25 June 2007

18 - LIVROS SOBRE FAUNA BRAVIA, CAÇA E CAÇADORES DE MOÇAMBIQUE



(5)

Título
GORONGOSA
(Experiências de um caçador de imagens)
Autor
João Augusto Silva
Editora: Empresa Moderna – Lourenço Marques
Ano: 1964

O autor em 1964





O autor em duas atitudes atrevidas que revelam o seu conhecimento sobre as reacções dos elefantes (Fotos do livro GORONGOSA)



1 - NOTAS SOBRE O AUTOR

Referenciado no post anterior como autor do livro ANIMAIS SELVAGENS, João Augusto Silva é trazido de novo a este cantinho para apresentarmos a sua segunda obra – GORONGOSA -, publicada em 1964, oito anos depois da primeira.
Este novo trabalho tem o estilo inconfundível do escritor-caçador-fotógrafo, que brindou Moçambique com dois dos melhores trabalhos àcerca da sua fauna selvagem, a primeira sub-titulada de “Contribuição para o estudo da fauna de Moçambique” e a segunda rotulada de “Experiências de um caçador de imagens”.
Na verdade, uma obra completa a outra, porque tratando-se de um entusiasta e estudioso da vida selvagem, o autor era também um amante da caça e um excelente fotógrafo. Na primeira fez sobressair os seus dotes de caçador. Já na segunda está patente a sua veia artística com um excelente documentário fotográfico mostrando os mais significativos representantes da fauna do Parque na sua pujança de vida como bem os conhecemos naquela época.
Também demonstrou neste livro, nas narrativas e em algumas das imagens, o seu à vontade perante os mais corpulentos e perigosos animais, como o elefante e o búfalo, fotografando-os e fazendo-se fotografar a curta distância e até desafiando-os com gestos atrevidos e sem arma. Isto para justificar a tese (dele e de todos os naturalistas conhecedores da fauna africana) de que os animais selvagens, sejam de pequeno ou grande porte, temem e respeitam o homem.

Conheci João Augusto Silva em 1963, precisamente no Parque Nacional da Gorongosa, quando a sua base de actividades era já em Lourenço Marques. O facto de estar a preparar o livro GORONGOSA, levava-o a visitar o Parque com alguma frequência. Sentia-se ali perfeitamente à vontade, quer por conhecer em profundidade toda a região, quer pela forma como era recebido pelos funcionários que o tratavam com a reverência a que se habituaram em anos anteriores quando ele era o administrador de Vila Paiva de Andrade (actual vila de Gorongosa) e acumulava a direcção do Parque.

Naturalmente que o autor encontrou ali todas as facilidades, inclusive para recolher o material que lhe faltava para o “Gorongosa” e eu próprio também dei a minha modesta colaboração. Aproveitei as oportunidades que se depararam para abordar as questões mais dúbias que sempre pairam na cabeça de quem nunca sabe tudo. Foi assim que as nossas conversas conduziram a temas em que os meus conhecimentos puderam sustentar alguns diálogos com o mestre, nomeadamente a situação da fauna bravia de Cabo Delgado e Niassa (Alto Niassa do seu tempo), região que ambos conhecemos relativamente bem por ali termos prestado serviço, ele na década de 40 e eu na de 50/60.

Falámos da falta de uma política de conservação em relação às espécies mais apetecidas pelo comércio dos troféus, como é o caso do elefante e do rinoceronte. Ambos estivemos de acordo quanto à necessidade de uma reserva especial para protecção do rinoceronte em Cabo Delgado, visto que esta espécie ainda se encontrava ali bem representada mas que vinha sendo já alvo da cobiça dos caçadores furtivos incentivados por redes de tráfico dos respectivos cornos. Aliás, a ideia desta reserva já a tinha lançado nos meus relatórios anuais de 1958 e 1961, justificada plenamente visto que aquela região do norte de Moçambique albergava, na época, muitas centenas - provavelmente milhares - de rinocerontes, localizados em núcleos que identifiquei em dez zonas diferentes do distrito (actual província). A reserva, contudo, nunca foi criada!

O curso dos acontecimentos dos anos que se seguiram até 1992 veio dar-nos razão: os rinocerontes desapareceram, provavelmente até à extinção, tanto no norte como no centro e sul do país.

2 - NOTAS SOBRE O LIVRO

Porque se trata de um dos livros mais bem escritos e documentados sobre o Parque Nacional da Gorongosa, o mais importante de Moçambique e considerado até 1975 dos mais importantes de África, não posso deixar de reproduzir aqui o trecho de abertura do capítulo “Vagueando pelos caminhos do Parque”, ciente de que na actualidade e graças ao grande projecto de recuperação ali em curso pela Fundação Carr, desde 2005, os visitantes poderão saborear os prazeres daquele maravilhoso Parque e viver as emoções que o autor aqui nos transmite. As espécies continuam ali todas representadas (excepção do rinoceronte), algumas mesmo em excelente recuperação, pese embora o grande desfalque dos efectivos ali ocorrido durante a guerra civil (1977/1992). O acampamento do Chitengo foi já restaurado de forma a receber turistas e as vias de comunicação restabelecidas de forma a nelas poderem circular viaturas normais conduzidas pelos próprios visitantes. Apenas não se podem ver, por enquanto, as excepcionais manadas de búfalos, bois-cavalos e zebras, como outrora, mas a seu tempo elas serão recompostas conforme planos de reintrodução destas e de outras espécies já em execução pelo mesmo projecto.


* * *


“Estamos no Chitengo, centro dos serviços do Parque e acampamento para turistas. Vários pavilhões de construção simples mas cuidada proporcionam o indispensável conforto a quem deseja passar alguns dias de férias no maravilhoso reino dos animais selvagens. No bar ou na esplanada acolhedora, sob as copas protectoras de acácias amarelas, tomam-se refrescos e aperitivos. O restaurante, amplo e alegre, serve reconfortantes refeições e deliciosos vinhos das melhores refeições da Metrópole.
Ao cair da noite a luz eléctrica ilumina a jorros a cidadezinha-acampamento, ilha de luz no mar escuro e misterioso da floresta.
Corre uma aragem fresca. Sabe bem deambular no terreiro sob a ampla abóbada de um céu reluzente de estrelas, enquanto à roda do acampamento as hienas quebram o silêncio da noite com o seu uivo dolorido. Formam-se diversos grupos de turistas. Fala-se de caça e dos mistérios absorventes do sertão. Os novatos inquirem curiosos sobre os melhores caminhos a percorrer no dia seguinte para ver os elefantes, os búfalos, os leões… Os veteranos, com ar entendido, prestam esclarecimentos, sugerem itinerários e contam histórias – histórias que parecem fábulas – de encontros com manadas de dezenas de elefantes, de mil búfalos, de imensas hordas de bois-cavalos, de leões tão confiantes que se deixam estar, indiferentes à passagem dos carros, olhando desdenhosos. As histórias parecem incríveis e provocam assombro ou cepticismo.
Chegou a altura de recolher para dormir um sono reparador. Assaltam-nos a mente sonhos quiméricos; em cavalgadas alucinantes desfilam monstruosos animais bravios.
De madrugada toda a gente está de pé. O acampamento tornou-se arraial buliçoso e alegre. Os preparativos da partida para o mato fazem-se afanosamente por entre risos. Depois do pequeno almoço tomado à pressa tem início a debandada dos automóveis.
Logo ao fundo do campo de aviação começa a exibir-se o primeiro episódio do filme natural da selva – um filme a três dimensões, maravilhoso de cor, palpitante de realismo, que aparelho algum jamais reproduzirá com fidelidade.
Uma manada de gondongas desgraciosas espreita-nos com visível curiosidade. Duas crias brincam estouvadas. Aparecem algumas zebras gordas, de pele lustrosa como cetim. Uma centena de metros adiante o condutor pára o carro com suavidade…
- Há alguma novidade?
- Os elefantes!!!
Lá estão eles à direita, à distância de uma pedrada, passeando pachorrentamente. De quando em quando um deles detém-se, ergue a tromba para arrancar um raminho tenro no alto de uma acácia espinhosa e leva-o à boca torcendo a tromba com a mobilidade das serpentes.
O carro está parado e todos os seus ocupantes olham respeitosos o quadro invulgar.
Ali, diante de nós, desenrola-se como por encanto a cena autêntica, de um mundo perdido no fundo dos tempos. Volvemos de súbito às mais remotas eras! Aqueles monstros antediluvianos, no seu próprio ambiente, enquadrados por uma paisagem singular de palmeiras de leque, grotescas eufórbias, agressivas espinheiras, trazem-nos à memória, não sei se por misterioso atavismo, um mundo do qual conservamos reminiscências confusas na escuridão do subconsciente.
Aproxima-se um carro. Os seus ruidosos ocupantes rindo e gritando, destroem a deliciosa paz desse mundo edénico e os elefantes, com a humilde timidez dos fortes, internam-se vagarosamente na floresta. E a viagem prossegue.
Aqui e acolá, em charcos lamacentos, retoiçam javalis que olham o carro muito sérios ou fogem com a cauda espetada em pau-de-bandeira.
Passam zebras, bois-cavalos, cobos de crescente e novamente, e a cada momento, mais zebras, mais bois-cavalos, mais cobos. Estamos prestes a desembocar num outra picada à nossa frente. Aparece-nos então um soberbo elefante. É um gigante de perfeita e bem modelada anatomia. As presas irrompem-lhe do maxilar superior longas, grossas, muito brancas. Sentiu o carro. Divisou-lhe possivelmente o vulto com os seus olhitos de míope, mas como a aragem corre dele para nós, o olfacto não lhe desvenda a identidade dos intrusos e por isso o rei da selva continua o seu passeio, displicente e majestoso nos gestos, com a segurança de quem não conhece rivais e só respeita o homem.
Entramos na picada que conduz ao acampamento velho, agora transformado em solar dos leões. Estão todos ansiosos por verem o falso rei dos animais gozando plena liberdade no seu reino. Diante de nós, no meio da vasta planície desarborizada, erguem-se quatro albergues em alvenaria de tijolo, um refeitório e duas cozinhas que constituem o velho acampamento abandonado porque na época das chuvas o rio transborda sobre a planície e as águas invadem as casas e sobem até às janelas.
Nem um leão!... já é pouca sorte!
Ninguém esconde o seu desapontamento.
De súbito surge à porta de uma das cozinhas uma jovem leoa. Todos olham emocionados. A leoa queda-se uns momentos indecisa e por fim sai a passo, sentando-se no relvado a olhar-nos. Dirigimos o carro para as traseiras do acampamento. Um dos edifícios tem sentinelas à porta; uma leoa, certamente grávida, e um leão de musculatura atlética e juba pouco desenvolvida.
Da outra cozinha, mais ao fundo, sai então o patriarca do bando, um macho possante, enorme, com os músculos a desenharem-se através da pele coberta de pêlo amarelo torrado. A juba negra, farta e em desalinho emoldura-lhe a face austera onde brilham dois olhos claros de transparência vítrea. Está calor e o bicho, bamboleando no seu andar de marujo, vai estirar-se à sombra de um pequeno arbusto, olhando-nos de soslaio. Abre a boca, caverna rósea onde a comprida língua serpenteia no meio de acerados caninos muito brancos. Sensível ao calor põe-se a arfar como um caãozito fatigado.
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Continuamos a viagem. À nossa esquerda estende-se o tando – vasta planura de límpida esmeralda, tendo por pano de fundo, em cenografia ciclópica, a serra da Gorongosa pintada de azul e de lilás.
A estrada corre sinuosa na orla da mata, desvendando-nos um panorama surpreendente. Dum lado, a mata de espinheiras anãs, árvores da febre cujas flores enchem os ares com o seu perfume adocicado e palmeiras de marfim vegetal que desenham no azul do céu a graça heráldica das suas palmas em forma de leque. Do outro lado, estende-se o mar sereno da planície coberta de caça. Até onde a vista alcança vêem-se animais selvagens no mais completo à-vontade. Defendidos da ferocidade dos homens só o leão os preocupa; mas esse apenas mata para viver.
Parámos à sombra de uma acácia, para almoçar. Daí a momentos desenrola-se à nossa vista uma cena portentosa: um leão sai da espessura de uma moita e dirige-se, cauteloso, para a orla do tando. Em campo aberto pastam zebras, bois-cavalos e impalas. O leão, um jovem de pequena juba, a coberto de um tufo de arbustos, espreita com visível atenção como se avaliasse a situação e estudasse um plano de ataque. Por fim, rastejando com as cautelas do ladrão que receia ser surpreendido, vai-se aproximando a coberto das palmeiras anãs. Estaca. Já não pode adiantar mais um passo sem se denunciar. As zebras, as impalas, os bois-cavalos, ainda que descuidosos na aparência, não ignoram que os cerca um mundo de embustes e traições. Por isso mantêm-se em campo raso enquanto um ou outro varre o descampado com a sua vista penetrante. O leão achou que mais lhe conviria tentar a fortuna esperando a coberto das palmeiras anãs… E teve sorte o bandido! Em certa altura, duas zebras tomadas de brio, brincando com o desatino dos namorados, aproximaram-se em corridinhas caprichosas. Daí em diante tudo se passou num abrir e fechar de olhos.
Com a rapidez com que o raio derruba uma árvore assim o leão tombou fulminantemente sobre uma das zebras partindo-lhe a coluna vertebral de um só golpe. A vítima rebolou no chão levantando uma nuvem de poeira e o agressou voltou de pronto, cravando-lhe os dentes no pescoço musculoso. Com os caninos enterrados na carne fremente o leão ergueu a zebra, ligeiro como um gato levando um rato, e arrastou-a para a sombra fresca duma ocanheira. Ali, muito à vontade, abriu-lhe o ventre e ébrio de gozo, embrenhou o focinho nas entranhas de onde o sangue borbotava aos sacões.
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E a caravana prossegue entusiasmada com mais este episódio vivo e dramático do livro da selva.
Ao longo de toda a picada, do lado do tando, as manadas sucedem-se a perder de vista. Marchamos agora em direcção ao rio Urema – a mansão dos hipopótamos.
Predominam, os cobos de crescente, as zebras, os bois-cavalos, as impalas.
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Ao fundo, muito longe, estende-se uma fita comprida de animais que pelo efeito da miragem, comum nestas planuras sobre-aquecidas, parecem vaguear suspensos sobre um lago irreal prateado. A cena causa admiração e entusiasmo àqueles que nunca haviam presenciado o estranho fenómeno.
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Avistam-se hipopótamos pastando como toiros nas lezírias. À vista do carro movimentam-se e correm para o rio em fila indiana, O carro aproxima-se e os volumosos paquidermes, para espanto de quem os supunha pesados e lentos, largam em corrida célere e mergulham nas águas, fragorosamente.
Fazemos alto à beirinha do rio. Bem perto de nós, boiando nas águas lodosas, agita-se uma massa compacta de hipopótamos, talvez duas centenas. Mas tão longe quanto a vista alcança, sucedem-se manchas de hipopótamos, verdadeiros cardumes ao longo do rio sinuoso que, batido de chapa pelo sol, lembra uma larga fita de aço inoxidável desdobrada na verdura da planície.
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Depois destes momentos tão bem passados, ricos de acontecimentos e imprevistos, abalamos de regresso ao acampamento.
Sobre o lugar onde deixáramos o leão com a presa volteiam abutres. Dirigimo-nos para lá. À chegada do carro os abutres que estavam poisados, banqueteando-se sofregamente, levantam voo e protestam riscando os ares calmos com o seu piar sinistro.
Aproximam-se dois chacais prateados e logo a seguir à primeira curva depara-se-nos uma hiena farejando os ares.
O acampamento está cheio de turistas. Trocam-se impressões animadamente. Cada um conta entusiasmado as cenas que presenciou, duvidando que outros tenham assistido a maravilhas semelhantes.
No dia seguinte abalamos em busca de novas aventuras.”

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NOTA: Mais informações sobre a história e a situação actual do Parque Nacional da Gorongosa, podem ser recolhidas nos sites:


-
http://www.gorongosa.net/index_por.html
- http://my.gorongosa.net/

Marrabenta, Junho de 2007


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