuperação, manutenção e repovoamento do Parque Nacional da Gorongosa. Estão também no seu horizonte a melhoria das condições de vida das populações locais, de modo a que façam parte integrante do ambicioso projecto.Cerca de 20% dos resultados relativos à exploração do Parque, serão canalizadas para ajuda às populações, mediante captação de água potável. A construção de infra-estruturas ligadas à saúde e à educação, completam os seus propósitos.
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Acerca de mim

António Jorge Pinto da Silva
Porto, PT
Trabalhou no Diário de Moçambique, Notícias da Beira e Revista Tempo. Foi colaborador da SAFRIQUE - Sociedade de Safaris de Moçambique e da Safarilândia (Agência de Turismo de Moçambique. Regressou a Portugal em 1976. Nos anos 80, a convite do Governo Moçambicano fez parte de um grupo de três elementos a quem foi confiada a tarefa de efectuar um exaustivo levantamento das potencialidades turísticas do País. Foi produzido um completo dossier, então entregue ao Exmo. Sr. Arquitecto Mário Trindade, Secretário de Estado do Turismo à data. Desempenha hoje funções de Director Técnico de Turismo na cidade do Porto. Ver o meu perfil completo

O autor do Blog


* * *
Marrabenta, Junho de 2007


Celestino Gonçalves

25 June 2007

18 - LIVROS SOBRE FAUNA BRAVIA, CAÇA E CAÇADORES DE MOÇAMBIQUE



(5)

Título
GORONGOSA
(Experiências de um caçador de imagens)
Autor
João Augusto Silva
Editora: Empresa Moderna – Lourenço Marques
Ano: 1964

O autor em 1964





O autor em duas atitudes atrevidas que revelam o seu conhecimento sobre as reacções dos elefantes (Fotos do livro GORONGOSA)



1 - NOTAS SOBRE O AUTOR

Referenciado no post anterior como autor do livro ANIMAIS SELVAGENS, João Augusto Silva é trazido de novo a este cantinho para apresentarmos a sua segunda obra – GORONGOSA -, publicada em 1964, oito anos depois da primeira.
Este novo trabalho tem o estilo inconfundível do escritor-caçador-fotógrafo, que brindou Moçambique com dois dos melhores trabalhos àcerca da sua fauna selvagem, a primeira sub-titulada de “Contribuição para o estudo da fauna de Moçambique” e a segunda rotulada de “Experiências de um caçador de imagens”.
Na verdade, uma obra completa a outra, porque tratando-se de um entusiasta e estudioso da vida selvagem, o autor era também um amante da caça e um excelente fotógrafo. Na primeira fez sobressair os seus dotes de caçador. Já na segunda está patente a sua veia artística com um excelente documentário fotográfico mostrando os mais significativos representantes da fauna do Parque na sua pujança de vida como bem os conhecemos naquela época.
Também demonstrou neste livro, nas narrativas e em algumas das imagens, o seu à vontade perante os mais corpulentos e perigosos animais, como o elefante e o búfalo, fotografando-os e fazendo-se fotografar a curta distância e até desafiando-os com gestos atrevidos e sem arma. Isto para justificar a tese (dele e de todos os naturalistas conhecedores da fauna africana) de que os animais selvagens, sejam de pequeno ou grande porte, temem e respeitam o homem.

Conheci João Augusto Silva em 1963, precisamente no Parque Nacional da Gorongosa, quando a sua base de actividades era já em Lourenço Marques. O facto de estar a preparar o livro GORONGOSA, levava-o a visitar o Parque com alguma frequência. Sentia-se ali perfeitamente à vontade, quer por conhecer em profundidade toda a região, quer pela forma como era recebido pelos funcionários que o tratavam com a reverência a que se habituaram em anos anteriores quando ele era o administrador de Vila Paiva de Andrade (actual vila de Gorongosa) e acumulava a direcção do Parque.

Naturalmente que o autor encontrou ali todas as facilidades, inclusive para recolher o material que lhe faltava para o “Gorongosa” e eu próprio também dei a minha modesta colaboração. Aproveitei as oportunidades que se depararam para abordar as questões mais dúbias que sempre pairam na cabeça de quem nunca sabe tudo. Foi assim que as nossas conversas conduziram a temas em que os meus conhecimentos puderam sustentar alguns diálogos com o mestre, nomeadamente a situação da fauna bravia de Cabo Delgado e Niassa (Alto Niassa do seu tempo), região que ambos conhecemos relativamente bem por ali termos prestado serviço, ele na década de 40 e eu na de 50/60.

Falámos da falta de uma política de conservação em relação às espécies mais apetecidas pelo comércio dos troféus, como é o caso do elefante e do rinoceronte. Ambos estivemos de acordo quanto à necessidade de uma reserva especial para protecção do rinoceronte em Cabo Delgado, visto que esta espécie ainda se encontrava ali bem representada mas que vinha sendo já alvo da cobiça dos caçadores furtivos incentivados por redes de tráfico dos respectivos cornos. Aliás, a ideia desta reserva já a tinha lançado nos meus relatórios anuais de 1958 e 1961, justificada plenamente visto que aquela região do norte de Moçambique albergava, na época, muitas centenas - provavelmente milhares - de rinocerontes, localizados em núcleos que identifiquei em dez zonas diferentes do distrito (actual província). A reserva, contudo, nunca foi criada!

O curso dos acontecimentos dos anos que se seguiram até 1992 veio dar-nos razão: os rinocerontes desapareceram, provavelmente até à extinção, tanto no norte como no centro e sul do país.

2 - NOTAS SOBRE O LIVRO

Porque se trata de um dos livros mais bem escritos e documentados sobre o Parque Nacional da Gorongosa, o mais importante de Moçambique e considerado até 1975 dos mais importantes de África, não posso deixar de reproduzir aqui o trecho de abertura do capítulo “Vagueando pelos caminhos do Parque”, ciente de que na actualidade e graças ao grande projecto de recuperação ali em curso pela Fundação Carr, desde 2005, os visitantes poderão saborear os prazeres daquele maravilhoso Parque e viver as emoções que o autor aqui nos transmite. As espécies continuam ali todas representadas (excepção do rinoceronte), algumas mesmo em excelente recuperação, pese embora o grande desfalque dos efectivos ali ocorrido durante a guerra civil (1977/1992). O acampamento do Chitengo foi já restaurado de forma a receber turistas e as vias de comunicação restabelecidas de forma a nelas poderem circular viaturas normais conduzidas pelos próprios visitantes. Apenas não se podem ver, por enquanto, as excepcionais manadas de búfalos, bois-cavalos e zebras, como outrora, mas a seu tempo elas serão recompostas conforme planos de reintrodução destas e de outras espécies já em execução pelo mesmo projecto.


* * *


“Estamos no Chitengo, centro dos serviços do Parque e acampamento para turistas. Vários pavilhões de construção simples mas cuidada proporcionam o indispensável conforto a quem deseja passar alguns dias de férias no maravilhoso reino dos animais selvagens. No bar ou na esplanada acolhedora, sob as copas protectoras de acácias amarelas, tomam-se refrescos e aperitivos. O restaurante, amplo e alegre, serve reconfortantes refeições e deliciosos vinhos das melhores refeições da Metrópole.
Ao cair da noite a luz eléctrica ilumina a jorros a cidadezinha-acampamento, ilha de luz no mar escuro e misterioso da floresta.
Corre uma aragem fresca. Sabe bem deambular no terreiro sob a ampla abóbada de um céu reluzente de estrelas, enquanto à roda do acampamento as hienas quebram o silêncio da noite com o seu uivo dolorido. Formam-se diversos grupos de turistas. Fala-se de caça e dos mistérios absorventes do sertão. Os novatos inquirem curiosos sobre os melhores caminhos a percorrer no dia seguinte para ver os elefantes, os búfalos, os leões… Os veteranos, com ar entendido, prestam esclarecimentos, sugerem itinerários e contam histórias – histórias que parecem fábulas – de encontros com manadas de dezenas de elefantes, de mil búfalos, de imensas hordas de bois-cavalos, de leões tão confiantes que se deixam estar, indiferentes à passagem dos carros, olhando desdenhosos. As histórias parecem incríveis e provocam assombro ou cepticismo.
Chegou a altura de recolher para dormir um sono reparador. Assaltam-nos a mente sonhos quiméricos; em cavalgadas alucinantes desfilam monstruosos animais bravios.
De madrugada toda a gente está de pé. O acampamento tornou-se arraial buliçoso e alegre. Os preparativos da partida para o mato fazem-se afanosamente por entre risos. Depois do pequeno almoço tomado à pressa tem início a debandada dos automóveis.
Logo ao fundo do campo de aviação começa a exibir-se o primeiro episódio do filme natural da selva – um filme a três dimensões, maravilhoso de cor, palpitante de realismo, que aparelho algum jamais reproduzirá com fidelidade.
Uma manada de gondongas desgraciosas espreita-nos com visível curiosidade. Duas crias brincam estouvadas. Aparecem algumas zebras gordas, de pele lustrosa como cetim. Uma centena de metros adiante o condutor pára o carro com suavidade…
- Há alguma novidade?
- Os elefantes!!!
Lá estão eles à direita, à distância de uma pedrada, passeando pachorrentamente. De quando em quando um deles detém-se, ergue a tromba para arrancar um raminho tenro no alto de uma acácia espinhosa e leva-o à boca torcendo a tromba com a mobilidade das serpentes.
O carro está parado e todos os seus ocupantes olham respeitosos o quadro invulgar.
Ali, diante de nós, desenrola-se como por encanto a cena autêntica, de um mundo perdido no fundo dos tempos. Volvemos de súbito às mais remotas eras! Aqueles monstros antediluvianos, no seu próprio ambiente, enquadrados por uma paisagem singular de palmeiras de leque, grotescas eufórbias, agressivas espinheiras, trazem-nos à memória, não sei se por misterioso atavismo, um mundo do qual conservamos reminiscências confusas na escuridão do subconsciente.
Aproxima-se um carro. Os seus ruidosos ocupantes rindo e gritando, destroem a deliciosa paz desse mundo edénico e os elefantes, com a humilde timidez dos fortes, internam-se vagarosamente na floresta. E a viagem prossegue.
Aqui e acolá, em charcos lamacentos, retoiçam javalis que olham o carro muito sérios ou fogem com a cauda espetada em pau-de-bandeira.
Passam zebras, bois-cavalos, cobos de crescente e novamente, e a cada momento, mais zebras, mais bois-cavalos, mais cobos. Estamos prestes a desembocar num outra picada à nossa frente. Aparece-nos então um soberbo elefante. É um gigante de perfeita e bem modelada anatomia. As presas irrompem-lhe do maxilar superior longas, grossas, muito brancas. Sentiu o carro. Divisou-lhe possivelmente o vulto com os seus olhitos de míope, mas como a aragem corre dele para nós, o olfacto não lhe desvenda a identidade dos intrusos e por isso o rei da selva continua o seu passeio, displicente e majestoso nos gestos, com a segurança de quem não conhece rivais e só respeita o homem.
Entramos na picada que conduz ao acampamento velho, agora transformado em solar dos leões. Estão todos ansiosos por verem o falso rei dos animais gozando plena liberdade no seu reino. Diante de nós, no meio da vasta planície desarborizada, erguem-se quatro albergues em alvenaria de tijolo, um refeitório e duas cozinhas que constituem o velho acampamento abandonado porque na época das chuvas o rio transborda sobre a planície e as águas invadem as casas e sobem até às janelas.
Nem um leão!... já é pouca sorte!
Ninguém esconde o seu desapontamento.
De súbito surge à porta de uma das cozinhas uma jovem leoa. Todos olham emocionados. A leoa queda-se uns momentos indecisa e por fim sai a passo, sentando-se no relvado a olhar-nos. Dirigimos o carro para as traseiras do acampamento. Um dos edifícios tem sentinelas à porta; uma leoa, certamente grávida, e um leão de musculatura atlética e juba pouco desenvolvida.
Da outra cozinha, mais ao fundo, sai então o patriarca do bando, um macho possante, enorme, com os músculos a desenharem-se através da pele coberta de pêlo amarelo torrado. A juba negra, farta e em desalinho emoldura-lhe a face austera onde brilham dois olhos claros de transparência vítrea. Está calor e o bicho, bamboleando no seu andar de marujo, vai estirar-se à sombra de um pequeno arbusto, olhando-nos de soslaio. Abre a boca, caverna rósea onde a comprida língua serpenteia no meio de acerados caninos muito brancos. Sensível ao calor põe-se a arfar como um caãozito fatigado.
………………………………………………………………………………………….....
Continuamos a viagem. À nossa esquerda estende-se o tando – vasta planura de límpida esmeralda, tendo por pano de fundo, em cenografia ciclópica, a serra da Gorongosa pintada de azul e de lilás.
A estrada corre sinuosa na orla da mata, desvendando-nos um panorama surpreendente. Dum lado, a mata de espinheiras anãs, árvores da febre cujas flores enchem os ares com o seu perfume adocicado e palmeiras de marfim vegetal que desenham no azul do céu a graça heráldica das suas palmas em forma de leque. Do outro lado, estende-se o mar sereno da planície coberta de caça. Até onde a vista alcança vêem-se animais selvagens no mais completo à-vontade. Defendidos da ferocidade dos homens só o leão os preocupa; mas esse apenas mata para viver.
Parámos à sombra de uma acácia, para almoçar. Daí a momentos desenrola-se à nossa vista uma cena portentosa: um leão sai da espessura de uma moita e dirige-se, cauteloso, para a orla do tando. Em campo aberto pastam zebras, bois-cavalos e impalas. O leão, um jovem de pequena juba, a coberto de um tufo de arbustos, espreita com visível atenção como se avaliasse a situação e estudasse um plano de ataque. Por fim, rastejando com as cautelas do ladrão que receia ser surpreendido, vai-se aproximando a coberto das palmeiras anãs. Estaca. Já não pode adiantar mais um passo sem se denunciar. As zebras, as impalas, os bois-cavalos, ainda que descuidosos na aparência, não ignoram que os cerca um mundo de embustes e traições. Por isso mantêm-se em campo raso enquanto um ou outro varre o descampado com a sua vista penetrante. O leão achou que mais lhe conviria tentar a fortuna esperando a coberto das palmeiras anãs… E teve sorte o bandido! Em certa altura, duas zebras tomadas de brio, brincando com o desatino dos namorados, aproximaram-se em corridinhas caprichosas. Daí em diante tudo se passou num abrir e fechar de olhos.
Com a rapidez com que o raio derruba uma árvore assim o leão tombou fulminantemente sobre uma das zebras partindo-lhe a coluna vertebral de um só golpe. A vítima rebolou no chão levantando uma nuvem de poeira e o agressou voltou de pronto, cravando-lhe os dentes no pescoço musculoso. Com os caninos enterrados na carne fremente o leão ergueu a zebra, ligeiro como um gato levando um rato, e arrastou-a para a sombra fresca duma ocanheira. Ali, muito à vontade, abriu-lhe o ventre e ébrio de gozo, embrenhou o focinho nas entranhas de onde o sangue borbotava aos sacões.
…………………………………………………………………………………………….
E a caravana prossegue entusiasmada com mais este episódio vivo e dramático do livro da selva.
Ao longo de toda a picada, do lado do tando, as manadas sucedem-se a perder de vista. Marchamos agora em direcção ao rio Urema – a mansão dos hipopótamos.
Predominam, os cobos de crescente, as zebras, os bois-cavalos, as impalas.
……………………………………………………………………………………………
Ao fundo, muito longe, estende-se uma fita comprida de animais que pelo efeito da miragem, comum nestas planuras sobre-aquecidas, parecem vaguear suspensos sobre um lago irreal prateado. A cena causa admiração e entusiasmo àqueles que nunca haviam presenciado o estranho fenómeno.
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Avistam-se hipopótamos pastando como toiros nas lezírias. À vista do carro movimentam-se e correm para o rio em fila indiana, O carro aproxima-se e os volumosos paquidermes, para espanto de quem os supunha pesados e lentos, largam em corrida célere e mergulham nas águas, fragorosamente.
Fazemos alto à beirinha do rio. Bem perto de nós, boiando nas águas lodosas, agita-se uma massa compacta de hipopótamos, talvez duas centenas. Mas tão longe quanto a vista alcança, sucedem-se manchas de hipopótamos, verdadeiros cardumes ao longo do rio sinuoso que, batido de chapa pelo sol, lembra uma larga fita de aço inoxidável desdobrada na verdura da planície.
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Depois destes momentos tão bem passados, ricos de acontecimentos e imprevistos, abalamos de regresso ao acampamento.
Sobre o lugar onde deixáramos o leão com a presa volteiam abutres. Dirigimo-nos para lá. À chegada do carro os abutres que estavam poisados, banqueteando-se sofregamente, levantam voo e protestam riscando os ares calmos com o seu piar sinistro.
Aproximam-se dois chacais prateados e logo a seguir à primeira curva depara-se-nos uma hiena farejando os ares.
O acampamento está cheio de turistas. Trocam-se impressões animadamente. Cada um conta entusiasmado as cenas que presenciou, duvidando que outros tenham assistido a maravilhas semelhantes.
No dia seguinte abalamos em busca de novas aventuras.”

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NOTA: Mais informações sobre a história e a situação actual do Parque Nacional da Gorongosa, podem ser recolhidas nos sites:


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http://www.gorongosa.net/index_por.html
- http://my.gorongosa.net/

Marrabenta, Junho de 2007